Dois terços da população do mundo, num terço dos países, vivem situações de discriminação ou perseguição por causa da sua fé religiosa. A situação piorou nos últimos dois anos, diz o Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, divulgado na manhã desta terça-feira, 20. Os cristãos continuam a ser o grupo mais perseguido e a pandemia ajudou a agravar a situação. Chaves de leitura do documento.

O mapa da liberdade religiosa no mundo, em 2021: a mancha das violações abrange sobretudo a Ásia, Médio Oriente, África do Norte e Central. Fonte: AIS
Dois terços da população mundial, que vivem em 62 países do mundo (entre os quais, alguns dos mais populosos, como a China, Índia, Paquistão, Bangladesh e Nigéria), estão sujeitos à ausência, condicionamento ou violação da liberdade religiosa. Num total de 196 países analisados, quase um terço deles vivem situações de perseguição, discriminação e violência religiosa. E a discriminação e perseguição com base em crenças religiosas é actualmente um fenómeno global crescente, ao mesmo tempo que aumentou também a gravidade das “principais categorias de perseguição e opressão”.
Estas são algumas das principais conclusões do novo Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo (RLRM), acabado de publicar pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) e respeitante aos anos de 2019-2020. Nele se verifica também que os cristãos – de diferentes confissões, consoante o país – continuam a ser os mais perseguidos. A síntese do relatório e o documento completo podem ser consultados na página da AIS.
No mapa-mundo das violações, a mancha vermelha onde corre mais sangue, tortura, discriminação ou intolerância situa-se numa larga faixa que abrange um vasto território que vem desde o Extremo Oriente asiático (Coreia do Norte, China, países do Sudeste asiático, Índia), passa depois para o Médio Oriente (onde Israel, Palestina e Líbano são as únicas excepções, ainda que sob vigilância), continua pelo Norte de África e desce, depois, por grande parte dos países da África Central.
Europa, Américas, Austrália e Nova Zelândia são as zonas do mundo mais respeitadoras da liberdade religiosa, com algumas excepções: na Europa de Leste, há problemas que colocam a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia sob observação neste capítulo de respeito pelos direitos humanos fundamentais; igualmente sob observação, na América Latina, estão Guatemala, Haiti, Honduras e México, enquanto Cuba, Nicarágua e Venezuela são listados no segundo grau mais grave de violações.
Violência, vigilância, perseguição severa

Em dez tópicos, o relatório resume a situação: radicalização de milícias que se reivindicam religiosamente do islão e que recrutam membros através de plataformas digitais; culpabilização das minorias religiosas pela pandemia; intensificação da perseguição a crentes e violência sexual utilizada contras as minorias; tecnologias mais e mais sofisticadas de “vigilância repressiva” usadas contra vários sectores, entre os quais os grupos religiosos no topo.
Neste último aspecto, o relatório cita o caso chinês: o regime ditatorial usa 626 milhões de câmaras de vigilância reforçadas com inteligência artificial e scanners de telemóveis “nos principais pontos de controlo de peões, cruzados com plataformas de análise de dados”. Isso permite fazer um reconhecimento facial quase perfeito – e, portanto, exercer um controlo praticamente total sobre os movimentos das pessoas.
O relatório conclui ainda que há uma “perseguição severa” a minorias (mesmo assim, mais de 30 milhões de pessoas) como os muçulmanos na China e em Mianmar/Birmânia (incluindo uigures e rohingyas), para a qual só agora a comunidade internacional parece despertar; que, sobretudo no Ocidente, tem sido menosprezado o ensino da religião, que pode ser uma ferramenta para reduzir a radicalização; há uma espécie de “perseguição educada” que, ao mesmo tempo que se consagram novos direitos ou normas culturais, remete as religiões para uma “obscuridade silenciosa da consciência do indivíduo ou para os recintos fechados das igrejas, sinagogas ou mesquitas”.
O único ponto positivo entre as 10 conclusões é que o diálogo inter-religioso teve novos impulsos durante o período em análise. Refere-se, nomeadamente, a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado em Fevereiro de 2019, nos Emiratos Árabes Unidos, pelo Papa Francisco e o Grande Imã Ahamad Al-Tayyib, de Al-Azar, o líder do mundo muçulmano sunita.
Uma erosão que vem de há anos

