
Na Antártida, Erling Kagge (autor de Silêncio na Era do Ruído) “podia ouvir e sentir o silêncio”. Foto © Dick Hoskins / Pexels.
Sinfonia nº 1 de Mahler. Mais um momento único num dos concertos da Fundação Gulbenkian. A música transcende a minha alma, se posso falar assim. Afirma-se que esta sinfonia foi dedicada à mulher da vida de Mahler, Alma. Penso que foi sobre esta Sinfonia que Mikhail Gorbachov, há muitos anos, afirmou: “Na vida há sempre conflito e contradições mas, sem estes, não há vida. Mahler foi capaz de captar este aspeto da condição humana”[1].
Sim, trata-se de uma sublime peça de arte. No seu todo a sinfonia, cuja duração aproximada é de 55 minutos, é formada por quatro movimentos distribuídos da seguinte forma:
- Devagar, arrastando (~ 16 minutos)
- Poderosamente agitado (~ 8 minutos)
- Solene e moderado, sem se arrastar (~ 11 minutos)
- Agitado (~ 20 minutos)
Detenho-me na pausa entre o primeiro e o segundo andamento. O primeiro movimento – “devagar arrastando” – induz um auditório completamente cheio à lentidão, concentração e beleza da presença ao momento. Vínhamos todos lá de “fora”, de uma cidade frenética às sextas-feiras, do ruído das buzinas e da nervosa pressa de chegar… não sabemos bem aonde. Ao primeiro seguia-se o “poderosamente agitado” segundo andamento. Mas entre estes dois andamentos houve a costumada pausa, em geral enfeitada de tosses nervosas, assoar de narizes, um agitar nas cadeiras. Só que, ao invés do que costuma acontecer, instalou-se um silêncio nunca interrompido. Não se ouvia cair um alfinete. Pareceu-me que o tempo tinha parado! Saboreei esta pausa de uma forma muito especial enquanto contemplava os jardins iluminados da Gulbenkian em pano de fundo. Não queria interromper, só queria ficar ali… Paragem. Som e silêncio. Um silêncio nos rodeava, silêncio no nosso interior. Pura transcendência…
Relembrei um momento semelhante quando contemplei ao vivo no mosteiro de Santa Maria dei Fiori (Milão) o fresco de Leonardo da Vinci, A Última Ceia, recentemente restaurado. Do ruído dos corredores – os italianos são especialmente barulhentos – entrámos, em pequeno grupo (não mais de 12 pessoas), no contexto mágico de um refeitório dos monges, despido e escurecido, de modo a podermos contemplar (parecia tão lá no alto…) a luminosidade de um fresco que, sabemos, não irá durar para sempre.[2] Chovia “que Deus a dava”: os nossos guarda-chuvas tinham que ficar à porta para não levar qualquer gota de humidade para dentro da sala. Ao longo dos cinco preciosos minutos em que podíamos estar frente à obra num silêncio absoluto (sepulcral!), as lágrimas correram-me pela cara abaixo sem eu dar por isso, consciente de que provavelmente nunca mais viveria aquele instante. Mas também porque os responsáveis pelo restauro tinham optado pelo efémero em vez do perene, de modo a conservar as tonalidades do fresco, intuição única, inspirada e estética do autor. A maestria de Leonardo retratando o momento sublime da Eucaristia, a partilha do pão com os apóstolos posicionados ao redor de Cristo, está como que em suspenso, tão alta é a parede, na intensidade dramática daquele momento. Na loja do exterior havia centenas de figurações da Última Ceia de Leonardo. Nenhuma conseguia captar em pleno a intimidade e a coloração fabulosa daquele fresco.

Estes foram momentos únicos e por isso me lembro agora do segundo, enquanto escrevo este trabalho. Regressada do concerto a casa retomei, logo nessa noite, a interrompida leitura de um livro de Erling Kagge intitulado Silêncio na Era do Ruído[3]. Tinha-o adquirido na última Feira do Livro mas, surgindo outras “urgências” de leitura, ficou parado estes meses. Tinha-o comprado num impulso, por causa do título. A antinomia silêncio/ruído sempre me seduz quando me confronto com esta urbana vida que levo… Kagge, norueguês, é um advogado de formação, filósofo, pai de duas filhas, apaixonado alpinista, navegador solitário e, ainda, fundador de uma pequena editora. Foi o primeiro explorador do mundo a chegar ao Polo Sul, caminhando 50 dias sozinho pelo gelo antártico, sem comunicações ou qualquer outro apoio a não ser a mochila com o essencial para comer e dormir, e os bastões de ski que o ajudavam na caminhada. Kagge é autor de cinco livros sobre as suas explorações e de uma interessante descrição sobre os caminhos subterrâneos de Nova Iorque. É ainda colecionador de ícones russos. Na crítica do New York Times Kagge é considerado “um aventureiro filosófico ou um filósofo aventureiro…”
O livro de Erling Kagge é atravessado pelo valor que ele dá ao silêncio através de três questões: “o que é o silêncio? onde pode ser encontrado? por que motivo é mais importante do que nunca?” (p. 13). Viajando ao longo destas três perguntas nas 160 páginas do seu livro, Kagge conta aspetos detalhados e episódios bem reais das suas viagens. Ao mesmo tempo entrelaça-os com o pensamento de filósofos, poetas ou outros artistas, clássicos ou contemporâneos – Séneca, Parménides, Pascal, Heidegger, E. B. White, D. F. Wallace, Wittgenstein, N. Cage, Rumi, Marina Abramovic (silêncio e imobilidade) incluindo Jacobsen e Fosse (poetas noruegueses) e mesmo a Bíblia, não esquecendo vários estudos científicos. Uma mina de descobertas, numa espiritualidade sem fim. O livro vem ainda ilustrado com fotografias do autor (e de outros fotógrafos, nomeadamente Ruscha), a preto e branco, desenhando paisagens geladas e realçando o valor da luz e da sombra, das tonalidades do cinzento ao branco.
