Yves Congar, uma viva fonte de inspiração

Yves Congar. Foto © Arquivo da Ordem dos Pregadores
Yves Congar, uma das figuras gigantes da teologia cristã do século XX, morreu há 25 anos – completados no dia 22 de Junho. Sobre Congar alguém teria dito que o Concílio Vaticano II, que promoveu a reforma do catolicismo, era ele. A propósito da data, o 7MARGENS pediu a frei Bento Domingues, seu confrade da Ordem dos Pregadores, um testemunho sobre a figura do dominicano francês e a sua obra.
1.
O dominicano Yves Congar foi um dos maiores teólogos do século XX e continua a ser o eclesiólogo incontornável pela grande viragem que provocou nas abordagens da história e da vida da Igreja. Muito lutou e sofreu por publicar as suas investigações que punham em causa tabus, doutrinas e apologéticas que sufocavam a revisão teológica da sua história e impediam as reformas de que precisava para se abrir às outras Igrejas cristãs, ao universo das outras religiões e ao mundo contemporâneo.
A introdução de um livro fascinante, sobre a sua biografia intelectual e sobre o percurso temático da sua teologia, abre com uma declaração atrevida, mas espantosamente justa. Dizem os seus autores que se pode aplicar ao teólogo Yves Congar aquilo que o filósofo Étienne Gilson tinha afirmado do padre Chenu: “Um padre Congar, só existe um em cada século!”[1]
Nasceu em 1904 e faleceu em Paris a 22 de Junho de 1995 – fez agora 25 anos! O funeral foi celebrado na catedral de Notre-Dame de Paris. Os seus restos mortais repousam no cemitério de Montparnasse, ao lado da sepultura que evoca a vida do seu confrade e grande amigo, Marie-Dominique Chenu. A sua vida e a sua obra continuam uma fonte de inspiração, para quem ama a Igreja e luta para que nunca se esqueça que a sua lei, e a de todos os seus membros, é a de viver em reforma permanente, na graça do Espírito de Jesus Cristo.
A existência de Y. Congar coincide com o século XX e as suas grandes tragédias e esperanças. Elaborou a sua teologia – em constante evolução e revisão – a partir do centro da vida e da história da Igreja Católica, em diálogo com as outras Igrejas cristãs, na escuta do universo das religiões não-cristãs e das correntes que agitam o mundo.
Nos anos 30 do século passado, em face da crescente descrença e indiferença religiosa, sintetizou o seu diagnóstico perspicaz: a uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião.
Os autores da obra citada atrevem-se a dizer que o destino deste teólogo e o da Igreja, no século XX, se confundem. Acompanhou e marcou, sob o ponto de vista teológico, os grandes movimentos eclesiais que desaguaram no Concílio Vaticano II. Muitas vezes, foi ele que os precedeu e preparou. Estou a pensar, especialmente, no ecumenismo, na eclesiologia em todas as suas facetas, na teologia do laicado e nas propostas de reforma na Igreja.
O próprio Y. Congar o reconheceu: “Estou impressionado e feliz. As grandes causas que procurei servir chegaram ao Concílio: renovação da Eclesiologia, estudo da Tradição e das tradições, reforma na Igreja, ecumenismo, laicado, missão, ministérios… Isto, além da oração litúrgica e a função doxológica da confissão da fé celebrada: valores em que acredito cada vez mais.”

2.
De forma mais global, desde os começos de 1930, entregou-se a uma incansável investigação da Tradição eclesial, desde as suas origens. Foi o retorno às fontes bíblicas, patrísticas e medievais, que lhe permitiu renovar a abordagem de, praticamente, todas as questões teológicas e eclesiais do seu tempo e de lhes conferir uma profundidade e um alargamento de campos que tinham perdido. Este reditus ad fontes permitiu-lhe, também, novas perspectivas e problemáticas que, de facto, até eram profundamente tradicionais, mas que tinham sido ocultadas sob a sedimentação de séculos de teologia pós-tridentina ou “barroca”, conceptualista, apologética e sob o signo da afirmação da autoridade[2].
Os teólogos, muito especialmente os dedicados ao ecumenismo, e os eclesiólogos – e não apenas os católicos – reconhecem uma grande dívida para com ele e confessam que aprendem sempre muito frequentando-o, corrigindo certas posições anteriores, seja quanto ao modo de conceber o diálogo ecuménico, de abordar os ministérios ou de apresentar o papel de Cristo e do Espírito na vida eclesial. Há, nesta figura, uma evolução progressiva e permanente, inteligente, corajosa e leal na percepção espiritual do seu tempo, da sua Igreja e das outras Igrejas.

