
“Os abusadores – de qualquer forma de abuso – são narcisistas por natureza. Esta é uma característica geral. Têm uma alta estima pela sua pessoa e pelas suas faculdades de todo o tipo, e consideram-se a si próprios com um tal grau de superioridade que os leva a verem-se como intocáveis e obviamente inquestionáveis, façam aquilo que fizerem. Muitos deles têm fama de santidade em vida.” Ilustração original de © Catarina Barbosa
Alguns podem não gostar, provavelmente muitos, mas sim, há um perfil de abusadores na Igreja regido por um padrão de comportamento: abusar do poder que foi concedido a uma pessoa. É importante ter isto em consideração porque não estamos a falar apenas de abusos sexuais, mas de todo o tipo de abusos que irei comentar.
Precisamente por isso, deve ter-se em conta que na Igreja o poder não se ganha; pelo contrário, é concedido por quem tem mais poder. Isto já assinala uma forma de comportamento muito contrária ao evangelho, extremamente hierárquica (o poder vem de cima), e que implica uma forma de actuação muito específica, tanto por acção como por omissão, de quem aspira a determinados cargos. Ou seja, se quiser alcançar uma determinada posição, devo comportar-me como a pessoa acima de mim deseja que eu me comporte. É uma espécie de sistema de colaboração entre as partes.
Isto já ajuda a clarificar que o perfil geral dos abusadores não é o do típico doente que, em muitas ocasiões, nos tentaram fazer ver. Alguns abusadores pode ser que sejam doentes. A maioria não. E isto deve ser claro e dizer-se claramente.
Os abusadores – de qualquer forma de abuso – são narcisistas por natureza. Esta é uma característica geral. Têm uma alta estima pela sua pessoa e pelas suas faculdades de todo o tipo, e consideram-se a si próprios com um tal grau de superioridade que os leva a verem-se como intocáveis e obviamente inquestionáveis, façam aquilo que fizerem. Muitos deles têm fama de santidade em vida.
A partir daqui, vão-se acrescentando algumas características (enumerá-las a todas requer um livro de dimensões consideráveis e uma análise psicológica profunda que não estou em condições de fazer); enumero três muito específicas.
O abusador é agressivo, embora não de forma continuada, e muito menos pública. Costuma ter episódios em que explode contra quem estiver à sua frente de forma descontrolada. Podem ser gritos, formas muito duras de apontar comportamentos alheios, intransigência perante determinadas questões, e um rigorismo moral muito suspeito onde a misericórdia não existe nem é esperada.
Agir assim, mesmo que seja de vez em quando, proporciona-lhe uma sensação – apenas sensação – de um certo equilíbrio entre a tensão da dissimulação em que deve viver e como gostaria de manifestar-se.
Evidentemente, alguns dos abusadores não se contentam apenas com estas formas agressivas e chegam ao abuso sexual. Aqui, ter-se-ia de diferenciar entre o abuso de crianças, adolescentes e pessoas adultas vulneráveis, e o abuso de pessoas adultas sob certas condições, circunstâncias, promessas, projecção de uma relação inexistente, mas secreta, que implicaria que “eu que não posso nem devo fazer isto, escolhi-te a ti para o fazer porque és muito especial…” Eles sabem procurar muito bem as suas vítimas.
O abuso de crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis traz claramente ao de cima uma perversão muito calculada, dada a assimetria da relação entre a vítima e o agressor e a evidência de querer satisfazer um impulso sexual.
O abusador é manipulador, começando por ele próprio; ao manipular a sua própria condição de celibato como algo que lhe serve para “ganhar pontos” perante as pessoas em geral (embora, vendo aquilo que vemos, o celibato já não impressiona a quase ninguém). Esta manipulação do eu, que é disso que se trata, utiliza-a para se impor e dominar alguém ou dominar uma situação. E faz isso sem o mínimo pudor.
A sua identidade, que vê somente pelo prisma do sacerdócio, deve-a impor através dessa visão de superioridade que lhe dá o ministério, e porque renunciou a tudo na vida para ser padre. No tudo, entende-se que renunciou, evidentemente, à vivência da sua própria sexualidade. Por isso necessita de ter relações sexuais dominantes e agressivas – que nada têm a ver com a sexualidade – como mecanismo de compensação.
E, claro, manipula, se for o caso, a quem lhe pede explicações sobre algumas formas de comportamento, porque está tão seguro da sua superioridade a todos os níveis que se permite exercê-la em todas as direcções.
O abusador é rígido e autoritário, o que o leva a agir desde um pedestal que o eleva (ou nisso acredita) sobre os outros, a quem não quer, nem ama, nem respeita, nem lhe importam. Esta característica é própria daqueles que estão desesperadamente necessitados de afecto e carinho, e não o reconhecem por medo de perder a sua condição de “puros” em qualquer sentido.
