(Maria da Conceição Moita morreu na madrugada desta terça-feira, 30 de março, a poucos dias de completar 84 anos; uma sua evocação escrita por fr. Carlos Maria Antunes, monge cisterciense do Mosteiro do Sobrado, na Galiza)

Maria da Conceição Moita no verão de 2016, num encontro do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, em Leiria. Foto © António José Paulino.
Na vida da Xexão havia um centro que iluminava toda a sua existência, e esse centro era a relação com Jesus. Esta é a chave de leitura da vida da Xexão. Esta chave abre-nos a motivação do seu agir, o sentido dos seus compromissos políticos e eclesiais, o horizonte do percurso profissional como educadora e formadora de educadores, o acompanhamento a pessoas e grupos mais marginalizados, uma atenção muito grande à família e aos amigos, ao mundo, ao bairro e ao vizinho, a curiosidade intelectual e o interesse cultural, a procura do silêncio, da reflexão e da oração.
Tendo começado por ser uma cristã sociologicamente determinada, bem cedo esta condição se transformou num propósito pessoal de resposta, atravessado pelo encantamento de um encontro e muitas vezes associado ao compromisso entusiasmado, mas também ao estudo, ao questionamento, ao pensamento crítico. O facto de me dizer cristã vejo-o colado à minha própria identidade[1].
A Xexão recebeu uma sólida formação teológica, principalmente no tempo em que integrou a União Noelista Portuguesa, entre 1950 e 1967. Estudou e aprofundou os textos do Concílio Vaticano II. Dizia que, no seu volume com os documentos conciliares, a Lumen gentium e a Gaudium et spes eram quase ilegíveis de tão sublinhado que estava o texto. Ao longo da vida cuidou da sua formação teológica, quer através da leitura quer em encontros com essa finalidade. Identificava como um dos graves handicaps da vida eclesial a generalizada falta de formação bíblica e teológica entre os leigos.
E como entendia a fé?
A fé não se traduz em atos isolados e com pouca coerência entre si, mas num continuum que atravessa o tecido da vida. Exige acolhimento ao dom, iluminação pelo estudo e pela oração, invenção de um estilo de vida próprio enraizado no seguimento de Jesus, testemunho da esperança que dela imana.
É minha convicção que a fé assente na rocha advém da experiência de uma espiritualidade funda. Só quem experimenta um encontro e uma intimidade com Jesus pode dizer ou rezar confiadamente como escreveu S. Paulo: “quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? (…) Estou convencido de que nem a morte, nem a vida, nem o presente, nem o futuro, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso.” E nestas palavras repousar a cabeça[2].
Este trecho da carta aos Romanos (8,35.38-39) é um dos textos bíblicos que mais comoviam a Xexão. Sentia, para ela e para todos, que não há nada que nos possa separar do amor de Deus manifestado em Jesus. E era nesta experiência tão estruturante da sua existência, a experiência do encontro amoroso, que descansava (aqui está o segredo do seu sorriso e da sua serenidade, mesmo no período de doença grave e na proximidade da morte) e que, ao mesmo tempo, se inquietava com o sofrimento de alguém, mais próximo ou mais distante, com uma situação dolorosa nalguma parte do mundo ou com a solidão e necessidade de apoio de uma amiga. O que posso fazer? Que forças podemos congregar? Orientava-se sempre para o compromisso efetivo com o outro. Contemplação e ação, dimensões inseparáveis na sua vida, alimentadas na relação viva com a pessoa de Jesus.
Onde nos levará a fé?
A uma intensa e entusiasmada procura de uma prática no seguimento de Jesus, vivida no amor ao outro próximo ou distante.
A uma espiritualidade densa, fruto da contemplação e do silêncio, talvez mais alimentada por uma teologia negativa.
A uma experiência de compromisso com o bem de cada um dos humanos, nossos irmãos, assente numa mística de olhos abertos, numa procura de presença ao mundo[3].
Sempre afirmou sem hesitação a sua pertença eclesial, desejando uma Igreja simples e acolhedora, com intensa vida fraterna, aberta a toda a gente, que privilegiasse claramente o serviço aos mais pobres e que estivesse atenta e se deixasse interrogar pelas questões do seu tempo, que procurasse uma linguagem bela e inteligente para dizer o amor universal de Deus. Entristecia-se quando não transparecia na vida eclesial a mensagem e a vida de Jesus.