3.
Para além dos seus notáveis e inumeráveis estudos, históricos e teológicos, Yves Congar deixou-nos, em herança, uma postura teológica para a busca da verdade e da unidade cristã. O que dele ficará, sem dúvida, é uma capacidade exemplar de historiador e de vedor, isto é, de detectar as fontes e os filões prometedores, no seio da tradição eclesial, para uma reflexão teológica actualizada. Noutros termos, uma capacidade heurística de reunir e explorar documentos do passado cristão ao serviço da verdade da fé e da unidade das Igrejas. De forma mais ampla ainda, é um método fundado sobre a escuta do real em todas as suas formas, é um espírito, uma inspiração, um sopro evangélico em resposta aos apelos do seu tempo (descrença, outros cristãos, reformismo, outras religiões…). É uma certa concepção das relações entre história e teologia que ensina a não absolutizar nenhuma realidade humana nem que seja a Igreja[3].
Para permitir ao leitor familiarizar-se com esta obra imensa e múltipla, os autores do livro Yves Congar, já citado, procuraram estabelecer um itinerário teológico de toda a sua obra. É um percurso biográfico e temático que oferece as chaves essenciais para apreender este pensamento teológico e o seu modo de elaboração. Tiveram a feliz ideia de completar o livro com uma selecção com 19 textos de Y. Congar que fazem a cobertura das suas principais temáticas teológicas.
4.

Conheço razoavelmente bem a sua obra que fui acompanhando, desde os anos 50 do século passado. Tive com ele uma grande entrevista teológica, em 1962, quando já tinha regressado dos seus vários exílios e vivia no convento dominicano de Estrasburgo. Foi um momento muito especial. Em 1966, participei, em Valência, num Congresso de Eclesiologia. Registou as intervenções de vários participantes e privilegiou-me com uma referência imerecida: Certains posent ces questions d’une manière valable et, au fond, sérieuse, ainsi le P. Dominguez, du Portugal, qui me semble être un homme d’avenir. Dois dias depois, conta o que eu lhe dissera: Il faut venir au Portugal; nous y sommes isolés![4]. De facto, veio duas vezes a Portugal, às Semanas da Igreja e Missão, e sempre reatámos o nosso afectuoso diálogo.
É reduzida a publicação da sua obra em Portugal, mas valia muito a pena reeditar Yves M.-J. Congar, O.P., Igreja Serva e Pobre (Editorial Logos, 1964).
A produção teológica de Yves Congar é imensa. Em 1987, já contava 1.790 títulos. Ainda durante a sua vida, Jean-Pierre Jossua escreveu um livro com o título: Le P. Congar: La théologie au service du peuple de Dieu (Cerf, 1967); outros dois importantes : Jean Puyo interroge le Père Congar. Une vie pour la vérité (Centurion, 1975); B. Lauret, Yves-Marie Congar. Entretiens d’automne (Cerf, 1987).
Um ano depois da sua morte, foi organizado um colóquio, nos dias 3 e 4 de Junho de 1996, absolutamente notável (as actas estão em André Vauchez (dir.), Cardinal Yves Congar 1904-1995 (Cerf, 1999); no centenário do nascimento de Y. Congar, sob a direcção de Gabriel Flynn, foi publicada, com a colaboração de peritos de nove países, uma tentativa de análise de toda a sua obra, um livro muito especial: Yves Congar. Théologien de l’Église (Cerf, 2007). Para alguém se iniciar no conhecimento da sua obra, recomendo o já referido livro de Joseph Famerée et Gilles Routhier, Yves Congar (Cerf, 2008).
Boa leitura!
Lisboa, 2 de Julho de 2020
Notas
[1] Joseph Famerée et Gilles Routhier, Yves Congar, Cerf, 2008
[2] Cf. Op. cit., p. 8
[3] Cf. Op. cit., pp. 8-9
[4] “Alguns fazem estas perguntas de uma forma válida e, no fundo, séria, por exemplo o P. Dominguez, de Portugal, que me parece ser um homem do futuro. (…) Tem de vir a Portugal; estamos lá isolados!”, in Yves Congar, Mon Journal du Concile II, Cerf, 2002, pp. 524 e 526, onde, em notas, o meu nome vem corrigido.
Frei Bento Domingues é frade dominicano e teólogo, autor de A Religião dos Portugueses
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