
“As igrejas cristãs (nas suas expressões católica, protestantes, anglicanas, ortodoxas…) pelo menos aqui na Europa, têm estado igualmente num processo de caminhada no deserto”. Foto © Patrick Boyer / Pixabay
Desertos, regiões geográficas sinónimas de secura, esterilidade e de isolamento, na antiguidade bíblica sempre foram locais muitas vezes associados a pureza. Sempre que Deus queria preparar o seu povo escolhido para uma tarefa grandiosa, conduzia-o a locais isolados e desérticos. A visão de um povo em movimento, essencialmente nómada, sempre foi tida em contraste com a vida da polis, das sociedades urbanas.
No deserto, o povo depende de Deus para as suas necessidades mais básicas de subsistência como a água e o alimento. Até os seus locais de culto estão em constante movimento – o próprio tabernáculo é disso um exemplo: Deus é adorado no interior de uma simples tenda feita parcialmente de peles de animais e o próprio Javé serve de guia ao povo na sua caminhada durante o dia através de uma nuvem e de noite por uma coluna de fogo.
Já nas sociedades sedentárias, pós-industriais, que conduziram à urbanização, eficiência e conforto que daí advieram, sempre se assistiu ao surgimento de fenómenos de alienação de Deus e afirmação de autossuficiência por parte do povo. Não se pretende aqui afirmar que nunca tenha sido o desejo de Deus a reunir o seu povo numa cidade ou até mobilizar um reino que Ele deseja separado para Si mesmo. O problema estará focado essencialmente ao nível dos relacionamentos entre Deus e o seu povo, os quais se deveriam pautar por intimidade e interdependência total. Deus deseja estabelecer amorosamente um relacionamento forte e duradoiro entre Si e os homens e nada deveria interferir nesse processo.
A Igreja cristã, nas suas múltiplas expressões, de certo modo, encontra-se no epicentro de uma tremenda crise institucional não sabendo muitas vezes lidar com estes novos modelos de paradigma sociais e antropológicos das sociedades pós-modernas. Estudos muito recentes revelam dados assustadores: mais de trinta por cento dos jovens no mundo ocidental – a famosa Geração Z nascida entre 1990 e 2010, assume-se já como “não-religiosos” e os números não param de crescer. O fenómeno é de tal maneira preocupante que alguns sociólogos já afirmaram que o Cristianismo, como padrão ou como norma desapareceu e assim permanecerá durante os próximos cem anos.
As causas para o fenómeno serão certamente diversas, variando muito em função do contexto cultural, social e até da relação das instituições religiosas com os seus próprios fiéis. Discordância com a liturgia, a doutrina e a ética imposta são as principais causas do afastamento das mais recentes gerações do universo das igrejas institucionalizadas. Mas não são as únicas: o crescente papel da secularização da cultura tem também levado a uma maior individualização e privatização da experiência religiosa.
A juntar a tudo isto, a presente era da digitalização empurra os jovens para novos e perigosos desafios. O aumento exponencial da informação nesta era do digital, e que expõe novos formatos de relacionamentos entre as pessoas, quase que mudou totalmente os antigos paradigmas de socialização, catapultando-os para a virtualização dos mesmos com todas as consequências nefastas que daí possam advir. As próprias disciplinas sociais, entre as quais a antropologia, a linguística e a psicologia em particular, debruçam-se sobre novas patologias para as quais ainda não encontraram respostas, perante a celeridade destes novos fenómenos sociais.
É igualmente verdade que, como diz Lipovetsky, a cultura hipermoderna é caracterizada pelo enfraquecimento do poder regulador das instituições coletivas, sejam elas a família, a religião, os partidos políticos ou as culturas de classe. Portanto, as presentes gerações vão-se mostrando cada vez mais abertas a mudanças, fluidas e socialmente independentes. Mas essa volatilidade, continua Lipovetsky, significa muito mais a desestabilização do eu do que a afirmação triunfante de um individuo que é senhor de si mesmo. E isso vai-se comprovando pela crescente onda de sintomas psicossomáticos e transtornos compulsivos, depressões, ansiedades e tentativas de suicídio, sem mencionar o aumento dos sentimentos de impotência e autoestima. Encontramo-nos assim, e especialmente muitos dos nossos jovens, em pleno deserto existencial, sem rumo, sem referências, procurando o sentido para a vida.
As igrejas cristãs (nas suas expressões católica, protestantes, anglicanas, ortodoxas…) pelo menos aqui na Europa, têm estado igualmente num processo de caminhada no deserto, o que não deixa de ser paradoxal. Se por um lado se assiste a uma crise institucional no seu próprio seio, também ela(s) se interroga(m) sobre como competir com essa sociedade hipermoderna. Talvez aqui se esteja aqui a cumprir aquilo que Dietrich Bonhoeffer vaticinava como o advir de um cristianismo a-religioso nas sociedades secularizadas ocidentais.
Não há dúvida alguma de que as igrejas, como tal as conhecemos presentemente, têm deixado de fazer sentido ao homem moderno e os desafios que se lhe impõem de abertura ao mundo são neste momento abismais. O facto de este mundo presente se tentar libertar cada vez mais de Deus, tornando-se irreligioso, não pressupõe o desaparecimento das igrejas nem a sua capitulação, mas implica antes a transformação das mesmas face a esta mudança de paradigma. Ela é intemporal, eterna, ligada através da simbologia do corpo místico, ao seu próprio Senhor e Deus, mas também deve discernir os sinais dos tempos, como dizia o Papa João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II [1962-1965]. A Igreja é sempre ela mesma uma “eclesia semper reformanda“.
A secularização da nossa sociedade moderna, demanda que as igrejas façam ouvir de novo a sua voz profética através do deserto para o mundo, mas impõe-se-lhes o anúncio de uma mensagem transformadora, cujo discurso faça jorrar essas águas-vivas do Espírito nos corações sedentos desta nossa geração. A história tem mostrado que por vezes o caminho exclusivista, dogmático e autoritário proferido por muitos não tem permitido às igrejas serem esse agente transformador da sociedade. Afinal a mensagem de Jesus é ela mesma, ao mesmo tempo, subtil e radicalmente transformadora: uma pequena pitada de fermento faz levedar a massa de pão, uma pequeníssima semente de mostarda transforma-se numa grande árvore. Afinal, no Reino de Deus, tal como Jesus o idealiza, as transformações dão-se mais profundamente do interior para o exterior.
Nestes tempos estéreis, a Igreja tem de ser portadora dessa mensagem de esperança, vínculo de transformação e canal da ação do Espírito Santo, escutando atentamente as presentes gerações que tanto carecem das águas-vivas, da presença transformadora e misericordiosa do Senhor da Igreja, Jesus.
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.