
O bispo Carlos Ximenes Belo, antigo administrador apostólico de Díli, Timor-Leste, numa foto de 2019. Foto © José Fernando Real, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Habituámo-nos a olhar para o bispo Ximenes Belo, antigo administrador apostólico de Díli e Prémio Nobel da Paz, como alguém que protegia e defendia os mais frágeis, por isso a história é ainda mais chocante: há pelo menos duas pessoas que acusam Carlos Ximenes Belo de abusos sexuais, de acordo com uma investigação do semanário neerlandês De Groene Amsterdammer, publicada nesta quarta-feira, 28 de Setembro, na sua página digital.
“O que eu quero é um pedido de desculpas”, diz o título do trabalho, citando uma das vítimas, identificada como Roberto – ambas as pessoas referidas como abusadas pediram o anonimato. “O que eu quero é um pedido de desculpas d[o bispo] Belo e da Igreja”, diz, afirmando que decidiu contar a sua história para que outras pessoas falem também.
“Quero que eles reconheçam o sofrimento que me infligiram a mim e a outros, para que esta violência e abuso de poder não volte a acontecer.” A outra vítima, identificada como Paulo, insiste numa ideia semelhante, de acordo com o jornal: “Temos de falar sobre [os abusos sexuais] e gritá-lo mais alto ao mundo”, diz ele.
Os casos referidos pelo jornal terão ocorrido na década de 1990, quando Ximenes já era bispo. Roberto tem hoje 45 anos, Paulo tem 42. Na altura dos factos tinham entre 14 e 16 anos. Mas, de acordo com a mesma investigação da jornalista Tjirske Lingsma, os alegados abusos podem ter abrangido mais vítimas e terão começado ainda antes disso, quando o então padre Ximenes Belo era o superior nos Salesianos de Dom Bosco, em Fatumaca, na década de 1980.
Em ambas as situações, as vítimas dizem que o bispo tentou silenciá-las a troco de dinheiro e que conhecem outras pessoas que terão sido abusadas. No caso de Roberto, os abusos terão começado na sua terra, onde o bispo se deslocou algumas vezes. Depois, o rapaz mudou para Díli e a exploração sexual também, diz o jornal. E foi já na capital timorense que ambos, Roberto e Paulo, dizem que havia um carro que ia buscar os jovens para a residência do bispo.
O jornal diz ainda que haverá outras alegadas vítimas e que duas dezenas de pessoas já tinham tido alguma informação sobre o caso, incluindo “membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil e elementos da Igreja”. Mais de metade dos entrevistados garantem, segundo a reportagem, que conhecem pessoalmente alguma vítima. Mas nenhuma das outras vítimas contactadas aceitaram contar a sua história.
“Não há mecanismos de apoio às vítimas”
Timorenses residentes em Lisboa ouvidos pelo 7MARGENS dizem que já tinham ouvido rumores sobre o caso, mas “nada de concreto”. E admitem que “mais cedo ou mais tarde a história haveria de aparecer a público”. Um deles dizia que o bispo Ximenes deveria “ir a Timor, admitir o erro e pedir perdão” às vítimas. Seria a maneira de sarar o possível, acrescentava. Há também quem conheça bem a realidade timorense e admita que lhe “custa a acreditar”.
Mas outra pessoa que tem trabalhado largas temporadas em Timor acrescenta que numa sociedade ainda muito marcada por valores tradicionais, a divulgação de casos deste tipo pode ter efeitos dramáticos: “Não há mecanismos para que vítimas tenham apoio e sejam cuidadas”, e enquanto sociedade isso não está a ser pensado, diz.
As primeiras investigações sobre o caso têm exactamente 20 anos: foi em 2002 que uma pessoa denunciou que um irmão seu estava a ser vítima de abusos. Em Novembro desse ano, o bispo apresentou a sua resignação do cargo, invocando problemas de saúde e a necessidade de um longo período de recuperação.
De Groene Amsterdammer recorda o percurso de Belo, nascido em 3 de Fevereiro de 1948 numa família devota de Wailacama, em Timor-Leste, então ainda colónia portuguesa. O pai morreu quando ele tinha três anos, a família enfrentou a pobreza e Carlos teve de trabalhar para ajudar a ter arroz para comer. Já em criança gostava de brincar aos padres, frequentou depois escolas católicas e o seminário. Em 1968, veio para Portugal, e aqui viveu a Revolução de 25 de Abril de 1974. Em Outubro desse ano regressou a Timor, já com o processo de descolonização iniciado. No ano seguinte esse processo é interrompido pela invasão indonésia do território, quando ele está em Macau.
Ordenado padre em 1980, Ximenes regressa no ano seguinte a Timor e choca-o o medo, a pobreza e a violência, resume o jornal a partir da biografia de Arnold S. Kohen, From the Place of the Dead. Bishop Belo and the Struggle for East Timor (1999). Em 1983, estava em Fatumaca quando é nomeado administrador apostólico da diocese. E nesse cargo enfrentou o poder indonésio ocupante, apoiou pessoas em fuga ou simplesmente em necessidade ou mediou situações de maior violência. Em 1991, registou-se o massacre de Santa Cruz e o bispo está de novo na primeira linha da defesa das populações embora, em muitas ocasiões, a sua linguagem fosse ambígua. Em 1996, Ximenes e o actual Presidente, então “embaixador” da causa timorense, recebem o Prémio Nobel da Paz, “pelo seu trabalho para uma solução justa e pacífica do conflito em Timor-Leste”.
Silêncios

O próprio Ximenes Belo, a residir em Portugal, remeteu-se ao silêncio, tal como a congregação dos Salesianos, a que pertence. À SIC, uma fonte dos religiosos disse que haveria um comunicado, mas não adiantou quando. À Renascença, a Província Portuguesa dos Salesianos remeteu as eventuais explicações para a Nunciatura Apostólica (embaixada do Vaticano) em Lisboa, uma vez que, a partir do momento em que foi nomeado bispo, Ximenes Belo deixou de ser membro da congregação – apesar de, em todas as vindas que fazia a Lisboa, ter ficado sempre nas casas da congregação.
José Luis Guterres, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor, ouvido também pela RR, disse que nunca teve “conhecimento de que tenha havido algum inquérito ou alguma investigação da parte das autoridades, quer da procuradoria ou outros organismos da Igreja Católica” sobre a acusação que “estão a atribuir ao nosso querido bispo Ximenes Belo“. “Quem acusa deve apresentar provas. Aqui em Timor, eu não tenho conhecimento que tenha havido algum inquérito contra o bispo Ximenes Belo.”
A Renascença noticia ainda que contactou uma fonte judicial portuguesa que trabalhou no aparelho de justiça timorense e que garante não ter conhecimento de qualquer inquérito judicial nestes últimos 20 anos.
Já o representante diplomático do Vaticano em Timor-Leste disse que o caso de Ximenes está entregue aos órgãos competentes da Santa Sé, mas não confirmou se houve qualquer investigação.
“Pessoalmente não posso nem confirmar nem desmentir porque é uma questão de seriedade da minha parte, visto a competência ser dos meus superiores na Santa Sé”, disse à Lusa, citada pela CNN Portugal, Marco Sprizzi.