
Vicente Jorge Silva. Foto © Alfredo Cunha, cedida pelo autor.
O Vicente. Este seu nome é ele e não outro alguém, nestes dias da sua tão chorada recente morte. Pelos tantos testemunhos daqueles que com ele trabalharam e conviveram, o nome de Vicente Jorge Silva é unanimidade nacional, como Jornalista. Não descrevo o seu percurso, os grandes momentos da sua carreira, os seus múltiplos talentos. Mas lembro a sua presença, o seu pasmo, o seu entusiasmo, a sua indignação em face do espetáculo do mundo. Lembro o seu olhar de inteligência, tão raro e singular o Vicente no gesto e no riso, no desenho das emoções, no desabafo do sofrimento, na expressão do amor, a família sempre falada de cada vez, a família tão perto na sua pronunciada terra. A Madeira, ir e voltar. A viagem. O sabor da vida.
Através de amigos comuns, conheci o Vicente. Alguns anos passados em jantar de tertúlia todas as semanas, em mesa cheia de muitas conversas acontecidas, assim se foi construindo a amizade. Devo-lhe o apoio e ajuda para espaço de opinião que então me foi dado no jornal Público. Devo-lhe o gosto de comentarmos as suas crónicas, os textos escritos e publicados. Falávamos de tudo e nada, de acontecimentos e de notícias, de casos e de pessoas, de variados saberes e invenções.
Descobrimos a cumplicidade na doença. O cancro. E cada vez mais da doença falávamos. Os tratamentos, os hospitais, os exames, as esperas, os médicos eram sequências comuns nos nossos assuntos, na liberdade de nos dizermos a dor ou o cansaço, a inquietação ou a impaciência. A ansiedade. O medo. A Rosana, sua mulher, o José Maria Amador, seu amigo de sempre, eram a maioria madeirense, nas vezes de estarmos juntos eles acompanhavam a cumplicidade.
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No passado 2 de Dezembro, a Capela do Rato teve auditório cheio em mais uma sessão organizada por mim. Nessa tarde, dois jornalistas, Jorge Wemans, crente e Vicente Jorge Silva, não crente, conversaram sobre fé. Retomo momentos de Vicente nesta entrevista, sou capaz de ouvir a sua voz, o riso, a exclamação, o esplendor da fala clara, livre direta. Admitiu: “Sou um agnóstico-católico.”
Diz: “Não sou uma pessoa religiosa. Gosto de ir à igreja, é o espaço onde me sinto melhor, o ambiente das igrejas tem a ver com a paz. Também sou sensível.”
O amor: “Sou dado a afetos, não consigo ligar-me sem uma ligação de afetos. Tenho três filhos. A minha mulher é um amor para a vida. Tenho pena de a não ter conhecido antes. Aconteceu um dia. Tivemos um flash e pronto. Há vinte e tal anos. Sempre me conheci como o mais fiel dos homens. O amor tem a ver com a paz interior.” A fé: “Há tantos sítios onde podemos sentir um apelo. No interior da minha terra, na Madeira, lá nas montanhas, posso sentir esse apelo.”
A vida eterna: “Um católico de crença profunda acredita numa outra vida. Tenho dificuldade em falar, mas quando vou para os tais espaços das igrejas e sinto-me bem, há qualquer coisa. Isso não quer dizer que tenha o apelo da eternidade. Não quero viver com uma projeção de eternidade – se vou para o céu ou para o inferno – tenho dificuldade em me esclarecer a mim próprio, tenho dificuldade em acreditar na vida eterna.”
Jesus: “Cada ateu tem o fascínio pela figura de Jesus. Jesus é um desafio. Tem coisas que me fascinam, mas não era uma figura fácil. Era complexo. Um homem nada vulgar. O seu papel era ser pregado na cruz, morrer na cruz. O Cristo é um ser humano. Teve uma vida como os outros homens. Humaniza-se. Não é um homem que foge ao destino.”
Faz uma confidência: “Encontrei uma forma de viver que me preenche e compensa os lados chatos da vida.”
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Jornalistas, companheiros de trabalho, amigos, vizinhos, Jorge e Vicente entendem-se, na harmonia do contraditório. Vicente afirma: “Vocês têm certezas, ‘nós, cristãos’ – dizem.” Jorge contesta: “O que estás a dizer? Temos mais dúvidas do que certezas.”
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Sem conseguir palavras para dizer as minhas saudades do Vicente, releio o texto de Jorge Wemans no Público. Bem as diz e escreveu o Jorge: “Muito raramente acontece a vida trazer-nos pessoas com quem estabelecemos laços mais fortes do que os de sangue. São amigos que se tornam irmãos. A mim aconteceu-me o Vicente.”
Assim, em modo de despedida.