Vozes humanas que não escutamos e caminhos de esperança a percorrer

| 9 Nov 2020

“E, todavia, pressinto ainda outra necessidade:a de ganharmos distância para melhor observação e ponderação de valores, tempos e prioridades.” Foto: Pormenor de obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. © Paulo Bateira, cedida pelo autor.

 

Minha Princesa de mim:

Tens-me interrogado sobre o meu silêncio, dizes-me que já leva meses, muitos outros familiares e amigos me perguntam porquês do mesmo, e surgem ainda os que, buscando subtileza, apenas dissimuladamente me manifestam alguma estranheza. Não tenho respondido, por entender que não há resposta a dar: circunstâncias da minha vida têm-me absorvido cuidados e atenção, ao ponto de me roubarem essa tranquilidade de tempo e espírito que nos faculta qualquer diálogo. São, verdade seja dita, condicionantes específicas à minha própria condição familiar, em nada posso referi-las ao ambiente geral de confinamento que a todos nos afecta. Mas é sobre este que te escrevo agora.

Zusamengehörigekeitsgefühl, vocábulo construído por Goethe no século XIX, traduz um conceito que me parece útil em considerações hodiernas sobre as frustrações possivelmente decorrentes da experiência humana de vida em confinamento: na verdade, quer sinteticamente significar a condição e necessidade comum de nos sentirmos pertencer ao conjunto da humanidade. E para restaurarmos tal sentimento de relação ontológica será quiçá indispensável procedermos a um esforço meditado de reinvenção de vivências da nossa condição humana, partindo da reconsideração do que verdadeiramente possa construir-nos como comunidade, isto é, como disse um publicitário parisiense, desse bem imaterial inestimável que é, afinal, a demanda da justiça decorrente de um sentido profundo do bem comum.

A solidão, enquanto distanciamento físico da vida social, é certamente uma limitação condicionada mas, simultaneamente, condicionante da busca de um bem comum que vai para além das transacções habituais e procura outras perspectivas de olhar sobre as relações humanas, libertando-nos dos modelos institucionais e operacionais que actualmente dominam os nossos comportamentos e nos não deixam vislumbrar qualquer conversão a aspirações de maior justiça económica e social, e renovada vivência ecológica e espiritual do mundo e da vida. Por isso estes tempos de “retiro” – assim penso e sinto – também se prestam a um esforço de higiene mental que nos permita promover em nós e fomentar socialmente uma visão mais fraterna e construtiva do mundo, como, com tão franciscana simplicidade, nos propõe a nova encíclica papal Todos Irmãos.

Num artigo publicado na edição da revista americana Foreign Affairs (novembro/dezembro de 2020), a doutora Mariana Mazzucato, professora no University College London, escreve: “…no meio duma pandemia global, o mundo tem a oportunidade de tentar a ambiciosa criação de uma economia melhor. Tal economia seria mais inclusiva e sustentável. Emitiria menos carbono, geraria menos desigualdade, construiria transportes públicos modernos, providenciaria acesso digital a todos, e a todos ofereceria cuidados de saúde…

…Entre os que falam sobre como recuperar da pandemia, aponta-se um objectivo apelativo: o regresso à normalidade. Mas esse é um objectivo errado: o normal está quebrado. O nosso objectivo antes deveria ser “construir melhor do que antes”. Há doze anos, a crise financeira abriu-nos uma rara oportunidade de mudança do capitalismo, que foi desperdiçada. Agora, outra crise nos apresenta outra oportunidade de renovação. Desta vez não devemos deitá-la para o lixo.”

 

 “Fome de pele”

Curiosamente, também apareceu por aí referida, em meios de comunicação europeus, uma expressão holandesa que, afinal, nos deve alertar para certos riscos da impaciência: huid honger, que significa “fome de pele“, isto é, a saudade e o desejo de nos tocarmos em beijos e abraços… Sentimento que, pleonasticamente, podemos qualificar de naturalmente natural, mas que igualmente traduz o nosso gosto da sensação imediata de regresso e de posse.