Escrevendo na primeira pessoa, o autor afirma que “a Antártida é o lugar mais silencioso onde estive” onde “podia ouvir e sentir o silêncio” (p. 21). Kagge caminha inteiramente só – “confortável” nessa solidão, afirma –, por uma paisagem “lisa e branca” no continente mais frio do planeta, descrevendo, por exemplo, “os inumeráveis matizes do branco”. O silêncio “é majestoso”, afirma, mas “o segredo para caminhar no Polo Sul consiste em colocar um pé à frente do outro, e em fazê-lo um número suficiente de vezes” (p. 25). Diz mais adiante sobre esta caminhada: “O segundo desafio mais difícil? Estar em paz comigo mesmo” (ibid). Não vou descrever muito mais deste livro único mas quem me lê desejará saborear comigo, uma vez e outra, cada palavra do que é, em si, um longo poema em prosa.
Num tempo em que precisamos de vidros duplos para ter silêncio em casa ou nos protegermos do som infernal das brocas que perfuram azulejos da casa do vizinho ou lá em baixo na rua; num tempo em que tanta gente só adormece mantendo a TV ligada ou ouvindo o spotify nos auscultadores incansáveis do telemóvel com os fios a adentrar-se nos ouvidos, da real dependência de ecrãs e luzes fosforescentes, do facebook e do whatsapp – que cansaço! –, é preciso reaprendermos o silêncio: para além dos ruídos que nos envolvem – só nos lembramos da sua intensidade quando usufruímos o silêncio no campo –, das solidões provocadas pelos confinamentos sucessivos ao longo desta “ruidosa” pandemia (que grudou tantos de nós à televisão), é urgente desintoxicarmo-nos com… SILÊNCIO. Sim, “o silêncio é cheio de substância” afirmava o Saint Exupéry da minha juventude em Cidadela. Nir Fyal, no seu livro Hooked (Viciados, mencionado por Kagge), fala em muitos de nós viciados no écran e descreve “o ciclo da dopamina”… (p. 60). Refere ainda que o New York Review of Books descreve essa “nova batalha entre os produtores de aplicações como ‘as novas guerras do ópio’” (p. 62).
Voltando ao Silêncio de Erling Kagge: “Acredito que é possível que cada um de nós descubra o silêncio no seu interior” escreve; “quanto mais silencioso eu ficava, mais ouvia.” No entanto explica: “Em Oslo, é mais difícil (…) mas é lá que tenho de dar forma ao meu silêncio”, acrescentando: “Se não tivesse sido capaz de experimentar o silêncio no meio do bulício citadino, o meu desejo de silêncio seria imenso e teria a necessidade de regressar mais vezes ao contacto com a natureza” (pp. 36-38).
Afirma ainda que “o silêncio pode ser um consolo e uma fonte de enriquecimento poderoso” (p. 45) e cita o poeta Jacobsen:
O silêncio que vive na relva
Na parte interior de cada folha
E no espaço azul entre as pedras.
Muito pragmaticamente Kagge enuncia que “o silêncio, em si, é rico, (…) é um recurso prático para viver uma vida mais rica (…) uma maneira mais profunda de sentir a vida” (p. 46), mas insiste: “Vivemos na era do ruído. O silêncio está em via de extinção” (p. 49). “Atarefarmo-nos torna-se um objetivo em si, em vez de permitirmos que a mesma inquietação nos leve avante” (p. 75). Lembra que “Jesus e Buda resolveram aventurar-se em direção ao silêncio, de forma a perceber como deviam viver. Jesus foi para o deserto e Buda para a montanha (…). Em silêncio Jesus preparou-se para encontrar a Deus” (p. 91).
Avançando para o fim da sua viagem-livro pelo silêncio, Kagge conclui: “Aquilo que é silencioso no nosso íntimo permanece um mistério: Acho que não devemos esperar que seja de outra forma (p. 113).” Acrescenta no entanto que “A ausência de som é frequente na música (…) porém é a cesura, são as pausas entre as notas – o silêncio entre os sons dos instrumentos – que prefiro. É então que me sinto plenamente desperto (…). Sem o silêncio “nem a poesia, nem a filosofia ou a música de Bach existem” (pp 113-115). Finalmente conta que, numa breve conversa com a artista performativa Marina Abramovic, ela lhe explicou: “a melhor maneira de descrever o silêncio seria pôr uma folha de papel A4 numa fotocopiadora e colocar o original e a cópia lado a lado. ‘Isso é o silêncio’” (p. 131).
Aonde nos trouxe Mahler e o silêncio entre o primeiro e o segundo andamento da sua 1ª Sinfonia!
Num momento final do seu livro, Erling Kagge descreve “a hipotética diferença entre a eternidade e uma breve partilha de tempo” (pp.107-108) com um magnífico poema de William Blake:
Para ver um Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor Silvestre,
Segura o Infinito na palma da tua mão
E a Eternidade numa só hora.

Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior e integra o Movimento do Graal; contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com
Notas
[1] Mikhail Gorbachov, Sozinho com si (consigo) mesmo: Memórias. Trad. Luís Santos. Ed. Desassossego – Livros para Pensar, 2007.
[2] Aquando do último restauro da Ceia de da Vinci optou-se por conservar as cores naturais (que se irão esvair no tempo) em alternativa a um restauro (como, por exemplo, o da Capela Sistina) em que estão alteradas as cores originais.
[3] Erling Kagge. Silêncio na Era do Ruído. Quetzal Editores, 2017