Habitada pela alegria

Num texto seu, escreve: “A compaixão profunda com o sofrimento no mundo é compatível com uma alegria que nos transcende.” Foto © Ana Cordovil.
Habitava-a uma genuína alegria pela vida. Alegrava-se com os êxitos dos amigos, com ver os mais pequenos da família a crescerem em autonomia, com uma vida reencontrada, com um gesto de bondade, com os jacarandás em flor… Estava atenta ao acontecer da vida. Alegrava-se muito com o bem, com a liberdade, com a justiça e com a bondade. Amava a vida. E perguntava-nos, aos amigos, que lugar tinha a alegria na nossa vida. Desfrutava do prazer do lúdico e da fruição gratuita. Não alinhava nada com uma certa veneração da tristeza.
Num texto seu, escreve: sabemos que a compaixão profunda com o sofrimento no mundo é compatível com uma alegria que nos transcende e que nos é dada a partir de um inexplicável encontro com Jesus. (…) Com Jesus Cristo renasce sem cessar a alegria[4]. Experimentava uma alegria profunda, como um dom que nos visita e que não depende das circunstâncias em que nos encontramos, compaginável inclusivamente com o sofrimento. Num testemunho, que partilhou num encontro do Metanoia, disse: gostaria de fazer uma tenda no mais fundo de mim e ocupar o meu centro em permanência, para aí encontrar a fonte verdadeira da minha alegria[5]. Definia, assim, a orientação fundamental da sua vida.
Já muito doente, sentindo que estava a perder faculdades importantes, numa das últimas conversas, disse-me ao telefone: tenho medo de perder a alegria.
Os amigos
A Xexão contava que, estando na fase de isolamento na cadeia de Caxias como presa política, teve que organizar o seu quotidiano de modo a permanecer psicologicamente saudável numa situação tão precária. Uma das suas atividades era “convidar” um amigo, todos os dias diferente, em quem centrava a sua memória, lembrando o que tinham vivido e dito e rido e chorado juntos. Diz que este jogo imaginário lhe ocupou a memória e foi “zona de conforto” naquele tempo tão duro.
Isto diz bem não só da criatividade da Xexão e da sua capacidade de resistir em situações adversas, mas sobretudo da importância dos amigos na sua vida. A Xexão sempre viveu numa ampla rede de relações, onde se cruzaram pessoas muito diferentes. Ela gostava dessa diversidade. Existe um mar onde nos podemos encontrar todos – um humanismo profundo[6]. Cultivava com as pessoas relações de proximidade e de confiança. Estava atenta, cuidava, visitava, telefonava, acompanhava.
Eu pertenço a um grupo de amigos de uma geração mais nova do que a sua. Conhecemos a Xexão nos anos 90, quando éramos universitários e quando ela integrou a equipa de assistentes do MCE da Diocese de Lisboa. Orgulhava-nos o seu passado político, reconhecíamos a sua coragem e inteligência e a lucidez no seu olhar crítico. Progressivamente a Xexão foi fazendo parte da vida de alguns de nós, construindo relações muito significativas.
O que começou por ser uma relação fundada na cumplicidade na visão sobre a sociedade e a Igreja e as transformações que nelas gostaríamos que acontecessem, foi incorporando dimensões mais pessoais das nossas histórias. A Xexão tornou-se para alguns de nós em lugar de escuta, de efetivo apoio e de companhia em momentos de perplexidade. Desafiava-nos sempre para uma vida mais livre, alicerçada em valores, onde a alegria e o gosto pela vida tivessem um lugar central. O que era mesmo importante era que fôssemos felizes. Esteve presente nos momentos decisivos da história de muitos de nós. E acompanhava-nos sempre.
Deixar-se fazer

Setembro de 2020, na sua casa, em Lisboa: “Para uma mulher para quem o fazer foi tão importante, foi dando um lugar maior na sua vida, com grande sabedoria e desprendimento, ao deixar-se fazer.” Foto © Marta Parada.
Quando lhe comunico a decisão de fazer-me monge, escuta atentamente e quer perceber as minhas motivações. Conversámos em diferentes ocasiões, demoradamente, sobre este tema. Queria assegurar-se que eu não fugia do mundo e que não me desinteressaria pela complexidade da História. Acompanhou-me como nunca nos meses que precederam a minha entrada no mosteiro. Desejava estar comigo, sentia, nessa época, que se aproximava uma perda. Reuniu um grupo de amigos antes da minha partida: era importante que eu explicasse a todos, era muito importante que eles soubessem que no centro desta decisão estava Jesus.
