
Regresso a casa: “Terá sobrado tempo e cabeça para aprender a estar em casa?” Foto © Marta Saraiva
A Primavera vai dando uns sinais de não aparecer por aqui, num saudável desprezo pela data do calendário. Ainda assim, entre os dias mais claros e compridos, e mais umas horas de luz, as primeiras folhas nas árvores, vai apetecendo preparar a casa para a nova estação.
Nesta limpeza de Primavera de 2021, é impossível não regressar aos mesmos dias de 2020. Que podem ter sido ontem. Ou há seis meses. Assegurar compras essenciais, evitar beijos, abraços e toques, uma irresponsabilidade de última hora, ir reduzindo viagens e vida social até chegar ao zero. E, finalmente, recolher.
De um dia para o outro, a maioria dos gestos quotidianos – desde o ir ao multibanco ao pedir um café – tornou-se inútil. Sobraram os que geralmente passam despercebidos, ou seja, todos os gestos “domésticos”. Pelos vistos, ia passar o tempo da Quaresma com uma quase desconhecida: a casa.
Enquanto o mundo se reorganizava, houve umas semanas para reflectir na relação que mantemos com a casa onde moramos, com a ideia de casa, e em como essa relação afecta a vida espiritual. “Não temos aqui morada permanente”, é certo, mas também há algo de incómodo nos 40 anos que o povo de Israel precisa para chegar à Terra Prometida ou nas andanças de Jesus, Maria e José pelo Egipto.
Tendo vivido a vida toda em cidades, foi rápido reconhecer que passamos, por definição, muito tempo na rua. Horas a ir e vir de escolas, universidades e trabalhos, cargas lectivas e laborais pesadas, chegar tarde, trabalhos de casa, tarefas domésticas, jantar, algum tempo livre, dormir (pouco), e recomeçar na manhã seguinte. Ao fim- de-semana, espairecer, fazer programas. Não poucas vezes, toda esta coreografia dá-se em cidades atoladas em ruído e em trânsito, luz artificial e poucos espaços verdes. Terá sobrado tempo e cabeça para aprender a estar em casa?
Nos primeiros dias, o ritmo manteve-se mecânico e funcional, como se os horários rígidos e os compromissos inadiáveis que impõem despachar um almoço em vinte minutos ou arrumar a sala em quinze se mantivessem. Mais revelador foi perceber que uma imbecil série da Netflix aparentava ser mais urgente e mais importante do que o tratar e gozar a casa. Será que inconscientemente fomos formatados para não valorizar a casa e o estar em casa?
Assumindo o exagero da hipótese, a casa terá sido a grande perdedora da inevitável emancipação feminina e da entrada das mulheres no mercado de trabalho. O ter sido inevitável não significa que tenha sido isenta de perdas inconsequentes. Em paralelo, a vida foi-se orientando para o exterior, para o entretenimento e para o consumo, e a casa terá adquirido o estatuto de espaço sem história, mas que é necessário manter. Só que esse espaço sem história é, por excelência, o laboratório onde nos auto-impomos e testamos limites e nos confrontamos com necessidades tão elementares como a alimentação e o descanso. Será que cozinhamos o suficiente, para o nosso bem-estar espiritual?
Pelo meio da Quaresma, o frenesim acalmara e os horários estavam ajustados aos da luz do Sol (quelle surprise). Caiu a ficha de que o Evangelho está cheio de casas, a de Nazaré, a dos irmãos de Betânia, a de Zaqueu e, obviamente, a da Última Ceia – espanta sempre que tudo tenha começado num jantar –, a do Pai do Filho Pródigo. Não será por acaso que alguns dos episódios mais marcantes aconteçam em casas, como a disputa entre Marta e Maria, a refeição a seguir ao chamamento de Mateus, ou a que Maria interrompe com o perfume que se espalha pela casa. E a Anunciação, que acontece num dia igual a tantos.
O que quer que estes exemplos convoquem, apelam a uma vivência espiritual radicada no quotidiano, na relação consciente de intimidade com os espaços que habitamos, muito corpórea e sensorial. É fácil, nesta era digital, simultaneamente racionalista e sentimentalista, distrairmo-nos e cair numa religiosidade espiritualista e intelectualizada, simbólica, mas desencarnada.
Santa Teresa de Ávila dizia que Deus andava pelo meio dos tachos. Provavelmente, tinha razão.
Marta Saraiva é diplomata, exercendo actualmente funções na Missão de Portugal junto do Conselho da Europa.