Não se pode preservar a doutrina sem permitir o seu desenvolvimento. Também não se pode prender a doutrina a uma interpretação estrita ou imutável, pois isso seria uma humilhação para o Espírito Santo e a sua acção.” Foi isto que o Papa Francisco disse em Outubro de 2017, na comemoração do 25º aniversário da publicação do Catecismo [da Igreja Católica].
Longo percurso até ao Caminho Sinodal

Imagem da página oficial da Conferência Episcopal Alemã sobre o “Caminho Sinodal”: depois de polémicas várias durante vários anos, o processo foi iniciado em 2019.
Quando em 1995, após acusações de abuso sexual contra o cardeal vienense Hans Herman Groër, foi lançada a petição “Nós Somos Igreja”, primeiro na Áustria e depois na Alemanha, ainda houve 16 dos 27 bispos alemães que proibiram a recolha de assinaturas nas suas dioceses. Agora, os fóruns sinodais do “Caminho Sinodal” alemão correspondem exactamente aos quatro pontos da petição: “Construção de uma Igreja fraterna”, “Igualdade total para as mulheres”, “Livre escolha entre vida celibatária e não celibatária” e “Avaliação positiva da sexualidade”.
O quinto ponto, “Boas novas em vez de mensagens ameaçadoras”, pode certamente ser interpretado como o equivalente da evangelização que o Papa Francisco repetidamente clama para um processo sinodal. Porque enquanto os temas do Caminho Sinodal [alemão] não forem realmente tratados, todos os esforços de evangelização, por muito bem-intencionados que sejam, serão em vão.
Após a revelação dos abusos no Colégio Canisius de Berlim, em Janeiro de 2010, os bispos tentaram sozinhos um “processo de diálogo” controlado por eles, mas este foi muito rapidamente reduzido a um “processo de debate” não vinculativo, que acabou por não dar em nada. Apenas os resultados chocantes do estudo MHG [investigação interdisciplinar sobre abuso sexual de menores por padres, diáconos e membros masculinos de ordens religiosas católicas na Alemanha], no Outono de 2018 e os protestos, especialmente de mulheres, durante a [assembleia da] Conferência Episcopal em Lingen, na Primavera de 2019, levaram à percepção de que os bispos estão dependentes da cooperação com o Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) e com especialistas “de fora”.
O Vaticano não se tem mostrado útil neste conflito político-eclesial. A inesperada carta do Papa Francisco “Ao povo peregrino de Deus na Alemanha” e outras vozes do Vaticano desencadearam um eco muito diferente em 2019. Mas Francisco fala de um “ponto de viragem”, “que levanta novas e antigas questões, em vista das quais um confronto é justificado e necessário”. Encoraja uma “resposta franca à situação actual” e elogia o facto de a Igreja na Alemanha ter “dado à Igreja universal grandes homens e mulheres santos, grandes teólogos, pastores espirituais e leigos”. Francisco fala de uma “sinodalidade de baixo para cima”, só depois vem a “sinodalidade de cima para baixo”.
Praticar a fraternidade

Georg Batzing, presidente da Conferência Episcopal Alemã, depois de uma audiência com o Papa Francisco, em Junho de 2020. Foto: Direitos reservados/Vatican News
O Papa Francisco, que se apoia em Paulo VI e no Concílio Vaticano II para se declarar veementemente a favor de uma Igreja sinodal a todos os níveis, deveria alegrar-se com isto: na primeira assembleia geral do Caminho Sinodal, o debate foi muito franco e com uma grande capacidade de escuta, como há muito tempo não acontecia num organismo católico oficial. A renúncia a todo o simbolismo de poder caracterizou a primeira assembleia sinodal, mas pareceu incomodar alguns.
Este Caminho Sinodal pressupõe uma mudança fundamental de mentalidade, senão mesmo de paradigma, inteiramente no espírito do documento episcopal “Ser Igreja Juntos” (2015). Pois as estruturas formais também fazem parte da mensagem da Igreja, especialmente numa Igreja tão centrada na tradição e no simbolismo. E todas as tentativas de colocar de novo a fé e a evangelização no centro das atenções só podem dar frutos se tiverem as estruturas alteradas como pano de fundo.
À margem da primeira assembleia sinodal e das cinco conferências regionais, foi muito notada a presença de grupos reformadores, associações de mulheres e o movimento Maria 2.0 como sinais de esperança numa Igreja transformada. Pelo menos houve alguns bispos que disseram que a Igreja não quer perder completamente o contacto com as mulheres. Mas falar apenas amigavelmente uns com os outros já não será suficiente.
Dinâmica das resistências

