Passado, presente e futuro são práticas

Desenhar um mundo mais justo, ecológico e solidário

| 14 Mai 2022

Minas. Crianças. Trabalho infantil. Congo

Crianças a separar minerais, no lago Malo, próximo de Kolwezi (RD Congo): “Uma parte significativa da humanidade vive em condições sofridas pela ambição e pela desmesura de outros.” Foto © Amnesty International e Afrewatch

 

Recorrer à fundamentação histórica para legitimar a atuação presente ou futura, se é possível e compreensível, não é necessariamente adequado e é preenchido por muitos equívocos e falsos caminhos. O presente e o futuro não são determinados fatalmente pelo passado. A contemplação e a reflexão sobre o passado, na sua complexidade e nas suas contradições, se é um exercício apropriado não justifica por si só as decisões e as atuações presentes. Se pode existir similitude entre um determinado passado e o presente, os protagonistas e as circunstâncias nem são os mesmos nem se repetem, pois são fruto de pessoas atuais e das suas respetivas motivações.

O passado, se condiciona o nosso presente e o modo como se encara o futuro, não é válido por si só para legitimar o presente e menos ainda o futuro, até porque estes podem ser sempre perspetivados de modo diferente. A ética do presente e do agir futuro, se pode tomar referência no passado, não pode entender-se como mera perpetuação deste, como se a consciência dos indivíduos não pudesse adquirir outros contornos mais apropriados para a realização humana.

Se a recomposição da vida das pessoas e das sociedades é constante, mesmo quando habituados à repetição do quotidiano e motivados por uma existência o mais favorável a cada um de nós, a realidade apresenta-se de forma bem distinta. Viver e conviver em sociedade só atinge um adequado nível de concretização pela progressiva interiorização do processo consciente de autolimitação na relação com os outros e em cada um. A solidariedade não se pode alcançar sem graus significativos de abdicação.

Uma parte significativa da humanidade vive em condições sofridas pela ambição e pela desmesura de outros, poucos, dos quais, eu que escrevo e, provavelmente, alguns que possam ler estas linhas fazemos parte. A liberdade respeita o que se pretende alcançar e realizar. O que cada um de nós quer realmente da vida? A resposta aos problemas começa em cada um de nós.

Cada um não perde a sua liberdade porque se autolimita e abdica, antes acrescenta a capacidade de contenção. Vivemos e conhecemos a pandemia e os confinamentos, a guerra e as suas misérias, bem como a fome que já atingiam há muito certas populações, as mais fracas e vulneráveis. Como mancha que se espalha, estas situações atingiram agora as nossas sociedades onde, muitas vezes, se concebe a realização humana com um desenvolvimento constante e exponencial de ter mais, de ganhar mais ou muito mais, sendo certo que todos pretendemos fugir à morte mesmo se isso provoca a subjugação e a morte de outros, de muitos, de milhares e de milhões de mulheres, de crianças e de homens desamparados e desesperados.

 

Práticas para mudar a vida

É sempre tempo de mudar de vida, reorientar e corrigir os nossos desejos de ambição e de domínio, afinando a vontade de ajudar os outros, pois, por mais que se tenha ou se seja, não se escolhe ficar na história porque esta tende, muitas vezes, a valorizar e a reter alguns que se comportaram como canalhas e assassinos.

A história do bem é aquela que atende à complexidade e aceita as contradições existenciais. O melhor depositário das práticas do bem é o coração e a gratuidade de uns em relação aos outros, sendo que a mão direita não deve saber das graças da mão esquerda e vice-versa. A perpetuidade espalha-se no universo enquanto dom, tudo aquilo que vem de fora, da pessoalidade única e indestrutível. O mal, se prejudica gravemente aqueles que atinge, existe e também é um fazer, mas no final destrói sempre quem o exercita. É tempo de praticar um mundo melhor e mais justo, para nosso bem e dos outros. Não se trata de ideologias, mas de práticas.

A responsabilidade pelo que acontece também se constrói e se aprofunda. Contrariar a fatalidade não resulta somente do que os outros são ou constroem, mas respeita a capacidade de resistência de cada um, de individualmente potenciar a disponibilidade para assumir as consequências dos atos de liberdade e de solidariedade. Estas são práticas do quotidiano.

Haverá sempre muito dinheiro para o armamento, não necessariamente para a defesa das populações, mas para reprimir aqueles que aspiram à sua liberdade e a uma maior justiça. Os momentos de grandes dificuldades das sociedades são muitas vezes acompanhados por grande agitação e, também, por não menor indiferença até as situações baterem à nossa porta. Quanto do que acontece decorre da defesa do nosso bem-estar, da nossa indiferença, de uma cultura reivindicativa, mas não de redistribuição justa e adequada?

Seremos capazes de não desfalecer perante a urgência de apoiar até ao fim os que foram invadidos, para restituir o que lhes é devido?

