
Pode estar a acontecer uma libertação do riso, com a ajuda do muitas vezes menosprezado “riso fácil”, presente nos programas mais “ligeiros” dos meios de comunicação de massas. Por vezes é preciso dizer o óbvio: o riso não mata. Foto: Direitos reservados.
“Desperdicei a infância a tentar fazer rir uma velhota” referiu, em entrevista, Ricardo Araújo Pereira, um dos mais reconhecidos humoristas portugueses, admitindo, em tom de brincadeira, que a sua avó não era de riso fácil. “A minha avó, quando era eu criança, simplesmente não conseguia rir”, mencionou também, no final de uma conferência, Alene Lins, uma investigadora do Brasil que estuda a não-pose e a desfiguração. “Não consigo sequer imaginá-la a rir” disse ainda Ricardo Ferreira, alguém que ouvi recordar com outros como eram as suas “férias grandes” com a avó no norte de Portugal, numa aldeia em Famalicão.
Nos últimos anos, sobretudo depois de ter começado a minha investigação doutoral, centrada no uso das emoções (e, em especial, do riso) como gratificação televisiva, recolhi vários relatos semelhantes a estes e, importa destacar, alguns tomaram forma sem que tivesse sido eu de alguma maneira a motivá-los. Todavia, houve um, oriundo de Espanha, que chamou a minha atenção em especial. Foi o de Aroa García, de Pontevedra. Ela estava a contar a algumas pessoas, à sua volta, episódios caricatos acerca da velhice da sua avó. Porém, a certa altura, sob um tom e um rosto particularmente abatido, partilhou:
“Ela sempre foi muito rígida com tudo e com todos, estava sempre muito séria e a resmungar. Só começou a rir quando ficou demente […]. A sua demência, até certo ponto, fez-lhe bem, fê-la ficar mais descontraída, mais bem-humorada, a rir por tudo e por nada.”
Mais tarde, quando lhe expliquei o meu interesse no que acabava de dizer, e já com um sorriso bem aberto no rosto, afirmou o seguinte: “Sempre preferi a última versão da minha avó, já com demência, à primeira, a dita original.”
Desenganem-se todos os que pensam que isto é uma coisa muito portuguesa ou, como também já ouvi, particular da atmosfera minhota, galega, pois, ainda que, por vários motivos, se possa sentir um pouco mais nessas zonas, uma análise histórica e literária deixa claro que o riso da mulher adulta foi, nos últimos séculos, e nos mais diversos ambientes, mais censurado do que o riso dos homens e das crianças em geral.
No artigo Death from laughter, female hysteria, and early cinema, pode, a esse respeito, ler-se o seguinte: “entre meados do século XIX e o início do século XX, centenas de mulheres supostamente morreram de tanto rir” (Hennefeld, 2016, p. 45, tradução do autor). Não é difícil imaginar o impacto desses relatos. Muitas foram, com certeza, as mulheres que viveram toda a sua vida debaixo de um ininterrupto medo de se rirem. É que rir, para elas, significava uma possível e dolorosa morte. E algumas, nesses relatos – agora o leitor ria, se quiser, mas creio que é melhor chorar –, supostamente tinham morrido por se rirem de “piadas sobre as sogras” (Hennefeld, 2016, p. 55, trad. do autor).
Será que essa intolerância do passado para com o riso feminino tem impacto ainda nos dias de hoje? Cada vez menos, provavelmente. Todavia, a História prova-nos que, não poucas vezes, o ser humano esquece os porquês, mas não as regras. Ou, pelo menos, demora umas boas centenas de anos a atualizar plenamente essas duas variáveis (sociais). Por isso, é possível que, em alguns territórios, e para algumas pessoas, ainda haja resquícios dessa castração do riso e do júbilo feminino. E se não de maneira direta, talvez indireta.
No passado, primeiro com o riso que se ouvia nos fonógrafos, depois com o riso mudo do cinema e, mais tarde, com os muitos risos “mistos” que começaram a aparecer em muitos outros meios de comunicação de massas, essas muito distintas e rígidas regras sociais a respeito do ato de rir foram sendo derrubadas. Nos meios de comunicação passou a ser possível ver e ouvir o riso de todos, mas, em especial, o das mulheres, que o faziam sem vergonha, sem receio e, mais importante ainda, sem morrer. E se o riso foi capaz conquistar esses meios de comunicação, não há dúvida de que o riso desses meios de comunicação foi de igual forma capaz de invadir a vida daqueles que o contemplavam. O riso dos meios de comunicação de massas foi importante no ato de “democratizar” o uso das emoções positivas na esfera privada e social. E, naturalmente, quanto maior tenha sido o alcance desse meio num território, maior terá sido a capacidade de “alfabetizar” a população nesse sentido.
Ainda assim, falar da história do riso é, inevitavelmente, e muito infelizmente, falar da história do não-riso em geral, mas, em particular, do não-riso feminino. Mas é também, forçosamente, falar da libertação desse riso, que aconteceu – e que, creio, pode ainda estar a acontecer em alguns locais e para algumas pessoas – com a ajuda do muitas vezes menosprezado “riso fácil”, presente sobretudo nos programas mais “ligeiros” dos meios de comunicação de massas. Espaços onde o riso é, por vezes, apresentado quase ou totalmente desancorado do humor e de algumas das suas mais usuais estratégias. Por vezes é preciso dizer o óbvio: o riso não mata. E observá-lo, onde quer que exista, apenas nos lembra o óbvio: o riso não mata. Sim: o riso não mata.
Abílio Almeida é doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho e investigador integrado do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da mesma instituição. É autor do livro História do Riso (2022), resultante da sua investigação doutoral.
Nota: Todos os relatos presentes neste artigo, tirando o de Ricardo Araújo Pereira – mencionado no programa Alta Definição (SIC) –, foram submetidos à aprovação dos envolvidos, tendo os mesmos autorizado, por escrito, a sua divulgação.
Bibliografia:
Hennefeld, M. (2016). “Death from laughter, female hysteria, and early cinema”, in Revista differences, 27 (3), 45-92. doi: https://doi.org/10.1215/10407391-3696631