A sua intransigência com o próximo não tem nada a ver com a vida que eles levam. São tão extremamente rigoristas que não conseguem dissimular nem em público nem em privado a sua forma de agir. No entanto, isto não parece atrair a atenção de ninguém, embora causem estragos por onde passam e em si próprios.
Estas são algumas das características mais habituais nos abusadores, não as únicas. No entanto, parecem não ser importantes para os encobridores, quando se descobre algo sobre eles.
Os encobridores, na sua maioria bispos ou pessoas hierarquicamente superiores aos abusadores, têm estado sempre mais atentos ao medo do escândalo pelo bem da instituição, que das pessoas abusadas e dos próprios abusadores. A realidade dos abusos de todo o tipo têm-na vivido como episódios soltos, sem nenhum tipo de conexão entre eles e sobre os quais, à pressa, tinha que se deitar terra por cima, porque os encobridores suspeitavam, não sem razão, que as suas carreiras poderiam vir a ser afectadas.
Com o tempo e algumas investigações, apesar de todas as tentativas para impedir que os resultados se tornassem públicos, percebemos que não eram questões desligadas. Pelo contrário, na maioria das dioceses havia toda uma trama corporativamente montada na própria estrutura diocesana. Daí a corrupção da mesma.
Sirva de modelo o caso de Boston, onde desde a mais alta instância, representada pelo cardeal Bernard Law (é uma piada do destino que o seu apelido signifique lei) e aqueles que o seguiam em cargos de responsabilidade, sabiam da realidade dos abusos (havia denúncias), conheciam os abusadores (as denúncias tinham os seus nomes) e consentiram que continuassem em acção, espalhando o mal ao mudá-los de paróquia, demonstrado pelas sucessivas nomeações.
A perversão chegou a tal ponto que os padres que foram obrigados a mudar de paróquia devido aos seus abusos – neste caso, sexuais – chegavam a oferecer uma determinada medalha às crianças abusadas para que, quem viesse substituí-lo, soubesse quais as crianças de que podia abusar. Isto era institucionalmente conhecido, admitido e permitido.
Os encobridores, sejam quem sejam, nunca agiram por amor à Igreja nem, obviamente, às vítimas. Têm agido assim para se protegerem e porque nunca acreditaram que a verdade vos libertará (João 32). Também eles abusaram e abusam do poder que tinham e têm e, justamente por isso, são moralmente responsáveis pela situação.
Estamos a assistir, não atónitos, porque sabemos que há muito para trazer à luz, mas sim muito preocupados, com a situação que se está a viver na Igreja de França. O que lá está a acontecer pode passar-se em qualquer outro país porque, assim como uma após outra, todas as conferências episcopais cometeram os mesmos erros, e foram acrescentando outros na hora de fazer frente à crise dos abusos, temo que continuem a cometer os mesmos erros a outros níveis e sempre dentro desta realidade.
A convocação do Sínodo da sinodalidade neste momento não foi algo casual. Ficou demonstrado que as dioceses e instituições eclesiásticas onde ocorrem mais casos de abusos de todos os tipos estão diretamente relacionadas com a falta de transparência no seu funcionamento. Daí o pouco entusiasmo que o Sínodo suscitou em algumas dioceses, embora não seja justo estabelecer uma relação direta entre o pouco entusiasmo sinodal, a falta de transparência e a presença de encobridores.
Um sinal de maturidade dos leigos – que foi demonstrado nas contribuições feitas na fase diocesana do Sínodo – seria, primeiramente, procurar a melhor informação e, caso seja possível, fora da instituição eclesial, sobre a realidade dos abusos. Porque todos temos responsabilidade na tremenda crise do abuso de poder na Igreja.
Neste momento já é mais do que evidente que a crise é real, não é uma invenção para atacar a Igreja; e que os seus protagonistas chegaram a ocupar altos cargos pastorais; contudo, a linha que separa o ser ou não cúmplices de permitir que a situação continue, é tremendamente fina. Basta não querer ver – nem sequer é necessário olhar com atenção – o que acontece e as provas que o demonstram. Não querer ver, negar a evidência, torna-nos a todos cúmplices da situação
Por isso, em segundo lugar e não menos importante, teria de haver um pedido de esclarecimentos, de mais transparência e de melhor e mais eficaz formação dos candidatos ao sacerdócio e na formação permanente do clero e dos bispos, da qual se sabe muito pouco. Porque a raiz de todo o abuso está aí. Na formação inicial, mas sobretudo, na inexistente formação permanente.
Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.