No final das exéquias de Maria da Conceição Moita, conhecida entre familiares, amigos e vários círculos por Xexão, celebradas na manhã deste dia 2 de Abril, Sexta-feira Santa no calendário cristão, a família quis partilhar o texto que ela deixara. Uma espécie de testamento espiritual, que o 7MARGENS aqui reproduz com autorização da família.
Aquilo que eu vos deixo

Maria da Conceição Moita em sua casa, em Setembro de 2020. Foto © Marta Parada
Gostava de vos deixar sobretudo a certeza de quanto vos amei, com toda a ternura, por vezes com falta de jeito.
Se vos magoei nalgum momento, mesmo sem intenção, peço desculpas.
Queria muito que guardassem de mim esta ideia – só vale a pena viver com um encantamento, com um sentido. Persegui-lo é o mais importante.
E saber que na vida todo o bem é possível.
E que a frescura do riso é coisa a não perder.
E os amigos, o dom surpreendente de cada dia.
Que a grande tarefa é ir fazendo mais humano o tecido das relações, no tempo que nos é dado. E gastar a vida a transformar o mundo que espera pela justiça e pela fraternidade.
Não deixar, a todo o custo, endurecer o coração. Porque o amor é de tudo o mais importante. Dá sentido à vida e é mais forte que a morte.
Queria que soubessem que fui uma mulher feliz. E que fiz a experiência do sofrimento indizível. Parece contraditório mas não é.
Trabalhei em projectos com um empenhamento que me iluminou a vida. Fiz caminho a caminhar.
Tive a grande dádiva de ter comigo uma Mão que sempre me salvou. E é bem verdade que conheci a alegria mais funda.
É na certeza leve e limpa que parto, sabendo que na vida não existem rupturas e acreditando que o que me espera é a plenitude do que procuro, sem ser possível imaginar.
Obrigada por tudo quanto me deram. Gratuitamente.
Até sempre. Xexão.

A celebração exequial, que decorreu na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, e foi presidida pelo padre José Manuel Pereira de Almeida, começou com a leitura de um excerto da Carta aos Romanos (8,33-39).
Seguiu-se a leitura do poema Salmo 139, a versão de Herberto Hélder para o texto bíblico:
Salmo 139
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Sabes quando me sento e me levanto,
de longe tu escrutas as menores intenções,
reconheces minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas costas,
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro.
– Oh, tua ciência é a mais prodigiosa.
Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito?
Acho-te nos campos celestes e nas funduras da treva.
Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas,
agarra-me a tua mão que jamais me deixará.
E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim,
para teus olhos as noites nada mais são do que luz.
Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne,
quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe.
Maravilho-me ao pensar no enigma criado.
De há muito já decifravas labirintos da minha alma,
e vias erguer-se a máquina dos meus ossos obscuros.
Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto.
Ainda antes do tempo fixaras os meus dias.
Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar?
Que se estendem pelo tempo como na terra as areias.
(…)
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá-me o caminho secreto para a tua eternidade.

O texto proclamado em seguida foi o da narração da morte de Jesus, de acordo com a versão de Lucas (23,33-24,10a). Depois da homilia, Isabel Allegro Magalhães rezou o texto que ela própria escrevera da
Oração Universal
Aqui presentes, ó nosso Deus, entregamos esta páscoa da Xexão, a sua passagem desta Terra passageira aos Novos Céus e à Nova Terra, ainda invisíveis e desconhecidos, e em que a Xexão intensamente acreditou, vivendo à luz dessa Promessa.
Meu Deus, nas vossas mãos colocamos a nossa prece.
Nós vos louvamos, ó Deus, pela vida da Xexão: uma vida consentida, aprumada; sempre firme e sempre doce.
No seu caminho, sem cessar procurou o vosso rosto;
inteira, lutou pela justiça, e (como Paulo) foi conduzida à prisão;
viveu o dom de si mesma, em exigência e generosidade, na sua relação a todos e com cada pessoa; acolheu, nos últimos meses – com o seu sorriso e em profunda serenidade –, a doença que viria apagar o seu corpo.
Meu Deus, nas vossas mãos colocamos a nossa prece.
Também nós, meu Deus, acreditamos num Novo Céu e numa Nova Terra que se nos hão-de abrir. E neste momento vos pedimos:
para a Família da Xexão (o Luís, a Ana, as sobrinhas, os sobrinhos)
e para nós, seus muitos amigos e amigas, a sabedoria
para desenrolarmos a tristeza como quem acende uma vela, para consentirmos na ausência como quem decifra um oráculo, sabendo que, mesmo sem ser vista, também sobre nós se ergue a Luz da Ressurreição.
Meu Deus, nas vossas mãos colocamos a nossa prece.
No final, depois da leitura da mensagem de Conceição Moita, Francisco Fanhais entoou a Canção da Cidade Nova, que ele próprio musicou para um poema de Fernando Melro a partir do livro bíblico do profeta Isaías:
(Texto actualizado dia 3 às 13h30 com a versão final da Oração Universal lida e a fotografia da celebração)