
Bela Flor Respira: O projeto aproximou mais de 400 pessoas do bairro, tirou os mais idosos do seu isolamento e permite aos mais jovens o contacto com a produção de alimentos ao ar livre. Foto: Direitos reservados.
Em Portugal sempre se praticou agricultura urbana de forma espontânea, mas agora surgem projetos comunitários estruturados que aproveitam o espaço público para produzir alimentos coletivamente. É o caso do projeto Bela Flor Respira (também com uma página página no Facebook), em Campolide, Lisboa, que conseguiu criar uma agrofloresta mantida por uma pequena equipa e pelos moradores do bairro que vão dando uma mão, e assim se apropriam e responsabilizam por um espaço público comum.
“Bela Flor Respira” é uma agrofloresta, ou seja, um espaço onde crescem em simultâneo árvores de fruto, árvores florestais e hortícolas. O projeto aproximou mais de 400 pessoas do bairro, tirou os mais idosos do seu isolamento e tem permitido aos mais jovens o contacto com a produção de alimentos em atividades ao ar livre. A dinâmica gerada tem promovido a interação entre diferentes gerações e entre diferentes classes sociais, a integração de estrangeiros a viver em Portugal, e a criação de uma rede social diversa e inclusiva. A agrofloresta produz diferentes frutas e vegetais para quem quiser colher, divulga por vezes produtos menos conhecidos e, assim, promove uma alimentação mais variada e rica. No meio da atual crise, estes produtos têm permitido garantir o acesso a alimentação de qualidade.
Por outro lado, a iniciativa favorece a regeneração de um terreno de 1.000 m2 que não tinha utilização definida e comporta também um eixo de formação nas técnicas de regeneração de solos.
A ideia nasceu da conversa entre dois amigos e partiu de uma experiência já existente na regeneração de terra para fins agrícolas. Em 2018, Cátia Godinho, especialista em economia circular, propôs à Junta de Freguesia de Campolide, um projeto de agrofloresta comunitária seguindo os princípios da agricultura regenerativa, para revalorizar baldios no bairro municipal da Bela Flor. A Junta acarinhou o projeto e este foi financiado pelo programa Bipzip da Câmara Municipal de Lisboa.
Este é ainda um projeto piloto, mas em estudo está a forma de avançar para a criação duma rede de “polinizadores” que permita replicar a experiência adquirida.
“É necessário gerar casos práticos que inspirem estratégias alimentares nacionais e locais. Estas experiências concretas no terreno vão dar origem ao trabalho de topo da esfera política, até porque permitem quebrar tabus e evidenciar caminhos viáveis”, refere Cátia Godinho, com a energia própria de quem consegue passar estas ideias para a realidade.

Cátia Godinho, animadora do Bela Flor Respira-Agrofloresta de Campolide. Foto: Direitos reservados.
Agricultura urbana precisa-se!
Os mais velhos lembrar-se-ão de que, na segunda metade do século passado, era comum, em Lisboa, haver galinheiros ou pombais nas varandas. Hoje, há alguns vasos de aromáticas à janela: manjericão, salsa ou coentros. Mas desde os anos 1980 que os citadinos se têm afastado da terra, dependendo do comércio para se alimentarem com produtos que, frequentemente, vêm de longe. Estima-se que metade da população mundial viva, hoje, em aglomerados urbanos. Segundo a Pordata, a população portuguesa em lugares com mais de 10.000 habitantes passou, entre 1961 e 2011, de 2 milhões para 4,5 milhões de habitantes.
As grandes distâncias entre produtores e consumidores fragilizam as cadeias de fornecimento de alimentos e tornam-nas mais expostas a situações de contingência e a eventuais ruturas. Por outro lado, as cadeias longas obrigam a uma logística com fortes impactes financeiros e ambientais: mais quilómetros de transporte equivalem a mais emissões de gases com efeito de estufa (os sistemas alimentares são responsáveis por 1/3 das emissões globais segundo a EU), a mais embalagens, a mais consumo de energia para preservação dos produtos e a mais desperdício.
Por outro lado, os atuais sistemas de alimentação provocam impactes negativos de saúde, tanto a nível da sobrenutrição como da subnutrição. As cidades têm crescido a uma cadência que não tem permitido a integração de todas as pessoas e criam assimetrias socias significativas na forma de guetos de exclusão. Estas áreas com menos poder de compra, têm mais dificuldade em acompanhar a flutuação dos preços dos alimentos e, inclusive, ter acesso a alimentos com qualidade nutritiva adequada.
Como acontece com outros fenómenos, esta problemática está a ser abordada de cima para baixo, com a conceção de políticas públicas e de baixo para cima, com o surgimento de iniciativas cidadãs.
Ao nível público, a estratégia Farm to Fork (do prado ao prato), peça fundamental do Green Deal europeu, pretende criar sistemas de alimentação justos, saudáveis e de reduzido impacto ambiental. Segundo a Comissão Europeia, estes sistemas só podem ser resilientes a situações de crise como a pandemia de covid-19 se forem realmente sustentáveis.
Mais global, a Agenda Alimentar Urbana da FAO apresenta uma estratégia que passa pela criação de sistemas integrados de alimentos para as cidades que preveem, entre outros, o encurtamento das cadeias de fornecimento de produtos alimentares, ou seja: aproximar os produtores dos consumidores. A visão desta organização é a de concretizar sistemas alimentares resilientes, integrados, sustentáveis e inclusivos que salvaguardem o ser humano da fome e de qualquer forma de má nutrição.
Ao nível cidadão, as cidades estão-se a transformar em laboratórios vivos, ocupam-se os baldios com hortas e integra-se a comunidade, incentivam-se os restaurantes e os supermercados a reduzir os seus desperdícios através de doações e concebem-se campanhas de promoção de alimentação saudável que permitam aos cidadãos identificar as melhores opções alimentares.
Hoje, um pouco por toda a Europa, nos telhados de catedrais ou de empresas, nos canteiros das ruas das cidades produz-se, em comunidade, mel, alfaces, tomates e ervas aromáticas. São projetos ainda minoritários, mas vão tornar-se comuns. A população urbana irá aproximar-se da produção dos alimentos que consome, e aprenderá a comer de forma mais diversa e a reduzir a pegada ecológica da produção agrícola. Mas esses projetos oferecem, sobretudo, a oportunidade para que seja retomado o sentido de comunidade integrada no ciclo natural da vida, e assim transformar as cidades em espaços humanos e férteis.

Uma das moradoras do bairro envolvidas no projeto: criar sistemas de alimentação justos, saudáveis e de reduzido impacto ambiental é uma das ideias deste tipo de iniciativas. Foto: Direitos reservados.