
Manuel Clemente faz 75 anos já este ano. Aqui, preside a uma celebração na Sé de Lisboa. Foto © Patriarcado de lisboa
Um bispo que seja “uma voz profética”, que “promova uma Igreja sinodal”, que “saiba escutar e dialogar”, que seja “um homem de comunhão”, que tenha “capacidade de governar, usando de criatividade pastoral” e que “seja um homem prudente e de coragem”. Estes são alguns dos pontos que um grupo de católicos da área do patriarcado de Lisboa apontam como necessários ao futuro patriarca de Lisboa, e que sugerem num documento que foi enviado ao Dicastério para os Bispos (DB), no Vaticano, e ao núncio apostólico (representante da Santa Sé), em Lisboa.
O texto, a que o 7MARGENS teve acesso em primeira mão, surgiu do facto de desde há meses se falar da sucessão do patriarca, assumida pelo próprio na última Páscoa, quando disse aos padres da sua diocese que esta seria a última vez que com eles celebraria aquele tempo litúrgico, naquela qualidade. Mas também foi provocado pela “necessidade, reforçada pelos últimos acontecimentos na Igreja em Portugal”, de adequar o perfil traçado, qualidades e experiência dos candidatos a bispo, “nomeadamente no que diz respeito a lidar com casos de abuso”, com a “transparência e confiança” e com um “processo de consulta” que envolva membros do clero e leigos, “escolhidos de forma a abrangerem a diversidade da diocese”.
É a primeira vez que, em Portugal, há uma iniciativa deste género, protagonizada por católicos e com esta dimensão. A carta com o documento foi já recebida pelo núncio, o bispo Ivo Scapolo e entretanto apoiada por mais cerca de meia centena de pessoas – o grupo convidou quem assim o entenda a manifestar o seu acordo com o texto, enviando cartas para a nunciatura (nuntius@nunciatura.pt; secretaria@nunciatura.pt), e dando-o a conhecer ao mesmo tempo para o endereço electrónico cristaosacaminho@gmail.com. O documento está disponível na íntegra numa ligação electrónica.
“Sentimos urgência em redigir este texto, sobretudo neste contexto dos abusos e da resposta titubeante dada pela Conferência Episcopal”, diz a historiadora Ângela Barreto Xavier, da Comunidade da Capela do Rato, e uma das subscritoras do documento. “Há um mal-estar generalizado entre um grande número de crentes, houve pessoas que se afastaram e achámos fundamental que os novos bispos tivessem um perfil mais próximo do que o Papa Francisco tem apontado e que também está consagrado” no Directório
para o ministério pastoral dos bispos, Apostolorum Successores, do DB.
Cecília Vaz Pinto, médica, outra das subscritoras, que integra a mesma comunidade lisboeta, acrescenta que o texto surge também do “caminho sinodal em que a Igreja Católica está envolvida e que tem motivado um maior interesse dos leigos em todos os processos da Igreja”. Os apelos do Papa à participação e escuta dos católicos foram outro empurrão importante, admite.
No texto, os autores dizem que o cargo episcopal deve concretizar formas de liderança “mais consentâneas com os princípios de integridade, transparência, responsabilidade e coresponsabilidade, participação e inclusão, missão e comunhão, em linha com uma Igreja Sinodal”.
Na história foi assim

Os 21 autores do texto começam por recordar que os processos de eleição dos bispos pretendem “escolher as pessoas mais qualificadas para ocuparem esses lugares” e que, “na maior parte da história da Igreja”, esse processo “envolveu o clero e as comunidades”. Hoje, há em várias dioceses mais participação nesses processos de escolha que vão ao encontro de uma “maior sinodalidade”. Por isso, também em Portugal deve haver “mecanismos de auscultação” para “acolher o sentir do clero e da comunidade diocesana”; e não havendo no imediato “candidatos adequados”, o grupo sugere “que se continue à procura até encontrar o perfil necessário”.
O grupo não indica nomes, porque a opção foi definir um perfil. “A maior parte dos subscritores estiveram envolvidos na reflexão sinodal em várias comunidades e por isso sentiram necessidade de passar à prática do que tinham reflectido”, explica Cecília Vaz Pinto. De facto, o grupo inclui, entre outras, pessoas da comunidade da Capela de Santa Marta (a psicóloga Margarida Bruto da Costa ou o historiador Pedro Silva Rei), das Equipas de Nossa Senhora (Fernando e Lisete Fradique), da Rede Cuidar da Casa Comum (João Luís Fontes e Teresa Paiva Couceiro), da paróquia de Santa Isabel (o advogado Paulo Câmara, o jornalista Jorge Wemans, editor do 7MARGENS, e Nuno Caiado, dinamizador da carta que pediu uma investigação independente sobre os abusos), da Pastoral da Saúde (Sandra Chaves Costa), do movimento de mulheres do Graal (Teresa Vasconcelos), do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais (Alfreda Fonseca e Paula Madeira), Fundação Betânia (Eduarda Ribeiro), Nós Somos Igreja (Margarida Pereira-Muller) e Julieta Dias, religiosa do Sagrado Coração de Maria.