Günther Uecker, Sandmühle (Moinho de areia), 1970, Städel Museum, Frankfurt am Main, Alemanha: “Será que não se tomou nota dos debates dos últimos 50 anos?” Foto © António Marujo
A crise do coronavírus intensificou e acelerou os processos de alienação em curso entre a liderança da Igreja e o povo eclesial. Após a instrução completamente inesperada e extremamente desconcertante da Congregação para o Clero [CpC] em Julho de 2020, alguns chegaram a afirmar que o Caminho Sinodal tinha chegado ao fim. O texto, que foi elaborado em Roma sem qualquer consulta às igrejas locais e é alheio à vida e à fé, age como se nós, na Alemanha, nunca tivéssemos pensado em paróquias missionárias antes.
Será que a CpC não tomou nota dos debates científicos e pastorais dos últimos 50 anos? Mas nem a crise do coronavírus nem as recentes instruções da Congregação para o Clero deveriam poder travar ou mesmo paralisar o processo de reforma iniciado com grande dificuldade e que é urgentemente necessário, conforme apelou uma Carta Aberta do Nós Somos Igreja, que mereceu grande aprovação. É necessária uma ampla aliança de forças reformadoras, inclusive na Conferência Episcopal.
É claro que a Igreja Católica Romana não pode simplesmente mudar a sua doutrina livremente. Facto é que os quatro fóruns do Caminho Sinodal tratam de questões que têm sido debatidas desde o Concílio Vaticano II (1962-1965). Mas o povo eclesial tem sido enganado, década a década. O cardeal Müller intromete-se, a partir de Roma, na Igreja da Alemanha: “É pouco provável que um processo como o Caminho Sinodal na Alemanha possa reivindicar o Espírito Santo para si próprio”, disse, citado no Tagespost.
As advertências de bispos individuais contra uma Igreja nacional alemã, um cisma na Igreja ou um debate de baixo nível teológico criam um pano de fundo ameaçador, que é errado e extremamente negativo. A tentativa das forças conservadoras-tradicionalistas, incluindo as do estrangeiro, de exercer influência nos meios de comunicação social é também extremamente negativa.
Serviço à Igreja mundial

Sessão de abertura do Caminho Sinodal da Alemanha, a 31 de Janeiro de 2020. Foto © Isabella Vergata
A nível internacional, o Caminho Sinodal já está a atrair uma atenção considerável. A nível mundial, há a expectativa de que se encontrem respostas pastoralmente responsáveis e com base teológica para as crises de hoje. Precisamos que a doutrina da Igreja continue a evoluir. As propostas para modernizar ministérios e estruturas devem ser apoiadas pela grande maioria de todos os participantes, incluindo os bispos.
De acordo com a actual lei eclesiástica, a implementação deve, em qualquer caso, ser feita por cada bispo individualmente para a sua diocese. E muitas das questões fundamentais, como o celibato obrigatório para sacerdotes ou a ordenação de mulheres, são e continuarão a ser da competência do Papa ou mesmo de um concílio.
O Caminho Sinodal na Alemanha não quer e não pode mudar directamente a Igreja Universal, por muito bons que sejam os debates e as decisões. Mas a crise na liderança da Igreja revelada pelos escândalos de abusos, e a recusa de implementar reformas adequadas ao nosso tempo, não existem apenas na Alemanha.
Como mostram os escândalos de abuso, a Igreja Católica Romana encontra-se numa crise existencial em todo o mundo. Se, contudo, for possível realizar aqui na Alemanha um debate teológico compatível com o nosso tempo, e encontrar soluções viáveis para as reformas reprimidas, então o Vaticano não poderá continuar a ignorá-las. Este não seria então um caminho especial da Alemanha, mas um serviço à Igreja universal. Sem resultados apresentáveis e o seu reconhecimento por Roma, porém, a Igreja Católica continuará a perder credibilidade e será abandonada até por aqueles que por enquanto ainda nela se empenham.
Pergunta-chave: A questão das mulheres

