Verdade, mentira e tortura
Entre as primeiras palavras de Jair Bolsonaro, uma vez confirmada a vitória nas presidenciais brasileiras – antes da oração de graças pela sua eleição e do discurso de propósitos –, ouvimos uma citação do Evangelho segundo S. João: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”
Curiosamente, é esta mesma inscrição que se encontra gravada numa parede, na entrada do primeiro edifício-sede da CIA, em Langley, Virginia, como divisa da instituição: “And ye shall know the truth, and the truth shall make you free.”
Mas o texto completo do episódio de onde é retirada esta citação é: “Jesus dizia pois aos judeus que criam nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Ev. S. João, 8: 31-32)
De que verdade se trata? Aquela que interessa a uma agência estatal de informação (e de operações especiais) não é tanto a do discipulado cristão, baseado na palavra de Jesus. É mais a do conhecimento dos meios e intenções de quem seja definido como inimigo do mesmo Estado. E essa verdade pode eventualmente ser procurada, como sabemos, pela prática da tortura de suspeitos.
Pelo que o próprio Jair Bolsonaro declarou, ao longo da carreira que o trouxe até à Presidência do Brasil, há aqui uma proximidade preocupante de exegese, entre a sua referência bíblica favorita e a que foi adoptada na CIA.
Está acessível, no YouTube, a sua declaração de voto na arrepiante sessão de impeachmentda Presidente Dilma Roussef, onde ele dedicou o “sim”, entre outras personalidades, à memória do coronel Carlos Alberto Ustra, chamando-lhe “pavor de Dilma” – o militar que chefiou o Destacamento de Operações de Informações (no Centro de Operações de Defesa Interna), durante a ditadura militar, e participou pessoalmente na tortura de detidos.
A respeito da verdade, sabemos também como a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro foi potenciada, na recta final, pela produção e multiplicação de mensagens de ódio pelas redes sociais – um território sem lei, onde o procedimento em vigor é o de produzir fakenews, semear e andar depressa, com a ajuda de robôs (contas falsas).
Outro Presidente, Donald Trump, tinha declarado, na sua primeira visita à CIA, logo após entrar em funções, que estava em guerra com os média. Como explicou o jornalista Howard Kurtz, no livro que publicou em Janeiro deste ano, a presente guerra é, finalmente, uma “guerra pela verdade”. O título do livro é Media Madness – Donald Trump, the Media, and the War over the Truth (A loucura dos média – Donald Trump, os média e a guerra pela verdade).
Para esclarecimento de todos, falta aqui, a concluir, mais uma citação do Evangelho de S. João, que vem no mesmo texto, um pouco adiante do que lemos no princípio: “Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira.” (Ev. S. João, 8:44)
E isto interessa-nos a todos, cidadãos, jornalistas ou leitores de jornais, independentemente de seguirmos alguma confissão de fé ou de não termos nenhuma. Estamos todos envolvidos nesta “guerra pela verdade”, ficando desde já prevenidos que, do ponto de vista do Evangelho, a mentira é de natureza “diabólica”.
P.S. – Depois de redigido este artigo, há notícia de que o perfil do atacante da sinagoga Árvore da Vida, em Pittsburgh, cita o mesmo versículo de João 8:44. O contexto das afirmações de Jesus é, neste capítulo como nos que vêm antes e depois (leia-se entre o cap. 6 e o cap. 10), um debate de argumentos sobre o que significa ser “filho de Deus” e “filho de Abraão” – e neste debate são todos judeus: Jesus, os seus discípulos que lhe põem dúvidas e questões, e os “sacerdotes, escribas e fariseus” que procuram refutá-lo. É espantoso (e é significativo) que até um terrorista anti-semita consiga ir buscar ao Evangelho um texto que julga poder usar como auto-justificação para os seus actos.
Breves
Boas notícias

Iniciativa da Assembleia da República
Plataforma PAJE e associação ProChild distinguidas com o Prémio Direitos Humanos 2023
Duas organizações que têm trabalhado na área da proteção das crianças foram as escolhidas pela Assembleia da República para receber o Prémio Direitos Humanos 2023: a P.A.J.E. – Plataforma de Apoio a Jovens ex-Acolhidos e o ProChild – Laboratório Colaborativo. Será ainda atribuída a Medalha de Ouro Comemorativa do 50.º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos aos membros da extinta Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, adianta um comunicado divulgado pelo Parlamento.
