
Captura de imagem de reportagem da Fox News sobre o massacre no supermercado em Buffalo (EUA). O ataque está a ser investigado como “crime de ódio”: o jovem branco de 18 anos matou dez pessoas e feriu três — 11 das vítimas eram negras.
Um fim de semana trágico de tiroteios em três localidades dos Estados Unidos da América (EUA) voltou a pôr em evidência graves e endémicos problemas que corroem a sociedade daquele país.
No domingo, 15 de maio, um homem abriu fogo sobre os participantes (em boa parte originários de Taiwan) num almoço que decorria nas instalações de uma igreja presbiteriana, em Laguna Woods, na zona sul da Califórnia. O resultado foi um morto e cinco feridos e o balanço não foi mais trágico porque alguns paroquianos conseguiram neutrallizar o atacante, num gesto que o xerife local considerou de “excecional bravura e heroísmo”.
No mesmo dia, e quase à mesma hora, no condado de Harris, Houston, dois homens travaram-se de razões num mercado de objetos de segunda mão ao ar livre e desataram aos tiros, de forma descontrolada. Resultado: dois mortos e três pessoas a terem de recorrer ao hospital para curar feridas.
O caso mais grave registou-se, porém, no dia anterior, na cidade de Buffalo, estado de Nova Iorque, junto à fronteira com o Canadá. Um jovem branco de 18 anos, vindo de uma localidade situada a mais de 300 km, chegou a um supermercado que serve uma comunidade maioritariamente negra e começou a disparar. Resultado: dez mortos e três feridos. Onze das vítimas eram negras, várias das quais membros ativos e reconhecidos da comunidade local. O atacante foi preso pela polícia.
Tratou-se aparentemente de um ato minuciosamente planeado. Segundo as autoridades, o jovem chegou à cidade na véspera e fez um reconhecimento do local. No dia, saiu do carro e começou a disparar ainda no parque de estacionamento. Quando se dirigia para o interior do mercado, abateu o segurança e disparou sobre funcionários e clientes, antes de ser persuadido pelos agentes a não disparar sobre si mesmo e a entregar-se.
“As evidências que descobrimos até agora não dão margem a dúvidas. Este é um crime de ódio absolutamente racista que será processado como crime de ódio. É alguém que tem ódio no seu coração, alma e mente”, disse o comissário de polícia de Buffalo, Joseph Gramaglia, citado pela rede National Public Radio (NPR).
O autor desta tragédia aparenta ser um defensor da supremacia branca e da “teoria da substituição”, propagada pelos setores de extrema-direita mais radicalizados do país. Trata-se de uma teoria da conspiração, sem qualquer fundamento, segundo a qual os democratas e grupos de elite dos EUA estariam paulatinamente a executar um plano não assumido de substituição dos brancos por pessoas de cor negra. Estas ideias constam de um manifesto de 180 páginas, disponibilizado online, que os investigadores admitem ser da autoria do atirador.
“Supremacia branca” tornou-se um “veneno”
Num ato público realizado esta terça-feira em Buffalo, o Presidente Joe Biden não hesitou em considerar estar-se perante “um ato de terrorismo doméstico” e que este caso só vem ilustrar como a “supremacia branca se tornou um veneno” que “não pode ter lugar na América”.
A Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, por sua vez, ofereceu orações pelas vítimas, familiares, comunidades afetadas e por todos quantos “arriscaram as suas vidas” em resposta aos pedidos de ajuda.
“Os bispos novamente pedem um diálogo honesto fundado em Cristo para enfrentar o mal persistente do racismo” no país, acrescentou a nota episcopal sobre os tiroteios, sem referir a questão da supremacia branca, antes remetendo para um documento da Conferência, de 2018, sobre o racismo.
Os bispos sublinham ainda que “a Igreja Católica tem sido uma voz consistente em prol de formas racionais e eficazes de regulamentação de armas perigosas”, defendendo o fim da violência e o respeito e a dignidade de todas as vidas.
Vários bispos pronunciaram-se individualmente sobre a matança de Buffalo. Mark Seitz, bispo de El Paso, no Texas, por exemplo, comentou que “a fé obriga a dizer não às forças apodrecidas do racismo, não ao terror e não ao silenciamento mortal de vozes negras e mestiças”.
Quase 200 casos de tiroteios indiscriminados desde janeiro
Ainda que o passado fim de semana tenha sido o mais negro do ano de 2022 nos Estados Unidos da América, a verdade é que o problema da violência descontrolada e frequentemente de cunho racista é muito mais vasto.
Segundo dados do Gun Violence Archive (Arquivo da Violência com Armas) publicados pela rede National Public Radio, nos meses que levamos de 2022 ocorreram naquele país 298 casos de tiroteios em massa [o critério de contagem baseia-se em casos em que tenha havido pelo menos quatro vítimas, incluindo mortos e feridos e excluindo o atirador]. Isto dá uma média de dez ataques por semana e mais de um por dia.
Estes dados situam-se em linha com os dos anos anteriores. Assim, de acordo com a fonte citada, o ano de 2021 terminou com 693 tiroteios em massa, e o de 2020 com 611, o que significa que a pandemia da Covid-19 não parece ter feito diminuir este tipo de comportamentos.
Os estudiosos deste fenómeno apontam para uma diversidade de fatores que influem nos autores deste tipo de crimes. O fator saúde mental surge frequentemente no senso comum como determinante. Os perpetradores seriam loucos ou perturbados. Mas as pesquisas mostram que, em muitos casos, há uma abordagem racional e organizativa sofisticada. Como refere o site da NPR, o suspeito do ataque de Buffalo deixou para trás um discurso racista, vestiu uma armadura e transmitiu o ataque ao vivo.
Por outro lado, a questão da facilidade de acesso e de uso de armas sofisticadas, que, podendo não ser determinante, surge associada a estes casos, não parece ser muito debatido, a não ser na sequência de casos especialmente mortíferos. No entanto, a National Rifle Association, que constitui um lobby económica e politicamente poderoso, tem atuado de modo a travar todas as tentativas de regulamentar e reduzir as condições e facilidades existentes para o cidadão comum.