Escritora ucraniana Victoria Amelina. FotoTwitter

Após a invasão russa, a escritora tornou-se também uma ativista, de máquina fotográfica sempre à mão, registando crimes de guerra, resgatando pessoas, animando grupos de crianças. Foto reproduzida a partir da conta de Twitter @vamelina.

 

Transportava consigo e com a sua família o que de trágico e empolgante teve e tem a história contemporânea do seu país, a Ucrânia. Morreu de morte matada, aos 36 anos  – mais uma vítima dos mísseis russos sobre alvos civis. Até esta semana, e desde o início da guerra de agressão, existia para resistir, denunciar, abrir janelas de esperança. Era Victoria Amelina. Permanece, dela, a memória.

Escritora de projeção internacional, traduzida em várias línguas, no romance e na poesia, tinha pronto para publicação War and Justice Diary: Looking at Women Looking at War (Diário da guerra e da justiça: olhando as mulheres que olham a guerra). A invasão surpreendeu-a, com o filho de dez anos, no Egito, a partir num voo que já não podia ser para os bombardeados aeroportos do seu país. Três dias depois, tinha conseguido entrar na Ucrânia, num movimento contrário a milhões de compatriotas que buscavam um refúgio de paz em diferentes países da Europa.

A partir de então, a escritora tornou-se também uma ativista, de máquina fotográfica sempre à mão, registando crimes de guerra, resgatando pessoas, animando grupos de crianças. Numa das últimas fotografias que deixou na sua conta no Twitter, Amelina surge de pé a fotografar um prédio bombardeado, no meio de ruínas.

“Victoria Amelina foi uma das escritoras ucranianas mais bondosas e caridosas, que fez muito mais pelos outros do que por si própria”, escreveu o compatriota e conhecido romancista Andrei Kurkov, num elogio no Twitter.

A própria escritora escrevia, na mesma rede social, no dia 24 de junho, três dias antes de ser atingida pelo míssil: “À noite, da minha varanda em Kyiv, observava as bolas de fogo no céu e ouvia as explosões. Fui dormir sem ver as notícias. A guerra é quando já não se pode seguir todas as notícias e chorar por todos os vizinhos que morreram em vez de nós, a escassos quilómetros de distância. Mesmo assim, não me quero esquecer de saber os nomes”.

Para conhecer um pouco da visão desta jovem escritora, vale a pena ler o texto que apresentou no final de 2022, numa conferência internacional sobre Home/Lands [Pátria/Terras], realizada na Polónia e que está disponível online, com o título “Expanding the Boundaries Of Home: a Story for Us All” (Expandindo os limites da casa/da pátria: uma história para todos nós) e que constitui uma forma de ler a história do seu país e, nessa leitura, interpretar o episódio mais recente, que viria, de resto, a ceifar a sua própria vida.

Nesse texto, ela refere que ainda que tenha nascido na parte ocidental da Ucrânia, em Lviv, no tempo de Gorbachev, quando a União Soviética começava a dar sinais de poder desmoronar, foi educada para ser uma cidadã russa: na língua que aprendeu, na escola em que andou, no referencial que recebeu de que Moscovo era o centro do mundo. Isso continuou, em certa medida, mesmo depois da queda dos sovietes.

Aos 15 anos, como prémio de um concurso local em que tinha ficado em primeiro lugar, foi enviada a Moscovo em representação da cidade natal e, aí, a entrevistadora de uma televisão oficial quis forçá-la a confessar, perante a audiência russa, que era perigoso falar russo na Ucrânia recém-independente.

A sua resposta foi: “não sofro nenhuma opressão. Não estarão as suas informações desatualizadas? Sou jovem e não há esse problema entre a geração mais jovem.” E nesses segundos que antecederam a resposta ela acha que descobriu, “de uma vez por todas, onde ficavam os limites da minha casa”.

Mas a experiência de encontrar jovens de várias outras partes que haviam integrado a URSS fê-la tomar consciência de que os russos continuavam a investir muito na formação dos jovens desses territórios em língua e cultura russas. “Talvez mais do que nas zonas rurais da própria Rússia”, comenta ela.

 

“Obrigados a desconfiar uns dos outros”

Victoria Amelina adverte que a história da Ucrânia é bem mais “dolorosa, complexa e dramática” do que a música Winds of Change, dos Scorpions que ela cantava por essa altura e que dizia algo como: “O mundo está a fechar-se/e tu já pensaste/que poderíamos ser tão próximos, como irmãos?”. Os traumas de uma tragédia como o Holodomor ou Grande Fome, imposta pelo terror pelos russos, em 1932-1933, que causou a morte de milhões de ucranianos, nunca foram assumidos e transmitidos, no interior de muitas famílias, alimentando um silêncio que, por sua vez, alimentava a desconfiança uns nos outros. Ora, entende a ativista e escritora, “apenas histórias verdadeiras nos incluem a todos numa grande narrativa que compõe um país e [que] nos permite ser verdadeiros uns com os outros, reconquistando a confiança entre todos”.  “Pelo contrário – acentua ela -, o silêncio cria fissuras tão profundas que dificilmente é possível alguém sentir-se em casa”.

Este sentir-se ou não em casa torna-se mais significativo, no momento em que Amelina concretiza: “Quando histórias como o Holocausto ou Holodomor não são totalmente reveladas, somos obrigados a desconfiar uns dos outros. Quem era, afinal, você? O faminto ou o que levou toda a comida em 1933? Aquele que disparou sobre ativistas ucranianos em 1941 ou aquele que procurou o seu ente querido entre os corpos em decomposição? O assustado que assistia pela janela quando os judeus foram levados ou aquele que os levou? Aquele que escreveu ao KGB sobre seu vizinho ou aquele que realmente ajudou os dissidentes ucranianos? Houve silêncios em vez das histórias tão necessárias. E onde faltam histórias verdadeiras, falta confiança”.

Nesse sentido, a Revolução da Dignidade, no final de 2013, foi para a autora de “Expanding the Boundaries of home”, um momento decisivo, quando na Praça da Independência, em Kyiv, a polícia usou violência extrema contra os estudantes. Ficou claro que “era a hora de impedir que a Ucrânia se tornasse um estado autoritário como a Rússia ou a Bielorrússia”, mas, por outro lado, ir para as ruas de Kyiv implicava “correr o risco de confiar uns nos outros”. E o que aconteceu – com algumas centenas de milhares – exprimiu essa confiança.

Porém, no ano seguinte, ainda de acordo com a narrativa de Victoria Amelina, a Rússia invadiu as regiões de Luhansk e Donetzk e anexou a Crimeia, mas o Ocidente não reagiu. Só quando, no regresso ansioso a casa, vinda do Egito, sentiu, dois dias depois da invasão de fevereiro de 2022, primeiro na fronteira de Praga e, depois na da Polónia, que a Europa estava a assumir como seu o problema da Ucrânia.

Ela conclui deste modo: “Isso pode não ter muito impacto sobre os refugiados da Síria ou do Sudão, infelizmente. Mas acredito que atos de bondade para com um grupo de refugiados podem ensinar-nos a todos, incluindo aos ucranianos, a sermos mais gentis com todas as outras pessoas que fogem de guerras. Podemos escolher exigir ou cantar sobre a fraternidade utópica, ou podemos trabalhar diligentemente para expandir os limites do frágil espaço compartilhado de confiança que temos”.

 

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