Numa análise mais fina, Marcela Szymanski, a responsável editorial do RLRM, assinala que a perda de um direito fundamental como a liberdade religiosa tem ocorrido frequentemente por um processo de erosão que “ocorre ao longo de anos”.
Além das falhas de vários Estados na protecção do direito à liberdade de religião e crença, os ataques mais importantes a este direito fundamental vêm de governos como o da China ou Coreia do Norte, ou de grupos terroristas internacionais como o Boko Haram ou o Daesh, explica Szymanski. Mas no período em análise, e sobretudo no último ano, tudo foi exacerbado pela pandemia. “Os Estados têm utilizado a insegurança para aumentar o controlo sobre os seus cidadãos e os participantes não estatais têm aproveitado a confusão para recrutar, expandir e provocar crises humanitárias mais vastas.”
Os 26 países com o mais grave índice de violação da liberdade religiosa abrangem perto de quatro mil milhões de pessoas, ou seja, pouco mais de metade (51%) da população mundial.
Afeganistão, Arábia Saudita, Bangladesh, Birmânia (Myanmar), Burquina Faso, Camarões, Chade,
China, Comores,
(Rep. Democrática do) Congo,
Eritreia, Índia, Irão,
Coreia do Norte, Líbia,
Malásia, Maldivas,
Mali, Moçambique,
Níger, Nigéria,
Paquistão, Somália,
Sri Lanka,
Turquemenistão e Iémen.
Valha a verdade que este número resulta de uma malha alargada: no mapa que publica, o RLRM coloca a vermelho todos os países sujeitos a violência de que pode resultar perseguição religiosa. É o caso de Moçambique, que é “pintado” todo de vermelho: sem situações de grave preocupação a nível estatal, o Norte do país tem sido vítima da violência de grupos terroristas na província; não sendo um caso de perseguição religiosa, a violência tem atingido comunidades ou agentes religiosos (católicos, mas também de outras confissões, incluindo muçulmanos, aliás maioritários na região).
Marcela Szymanski explica, sobre a África Subsariana: “as populações têm sido historicamente divididas entre agricultores e criadores de gado nómadas, sofrendo ocasionalmente surtos de violência resultantes de conflitos de longa duração por motivos étnicos e de luta por recursos, mais recentemente exacerbados pelas alterações climáticas, pobreza crescente e ataques de bandos criminosos armados.”
Apesar disto, a maioria dos diferentes grupos étnicos e religiosos viviam em relativa paz, acrescenta a editora do RLRM. Mas essa realidade foi quebrada na última década, com a violência a irromper “com uma inimaginável ferocidade”, libertando a “frustração reprimida de muitas gerações de jovens desfavorecidos que sofreram pobreza, corrupção e fracas oportunidades de educação e trabalho”.
Tais frustrações, acrescenta Szymanski, “alimentaram a ascensão de grupos armados, incluindo militantes islamitas, tanto locais como, mais recentemente, estrangeiros, grupos jihadistas transnacionais empenhados numa perseguição selectiva e sistemática de todos aqueles, tanto muçulmanos como cristãos, que não aceitam a ideologia islamita extrema”.
Este fenómeno criou, na África Subsariana, “um paraíso para mais de duas dezenas de grupos activos e cada vez mais cooperantes em 14 países, incluindo filiados do Daesh e da Al-Qaeda”, que começa por “ataques de bandos criminosos locais, impulsionados por pregadores jihadistas”, que depois passam a “ataques ideológicos e específicos” e a “filiação” a uma “província de um autoproclamado califado”.
Consequências imediatas: milhões de deslocados internos ou de refugiados nos países vizinhos, graves violações dos direitos humanos, mulheres e crianças vítimas maiores ou escravizadas, fome e miséria de milhões que deixam os campos e os negócios tradicionais, impossibilidade de ajuda humanitária, rapazes e homens recrutados à força… No Burkina Faso, por exemplo, e segundo a Organização Mundial de Saúde, mais de 60% do território não estava acessível à ajuda humanitária, no final de 2020.
Nacionalismos etno-religiosos e comunismos

Já na Ásia, as mais graves violações têm duas origens essenciais: regimes que acentuam cada vez mais um nacionalismo etno-religioso, perseguindo ou retirando direitos às minorias; e governos de inspiração comunista. Estes últimos incluem os dois piores países incluídos na categoria vermelha do RLRM: a China e a Coreia do Norte. Aqui, quem ouse desafiar o culto da personalidade do líder Kim Jong-um é perseguido, mas o relatório diz que o Estado é particularmente severo com os cristãos – neste aspecto, o regime pode mesmo definir-se como “exterminador”, observa Marcela Szymanski.
Também na China, onde na população de 1,4 mil milhões, quase 900 milhões se identificam com alguma forma de espiritualidade ou religião, “o controlo do Estado é implacável”, recorrendo a tecnologias de inteligência artificial refinada. “O Partido Comunista Chinês (PCC) tem um dos motores de controlo religioso mais difundidos e eficazes do Estado, actualmente em funcionamento em qualquer parte do mundo”, diz a editora do relatório.
O “exemplo mais explícito” das violações ou restrições à liberdade religiosa no âmbito dos nacionalismos étnico-religiosos cada vez maiores talvez seja o da Índia, com uma maioria hindu de quase 1,4 mil milhões de pessoas, mas com números significativos de muçulmanos e cristãos. Mas a Índia está mal acompanhada, neste pormenor: no Paquistão de maioria muçulmana, no Nepal de maioria hindu e no Sri Lanka, Birmânia, Tailândia e Butão de maioria budista, as minorias são também perseguidas, em nome do nacionalismo de base étnica e religiosa.
Na Índia, o partido do poder, o Bharatiya Janata Party (BJP), tem apelado cada vez mais ao nacionalismo hindu. Aumentam as leis anti-conversão em vários estados acompanhadas de conflitos, intimidações, prisões arbitrárias, discriminações ou mortes violentas. O caso do padre jesuíta Stan Swamy, que o 7MARGENS tem acompanhado e é também referido no relatório é um exemplo entre muitos a revelar a erosão da defesa do direito à liberdade religiosa.
Em países como o Paquistão (Ásia) e a Nigéria (em África), as mulheres e as raparigas que professam uma religião minoritária são ainda mais vitimizadas, já que são tornadas escravas, trabalhadoras do sexo ou trabalhadoras manuais.
“Um bem precioso” a proteger