No texto, os signatários pedem ainda “um bispo centrado no essencial” e que leve “o Evangelho onde ele é e não é conhecido, aos lugares da vida e da não vida, onde Jesus é desfigurado e perseguido”; um bispo “que seja a imagem do bom pastor”, com a “proximidade e cuidado de Jesus Cristo com todos, em especial com os mais pobres e vulneráveis, doentes, excluídos e marginalizados”; uma pessoa “livre e humilde” e “que seja o menor no meio de todos”, que se deixe “seduzir mais pela sua comunidade do que pelo poder da sua posição” evitando “derivas autoritárias, como o clericalismo”.
“Não foi difícil chegar a um consenso sobre o texto”, diz Cecília Vaz Pinto. O grupo começou por reunir informalmente várias pessoas que se conheciam entre si, às quais se agregaram outras de diferentes grupos e comunidades. Auscultados alguns padres, redigiram a seguir o documento. “Queríamos que ele viesse a ser um ponto de partida para várias comunidades da diocese e também para outras dioceses que estão a atravessar o mesmo processo”, acrescenta a médica subscritora.
“No momento em que diferentes dioceses entram em sede vacante, era importante que este documento pudesse servir para o debate”, acrescenta Ângela Barreto Xavier.
Lugares à espera e candidatos

A carta dirigida ao Dicastério para os Bispos acrescenta ao documento referências explícitas a que o bispo a escolher para o patriarcado não deve ser “um gestor preocupado com os bens, o património e os compromissos a celebrar com o poder económico e o poder político”, que deve caminhar “com as vítimas” dos abusos de membros da Igreja “pedindo perdão, libertando-se das teias do clericalismo e tudo fazendo para recuperar a humilde credibilidade de quem existe para servir”, que não seja “um homem de gabinete” nem “autocentrado” nem reduzindo “a participação” dos crentes a “meras formalidades inconsequentes”; e, finalmente, alguém que seja capaz de “derrubar os muros que dividem e distanciam as comunidades da Diocese de Lisboa” e não “alguém mais preocupado com a sua própria imagem do que com o enraizamento das comunidades e dos seus pastores na vida para os outros a que nos convida Jesus Cristo”.
Este documento surge quando, após ano e meio de espera, foi finalmente nomeado um bispo para Bragança e, sexta-feira, dois novos auxiliares para a diocese do Porto.
No entanto, a diocese de Setúbal, sem titular há quase ano e meio também, continua a aguardar a nomeação, enquanto os bispos da Guarda (por limite de idade) e de Beja (por razões de saúde) pediram já também a saída. Além destas dioceses (e de Lisboa), também os bispos Antonino Dias (Portalegre) e Manuel Quintas (Algarve) atingirão os 75 anos ainda este ano e no início do próximo.
Entre os nomes para Setúbal e Lisboa, têm circulado os do arcebispo de Évora (Senra Coelho), e dos bispos de Coimbra (Virgílio Antunes), Funchal (Nuno Brás), das Forças Armadas (Rui Valério) e do presidente da Fundação JMJ, Américo Aguiar.
Senra Coelho, garantem padres da diocese de Évora ao 7MARGENS, já disse a membros do clero da sua diocese que, para o Patriarcado, Virgílio Antunes já tinha dito que não e que, por isso, seria ele o escolhido. Quer Nuno Brás quer Américo Aguiar seriam bem-vistos pelo actual patriarca, Manuel Clemente, que no Verão passado, em entrevista à Renascença, disse que Lisboa iria precisar de “um bispo a condizer com a juventude”.
Entre os outros candidatos, Nuno Brás e Américo Aguiar têm vários anticorpos entre o clero da diocese, garantem vários padres. Que acrescentam que um dos factores decisivos para o actual momento que a Igreja vive em Portugal será o da resposta à crise dos abusos – tema sobre o qual a maior parte dos bispos pouco fala e pouco age. Ao contrário do que aconteceu no Chile e em vários outros lugares, em que os bispos visados colocaram os seus lugares à disposição do Papa, os bispos portugueses não entenderam a crise como sistémica, apesar de vários deles já terem sido acusados de não darem importância a denúncias ou terem tomado decisões erráticas. Os próximos meses e as nomeações que aí vêm serão decisivos para entender que rumo tomará a hierarquia portuguesa.