Todos os anos vinha ao mosteiro. Nalguns deles, mais do que uma vez. E estava aqui uns dias. Desejou, de alguma forma, tanto quanto lhe era possível, entrar neste caminho comigo. Interessava-se por tudo o que aqui se vivia. Desejava perceber as motivações mais fundas dos monges e o horizonte do nosso compromisso com os outros. Sempre que vinha, encontrava-se com o prior da comunidade e conversavam. O modo de vida dos monges interpelava-a.
Partilhámos, intensamente nestes últimos anos, os nossos percursos interiores com grande confiança. Não tivemos medo de ser vulneráveis um diante do outro. Acima de tudo, procurava a verdade. Com humildade lia a sua história e confrontava-se, sempre com inteireza e sem minoramentos estéreis, sob o olhar do amor incondicional de Deus. Para uma mulher para quem o fazer foi tão importante (era uma líder, com visão e determinação, com uma capacidade de convocação e de organização impressionante), foi dando um lugar maior na sua vida, com grande sabedoria e desprendimento, ao deixar-se fazer. No silêncio e na solidão da sua casa fazia a experiência de ser habitada pela presença de Jesus e pela presença de tantas pessoas, a quem se sentia unida. Percorria o caminho do abandono confiante nas mãos de Deus. Sabia de memória a conhecida oração de Charles de Foucauld:
Meu Pai,
eu me abandono a ti,
faz de mim o que quiseres.
O que fizeres de mim,
eu te agradeço.
Estou pronto para tudo, aceito tudo.
Desde que a tua vontade se faça em mim
e em tudo o que criaste,
nada mais quero, meu Deus.
Nas tuas mãos entrego a minha vida.
Eu te a dou, meu Deus,
Com todo o amor do meu coração,
porque te amo
e é para uma necessidade de amor dar-me,
entregar-me nas tuas mãos sem medida
com uma confiança infinita
porque Tu és meu Pai.
Envelhecer foi um dos temas que a inquietou e que lhe mereceu interesse nos últimos anos. Não só o seu próprio envelhecer, também, mas sobretudo a situação geral dos mais velhos, de muitos dos seus amigos nesta etapa da vida, preocupando-se com a busca de alternativas para uma vida digna até ao fim. Estar vivo até ao fim, ser respeitado até ao fim e viver a alegria até ao fim, eram preocupações suas. Leu sobre o tema, refletiu, escreveu, desafiou outros. Buscava sempre uma intervenção informada.
Manteve sempre vivo um olhar largo sobre o mundo. Conversávamos com o mesmo interesse da nossa intimidade ou da situação social e política do país. Em tudo conjugava uma grande ternura e delicadeza com a lucidez e o sentido crítico.
Há três ou quatro anos, ao despedirmo-nos no aeroporto da Corunha, inesperadamente, disse-me: tenho pressa. Não, não estava atrasada para o embarque. Falava de outra viagem. Disse-me isto no último momento, não havia tempo para continuar a conversa. Voltei para casa a dar voltas a esta perturbadora declaração. Eu sabia que a Xexão amava a vida. Estaria a ser tão difícil viver o seu próprio envelhecimento?
Mais tarde, ao telefone, retomámos a conversa. Confessou-me como desejava a plenitude, como se sentia atraída pela casa do Pai. Claro que sim, que amava muito a vida e que desfrutava muito por estar viva, mas desejava mais. A cidadã, que sempre se quis implicada na vida da cidade (o interesse pela política), desejava os novos céus e a nova terra, a cidade futura, onde todas as lágrimas serão enxutas, onde não haverá mais morte, nem luto, nem dor (cf. Ap 21,1.4). Na sua vida, as duas cidades sempre estiveram unidas como duas margens do mesmo rio; porém, foi-se apercebendo que se aproximava a viagem maior, e viu-a chegar com alegria, de pé, inteira, pronta para a consumação final do desejo do Amor.
Notas
[1] De que falamos, quando falamos de fé? – intervenção no Centro de Reflexão Cristã, de Lisboa, no dia 18 de dezembro de 2012.
[2] ibid.
[3] ibid.
[4] A saída – Evangelii gaudium – intervenção no CRC no dia 7 de maio de 2014.
[5] Testemunho num encontro do Metanoia – Movimento Católido de Profissionais, no dia 3 de março de 2012.
[6] De que falamos, quando falamos de fé?