Descendo na gravidade da escala, há 36 países onde se registam algumas limitações à liberdade religiosa, abrangendo cerca de 1,24 mil milhões de pessoas, ou seja, 16% da população mundial. Foram aprovadas leis desiguais para determinados grupos religiosos em alguns países, e, apesar da democracia formal em países como a Argélia, Tunísia e Turquia (ou também a Índia), é comum o controlo sobre quem é elegível para determinados cargos, a discriminação nos empregos ou outras formas de pressão.
Os 36 países com algumas limitações à liberdade religiosa são:
Argélia, Azerbaijão, Bahrain, Brunei, Cazaquistão, Cuba, Djibuti, Egipto,
Etiópia, Indonésia, Iraque, Jordânia, Kuwait, Quirguistão,
Laos, Madagáscar, Mauritânia, Maurícias, Marrocos, Nepal, Nicarágua,
Omã, Qatar, Singapura, Sudão, Síria, Tadjiquistão, Tanzânia, Tailândia,
Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Uzbequistão, Venezuela e Vietname.
Noutros estados, (sobretudo no Médio Oriente, Ásia do Sul e Central, e vários antigos países soviéticos) foram promulgadas leis que pretendem “impedir a expansão do que consideram ser religiões estrangeiras” ou o islão “não tradicional”. “A liberdade de culto é garantida, mas não a plena liberdade religiosa.” Em alguns países, a apostasia da confissão maioritária “é punível, por vezes com a morte” e as leis anti-blasfémia permitem silenciar as minorias. E mesmo em casos em que a conversão não é proibida por lei, acaba por ser no concreto, em virtude da forte pressão social.
Numa análise acerca do impacto da pandemia na liberdade religiosa, como se pode ler noutro texto que o 7MARGENS publica, Maria Lozano, outra das editoras do documento, descreve que “a necessidade de travar a propagação do vírus também teve implicações para uma série de liberdades fundamentais, incluindo a liberdade religiosa, restringindo o culto público e as actividades educativas e caritativas das comunidades religiosas”.
O relatório introduziu ainda a categoria de países sob observação, onde se registaram “novos factores emergentes que causam preocupação devido ao seu impacto na liberdade religiosa”. Aumento dos crimes de ódio por preconceito religioso, vandalismo contra locais de culto e símbolos religiosos, ou crimes violentos contra líderes religiosos e fiéis são alguns dos fenómenos registados neste âmbito.
Os 25 países colocados “sob observação” são:
África do Sul, Bielorrússia, Butão, Camboja, Chile, Costa do Marfim,
Filipinas, Gâmbia, Guatemala, Guiné-Conacri, Haiti, Honduras, Israel,
Líbano, Libéria, México, Palestina, Quénia, República Centro-Africana,
Ruanda, Rússia, Sudão do Sul, Togo, Ucrânia e Uganda.
“A realização da liberdade religiosa ou de crença nas nossas sociedades modernas, cada vez mais pluralistas, tornou-se uma tarefa difícil”, observa Heiner Bielefeldt, que escreve no relatório sobre o direito à liberdade religiosa ou de crença como “um bem precioso”, como já foi definido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que o considerou “um dos fundamentos de uma sociedade democrática”.
Tendo em conta “a inesgotável diversidade dos sistemas de crenças, convicções religiosas e morais, práticas individuais e comunitárias, a liberdade religiosa ou de crença tornou-se sujeita a muitas questões de longo alcance, que justificam um debate público profundo”, acrescenta Bielefeldt. Para concluir: “As pessoas continuam a procurar um sentido último na vida, a acarinhar as suas convicções existenciais, a prestar culto juntamente com outros e a criar os seus filhos em conformidade com os valores que têm em alta estima. Viver juntos numa sociedade pluralista e democrática requer uma cultura de respeito, que não floresceria sem liberdade religiosa ou de crença.”