Muitos desafios nos solicitam: combater bens mal adquiridos e não se aproveitar dos mecanismos de especulação e de mais-valias indevidas; contrariar e lidar, sem alarmismos, com a inflação o aumento dos preços em geral; consumir menos, em particular energia; potenciar mais empregos a partir daquilo que temos e está ao nosso alcance; partilhar a vida com mais imigrantes e proporcionar a sua integração sem medos; comer menos e procurar que o facto de ser mais caro reverta o mais possível para os produtores; aprender a não acusar os outros pelo nosso infortúnio; viver com menos, diminuir o nosso nível de vida e, simultaneamente, querer que outros vivam melhor; promover e aceitar limites de ganhos e de enriquecimento. Tantos caminhos.

Não se podem impor práticas solidárias aos outros, mas cada um pode realizar no seu quotidiano o desenho mais apropriado de um presente e de um futuro mais justo, mais ecológico, mais solidário. O que vale uma grande agitação se esta não tiver uma mudança, se não ocorrer uma conversão no presente de cada um? Por muito que se viva, a vida de cada um é sempre muito curta, às vezes escandalosamente curta. É verdade que só na consciência mais íntima e discreta cada um sabe o que vive.

Lisboa, 29 de abril de 2022

 

António Matos Ferreira é historiador e membro do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa. É autor de Um Católico Militante Diante da Crise Nacional (ed. CEHR).

 

Igrejas etíopes unem-se em conselho nacional para promover a paz

Decisão histórica

Igrejas etíopes unem-se em conselho nacional para promover a paz novidade

Face à “terrível situação humanitária” na Etiópia, os líderes das três maiores igrejas do país – a Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo, a Igreja Evangélica Etíope Mekane Yesus e a Igreja Católica Etíope – tomaram a decisão histórica de estabelecer um conselho nacional de igrejas. O compromisso foi assumido na semana passada, num encontro que decorreu no Instituto Ecuménico de Bossey (França) e visa reforçar a cooperação ecuménica na resposta às necessidades humanitárias, na promoção da paz e na defesa dos direitos humanos.

Bíblia ou Tradição?

Bíblia ou Tradição? novidade

Desde a Reforma Protestante que o Catolicismo se debate com a questão das fontes da revelação. Por oposição ao Protestantismo, que vê na Bíblia a única e exclusiva fonte da revelação, o Catolicismo sublinha a importância da Tradição para o estabelecimento da revelação divina. A questão, em termos simples, resume-se a saber como é que cada crente pode aceder à Palavra de Deus. (Jorge Paulo)

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

“Em cada oportunidade, estás tu”

Ajuda em Ação lança campanha para promover projetos de educação e emprego

“Em cada oportunidade, estás tu” é o mote da nova campanha de Natal da fundação Ajuda em Ação, que apela a que todos os portugueses ofereçam “de presente” uma oportunidade a quem, devido ao seu contexto de vulnerabilidade social, nunca a alcançou. Os donativos recebidos revertem para apoiar os programas de educação, empregabilidade jovem e empreendedorismo feminino da organização.

O “caso” frei Bernardo de Vasconcelos: 100 anos da sua vocação monacal e uma carta

O “caso” frei Bernardo de Vasconcelos: 100 anos da sua vocação monacal e uma carta novidade

Vem isto a propósito de uma efeméride que concerne o jovem Frei Bernardo de Vasconcelos (1902-1932), monge poeta a quem os colegas de Coimbra amavam chamar “o Bernardo do Marvão”, nome pelo qual era conhecido nas vestes de bardo, natural de São Romão do Corgo, em Celorico de Basto, Arquidiocese de Braga, que a Igreja declarou Venerável e que, se Deus quiser (e quando quiser), será beatificado e canonizado. (Pe Mário Rui de Oliveira)

Livro de Josué já tem nova tradução

Texto provisório online

Livro de Josué já tem nova tradução novidade

A Comissão da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) que coordena a nova tradução da Bíblia acaba de disponibilizar online a proposta de tradução do Livro de Josué, encontrando-se agora aberta a sugestões e contributos dos leitores, “em ordem ao melhoramento da compreensibilidade do texto”.

KAICIID reúne líderes religiosos e comunitários para promover paz em Cabo Delgado

Encontro em Pemba

KAICIID reúne líderes religiosos e comunitários para promover paz em Cabo Delgado novidade

O Centro Internacional de Diálogo – KAICIID, com sede em Lisboa, dinamizou no final da semana passada um encontro de “sensibilização inter-religiosa” em Pemba (capital da província de Cabo Delgado, Moçambique), no qual reuniu membros das comunidades locais, líderes religiosos e organizações da sociedade civil. Deste encontro saíram compromissos a curto e longo prazo de promoção do “diálogo entre líderes religiosos e decisores políticos como ferramenta de prevenção de conflitos” naquela região.

Agenda

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This