
Crianças a separar minerais, no lago Malo, próximo de Kolwezi (RD Congo): “Uma parte significativa da humanidade vive em condições sofridas pela ambição e pela desmesura de outros.” Foto © Amnesty International e Afrewatch
Recorrer à fundamentação histórica para legitimar a atuação presente ou futura, se é possível e compreensível, não é necessariamente adequado e é preenchido por muitos equívocos e falsos caminhos. O presente e o futuro não são determinados fatalmente pelo passado. A contemplação e a reflexão sobre o passado, na sua complexidade e nas suas contradições, se é um exercício apropriado não justifica por si só as decisões e as atuações presentes. Se pode existir similitude entre um determinado passado e o presente, os protagonistas e as circunstâncias nem são os mesmos nem se repetem, pois são fruto de pessoas atuais e das suas respetivas motivações.
O passado, se condiciona o nosso presente e o modo como se encara o futuro, não é válido por si só para legitimar o presente e menos ainda o futuro, até porque estes podem ser sempre perspetivados de modo diferente. A ética do presente e do agir futuro, se pode tomar referência no passado, não pode entender-se como mera perpetuação deste, como se a consciência dos indivíduos não pudesse adquirir outros contornos mais apropriados para a realização humana.
Se a recomposição da vida das pessoas e das sociedades é constante, mesmo quando habituados à repetição do quotidiano e motivados por uma existência o mais favorável a cada um de nós, a realidade apresenta-se de forma bem distinta. Viver e conviver em sociedade só atinge um adequado nível de concretização pela progressiva interiorização do processo consciente de autolimitação na relação com os outros e em cada um. A solidariedade não se pode alcançar sem graus significativos de abdicação.
Uma parte significativa da humanidade vive em condições sofridas pela ambição e pela desmesura de outros, poucos, dos quais, eu que escrevo e, provavelmente, alguns que possam ler estas linhas fazemos parte. A liberdade respeita o que se pretende alcançar e realizar. O que cada um de nós quer realmente da vida? A resposta aos problemas começa em cada um de nós.
Cada um não perde a sua liberdade porque se autolimita e abdica, antes acrescenta a capacidade de contenção. Vivemos e conhecemos a pandemia e os confinamentos, a guerra e as suas misérias, bem como a fome que já atingiam há muito certas populações, as mais fracas e vulneráveis. Como mancha que se espalha, estas situações atingiram agora as nossas sociedades onde, muitas vezes, se concebe a realização humana com um desenvolvimento constante e exponencial de ter mais, de ganhar mais ou muito mais, sendo certo que todos pretendemos fugir à morte mesmo se isso provoca a subjugação e a morte de outros, de muitos, de milhares e de milhões de mulheres, de crianças e de homens desamparados e desesperados.
Práticas para mudar a vida
É sempre tempo de mudar de vida, reorientar e corrigir os nossos desejos de ambição e de domínio, afinando a vontade de ajudar os outros, pois, por mais que se tenha ou se seja, não se escolhe ficar na história porque esta tende, muitas vezes, a valorizar e a reter alguns que se comportaram como canalhas e assassinos.
A história do bem é aquela que atende à complexidade e aceita as contradições existenciais. O melhor depositário das práticas do bem é o coração e a gratuidade de uns em relação aos outros, sendo que a mão direita não deve saber das graças da mão esquerda e vice-versa. A perpetuidade espalha-se no universo enquanto dom, tudo aquilo que vem de fora, da pessoalidade única e indestrutível. O mal, se prejudica gravemente aqueles que atinge, existe e também é um fazer, mas no final destrói sempre quem o exercita. É tempo de praticar um mundo melhor e mais justo, para nosso bem e dos outros. Não se trata de ideologias, mas de práticas.
A responsabilidade pelo que acontece também se constrói e se aprofunda. Contrariar a fatalidade não resulta somente do que os outros são ou constroem, mas respeita a capacidade de resistência de cada um, de individualmente potenciar a disponibilidade para assumir as consequências dos atos de liberdade e de solidariedade. Estas são práticas do quotidiano.
Haverá sempre muito dinheiro para o armamento, não necessariamente para a defesa das populações, mas para reprimir aqueles que aspiram à sua liberdade e a uma maior justiça. Os momentos de grandes dificuldades das sociedades são muitas vezes acompanhados por grande agitação e, também, por não menor indiferença até as situações baterem à nossa porta. Quanto do que acontece decorre da defesa do nosso bem-estar, da nossa indiferença, de uma cultura reivindicativa, mas não de redistribuição justa e adequada?
Seremos capazes de não desfalecer perante a urgência de apoiar até ao fim os que foram invadidos, para restituir o que lhes é devido?
Muitos desafios nos solicitam: combater bens mal adquiridos e não se aproveitar dos mecanismos de especulação e de mais-valias indevidas; contrariar e lidar, sem alarmismos, com a inflação o aumento dos preços em geral; consumir menos, em particular energia; potenciar mais empregos a partir daquilo que temos e está ao nosso alcance; partilhar a vida com mais imigrantes e proporcionar a sua integração sem medos; comer menos e procurar que o facto de ser mais caro reverta o mais possível para os produtores; aprender a não acusar os outros pelo nosso infortúnio; viver com menos, diminuir o nosso nível de vida e, simultaneamente, querer que outros vivam melhor; promover e aceitar limites de ganhos e de enriquecimento. Tantos caminhos.
Não se podem impor práticas solidárias aos outros, mas cada um pode realizar no seu quotidiano o desenho mais apropriado de um presente e de um futuro mais justo, mais ecológico, mais solidário. O que vale uma grande agitação se esta não tiver uma mudança, se não ocorrer uma conversão no presente de cada um? Por muito que se viva, a vida de cada um é sempre muito curta, às vezes escandalosamente curta. É verdade que só na consciência mais íntima e discreta cada um sabe o que vive.
Lisboa, 29 de abril de 2022
António Matos Ferreira é historiador e membro do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa. É autor de Um Católico Militante Diante da Crise Nacional (ed. CEHR).