Ocorreram-me estas lembranças ao ouvir tão insistentes exigências de liberalização dos espaços de circulação e encontro, desde encher estádios de futebol a manter abertos, e úberes de gentes variegadas, estabelecimentos de animação nocturna, vias públicas e centros comerciais, templos e teatros, escolas e centros de reunião e trabalho…

Uma vez mais me parece que tais reclamações são naturalmente naturais, e em muitos casos se justificam pela urgência da manutenção de modos de vida necessários à subsistência das pessoas e das comunidades. E, todavia, pressinto ainda outra necessidade: a de ganharmos distância para melhor observação e ponderação de valores, tempos e prioridades. Na verdade, talvez sejamos, sobretudo, dantes e além de qualquer pandemia, vítimas de nós próprios, do esquecimento de nós enquanto destino comunitário de uma qualquer eternidade e obreiros de contínua renovação ou conversão.

Esta, apesar da sua especificidade – ou talvez por isso mesmo – é, na condição humana, também naturalmente natural. Ouso mesmo dizer que, enquanto humanidade, somos mais reinvenção, recriação, do que obra passiva das circunstâncias. Mais factores do que factos. Mais capacidade de inovação do que de resiliência, palavra hoje tão utilizada para querer dizer apenas – contrariamente (?) ao que talvez pensem os seus muitos utilizadores – “regresso à primeira forma”, recuperação mimética de modelos passados, ainda que comprovadamente já esgotados de capacidades e improdutivos de vida futura. Porque teimosamente nos mantemos confinados no nosso egoísmo cómodo, apenas vislumbramos, nos futuros possíveis, não os horizontes prenhes de promessas, mas o regresso aos nossos modelos falhados.

No campo da pretensa recuperação económica, então, patenteiam-se propostas e projectos que, no passado recente, já demonstraram a sua vulnerabilidade a variações imprevisíveis de mercados incontroláveis e geradores de desutilidades (como o turismo de massa e os transportes aéreos adjacentes).


“Ouviu a voz de Deus num poço tapado”

Entretanto, continuamos a ser um povo pouco instruído, que vai, resignada e tristemente, envelhecendo… Não haverá modo de educar em letras e humanidades, em artes e ofícios? Não seremos capazes de acreditar num povo mais instruído que, usufruindo também de liberdade de empresa, saiba criar riqueza e animar comunidades, sobretudo no interior desolado do país? Será que só reformados estrangeiros podem ter êxito em empreendimentos agrícolas em zonas de Portugal que se foram desertificando?

Escuto, cedendo à tentação de procurar entender o desespero humano, a tragédia lírica La Voix Humaine, com letra de Cocteau e música de Poulenc, interpretada pela soprano Felicity Lott; ouço-a gritar: Sois tranquille, on ne se suicide pas deux fois… où trouverais-je la force de combiner un mensonge, mon pauvre adoré?… e pasmo perante a força letal, mortífera, da mentira política, como a que referia o Príncipe de Lampedusa, justificando a necessidade de mudar tudo para tudo ficar na mesma… Mas dói-me, sobretudo, a agonia dessa mulher que quer comunicar e não consegue, morrendo com um telefone ao colo, sem alma de pessoa…

Assim me magoa essa maldição de tanto destino humano, que a alma de Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos, chorava : Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, / e cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, / e ouviu a voz de Deus num poço tapado. 

Se investirmos na dignidade e capacidade, na educação das pessoas, talvez todos venhamos a percorrer caminhos de esperança. Durante todos estes meses me lembro, todos os dias, das vozes humanas que não escutamos. E, todavia, tenho os ouvidos cheios de números de estatísticas de infectados, mortos e internados, desempregados e famintos, tal como de projecções e fantasias econometristas sobre as “resiliências” que a nossa falta de imaginação e a nossa surdez à vox populorum nos fazem acreditar em que se tratam de reformas para um mudo novo…

Em carta próxima te falarei de um filósofo sul coreano que se formou na Alemanha e se doutorou na Universidade de Friburgo com uma tese sobre Martin Heidegger. Por hoje, apenas citarei, do primeiro parágrafo do seu Vom Verschwinden der Rituale, esta reflexão: Os ritos são acções simbólicas. Transmitem e representam aqueles valores e ordens que mantêm coesa uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto que o que hoje predomina é uma comunicação sem comunidade.

 

Camilo Martins de Oliveira foi diplomata, docente universitário e tradutor; escreve no blogue Raiz e Utopia, do Centro Nacional de Cultura e é autor de “Fomos em Busca do Japão; considera-se próximo dos denominados “Vencidos do Catolicismo”, mantendo-se na comunhão visível da Igreja Católica, ainda que anticlerical.

 

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