Outras margens
Cultura e artes
Filme “O Pub The Old Oak”
Como da desesperança nasce a esperança
Com os seus 87 anos, Ken Loach está tentado a dar por concluída a carreira de realizador com esta película que representou um duro esforço ao longo de dois anos e meio. Contudo, como admite em recente entrevista (Revista do Expresso, 24 novembro), talvez o exemplo de Manoel de Oliveira o leve a prosseguir ainda.
Novo livro
A Bíblia Tinha Mesmo Razão?
Abraão e Moisés existiram mesmo ou são apenas personagens de ficção? O Êxodo do Egito aconteceu nos moldes em que é contado na Bíblia? E a conquista da “Terra Prometida” é um facto ou mito? É inevitável que um leitor contemporâneo se pergunte pela historicidade do que lhe é relatado na Bíblia. Um excerto do novo livro de Francisco Martins.
Ora Vê #2
desejo o carácter comum que permite a liberdade
[as aves extraordinárias atraem gaiolas]
o céu é maior para os mais pequenos
— uma foto de Miguel Cardoso, com texto de Pedro Benino
500 anos das obras
Leituras encenadas de uma trilogia de Gil Vicente
Sem verbas suficientes para uma encenação, o Teatro Maizum apresenta a leitura encenada de uma trilogia vicentina — com as obras Tragicomédia de Dom Duardos, Farsa de Inês Pereira e o Auto Pastoril Português — que durante uma semana (desta segunda-feira, 27, até domingo, dia 3) ocupará o espaço da Galeria Sá da Costa, em Lisboa.
Pessoas

Irmã Seli Thomas
A freira que quer mobilizar 100 mil religiosas na luta contra o tráfico humano
“Mais de 100 mil religiosas estão na Índia. (…) Se todas trabalhássemos juntas no combate ao tráfico através do nosso próprio ministério, poderíamos salvar muitas vidas”. O apelo foi lançado pela irmã Seli Thomas (religiosa indiana das Irmãs Catequistas de Maria Imaculada Auxiliadora), durante o encontro da AMRAT – Talitha Kum, aliança internacional de religiosas contra o tráfico, que decorreu no passado fim de semana na Índia.
Sete Partidas
Se o Evangelho não é migração, então é o quê?
Jornada extensa. Temporã. Três da manhã. Viagem longa. Escalas. Fuso horário. Reuniões à chegada. Demasiadas. Oito da noite. O cansaço a impor-se. A fome a acusar negligência. Ingredientes de sobra para encerrar o dia. Pausar. Parar mesmo. No entanto insuficientes para ignorar os relatos que começáramos a escutar.
Visto e Ouvido
Agenda
[ai1ec view=”agenda”]
Entre margens
O funeral da mãe do meu amigo novidade
O que dizer a um amigo no enterro da sua mãe? Talvez opte por ignorar as palavras e me fique pelo abraço apertado. Ou talvez o abraço com palavras, sim, porque haveria de escolher um ou outro? Os dois. Não é possível que ainda não tenha sido descoberta a palavra certa para se dizer a um amigo no dia da morte da sua mãe. Qual será? Porque é que todas as palavras parecem estúpidas em dias de funeral?
Igreja: não nos serve uma simples administração
Falemos claro, sem personalizar ou localizar, mas pelo que acontece, quase sempre e em toda a parte, nos mesmos cargos, e nas mesmas circunstâncias. Intervenhamos numa atitude conventual, numa expressão que hoje praticamente não se usa e nem sei se se pratica, a chamada “correcção fraterna”. Quero referir-me aos últimos acontecimentos, particularmente, na Igreja; novos Bispos sagrados e novos cardeais purpurados ou investidos e também novas colocações de Párocos. (Serafim Falcão)
O Papa Francisco e a COP28 do Dubai
A COP28 do Dubai que inicia dia 30 de novembro motivou ao Papa Francisco a redação da exortação apostólica Laudate Deum sobre a crise climática, que regista uma intensa carga política: estatisticamente, dos seus 73 pontos, 60 são de natureza exclusivamente política e apenas 13 com conteúdo espiritual, religioso, ou diretamente ligado à vivência da fé cristã. (Dina Matos Ferreira)