Votação numa assembleia da KFD – Assembleia de Mulheres Católicas na Alemanha Foto © Kay Herschelmann/KFD:
O sistema católico de ministérios encontra-se numa crise profunda e a igualdade de género é uma questão-chave. Não é a consagração das mulheres que deve ser justificada, mas a sua exclusão! A discussão aberta, mesmo controversa, no grupo de trabalho “Mulheres” dá pelo menos motivos para alguma esperança. Foram aí enumeradas muitas reformas que já poderiam ser implementadas agora, sem alterações na lei da Igreja. No final, o primeiro passo na questão da ordenação poderia ser uma recomendação, tão unânime quanto possível, do diaconado permanente para as mulheres numa Igreja diaconal sinodal com ministérios reformulados – semelhante à votação do Sínodo de Würzburg há 45 anos.
As mulheres em associações, ordens religiosas e iniciativas já não permanecem em silêncio face às manifestações, até agora apenas verbais, de reconhecimento da igual dignidade e de estima pela mulher. No decurso da crescente crise na Igreja Católica, elas estão unidas e determinadas a pôr fim aos abusos, ao clericalismo e a uma Igreja patriarcal que não concede às mulheres um estatuto de igualdade e autodetermina. Um lugar que as pesquisas recentes sobre a Bíblia e a história da Igreja também lhes outorgam. Os sinais dos tempos devem ser reconhecidos e reflectidos na doutrina da Igreja, que não é uma colecção de formas tradicionais de fé, mas deve reafirmar no nosso tempo a confiança primordial de que Deus está do nosso lado, para que a Igreja tenha um futuro.
O tempo urge

“…porque eu também sou Igreja”, diz o cartão. Foto © KFD-Assembleia de Mulheres Católicas na Alemanha
Muitas oportunidades foram perdidas, algumas pessoas vêem o Caminho Sinodal como uma “última oportunidade”. O documento do ZdK “Diálogo em vez de recusa do diálogo” (1992), que já apelava ao distanciamento do clericalismo, patriarcado e centralismo, a petição Nós Somos Igreja, de 1995, com 1,8 milhões de assinaturas, a petição não vinculativa “processo de diálogo/processo de conversações” (2011-2015) dos bispos alemães e muitos outros processos e iniciativas de reforma das últimas décadas – todos eles ficaram sem consequências oficiais na Igreja. Em 2008, os bispos rejeitaram a proposta da “conferência conjunta” para um “fórum do futuro”. Grupos reformadores como “Nós Somos Igreja” não foram incluídos nem no processo de discussão 2011-2015 nem na dinâmica sinodal.
O Caminho Sinodal é e deve ser um caminho pedregoso. Só quando, após aprofundado debate, se notarem arrependimento, conversão e reorientação verdadeiros, e só quando houver mudanças concretas, é que a Igreja estabelecida merecerá que as pessoas lhe reconheçam credibilidade.
Não há alternativa. Uma mudança fundamental na doutrina e na estrutura, na teologia e no cuidado pastoral é urgentemente necessária se o cristianismo quiser continuar a ser relevante para as pessoas no futuro.
O tempo urge. A janela de oportunidade para que a Igreja recupere a sua credibilidade está a fechar-se. Só unidos, povo e liderança eclesiais, poderemos moldar o futuro da Igreja de tal forma que ela possa voltar a ser a casa de muitos: uma Igreja de crentes, dos que têm esperança e dos que amam, que aborde os temas das pessoas de hoje, nomeadamente a solidariedade mundial e a preservação da criação. Procuremos juntos novos caminhos que possamos percorrer com confiança no poder do Espírito Santo; caminhos que muitos que desesperam na Igreja de hoje possam seguir, pois não desistiram da fé na boa nova do Reino de Deus; caminhos que também possam inspirar adolescentes e jovens adultos. Pensemos no impossível: aquele que não tem utopia não é realista. Ajudemos aqui na Alemanha o Papa Francisco, que quer uma Igreja sinodal a todos os níveis!
Todos aqueles que em princípio ainda duvidam da necessidade do Caminho Sinodal devem tomar consciência da profunda crise de confiança e credibilidade causada pela violência sexualizada contra crianças, jovens, seminaristas, mulheres e mesmo mulheres religiosas que tem sido praticada e encoberta há décadas. Temos de concordar com o prof. Thomas Söding, que afirmou na primeira assembleia sinodal: “Não vamos resolver todos os problemas da Igreja Católica na assembleia sinodal. Mas temos de começar por onde nos possamos queimar.”
Susanne Ludewig (n. 1965) fez Estudos Românicos, é chefe de serviços de enfermagem em cuidados geriátricos e integra a equipa federal do movimento Nós Somos Igreja – Alemanha, Kassel;
Christian Weisner (n. 1951) é urbanista aposentado, foi co-iniciador da Petição do Povo de Deus em 1995, na Alemanha, e integra a equipa federal do movimento – Alemanha, Dachau.
O 7MARGENS agradece a Helena Araújo o apoio na tradução.