
Gracia Nasi com o sobrinho; ilustração de Arthur Szyk no livro The Last Days of Shylock, de Ludwig Lewisohn (Londres/Nova Iorque, 1931)
Nascida em Portugal em 1510, com o nome cristão de Beatriz de Luna, Gracia Nasi pertencia a uma uma família de cristãos-novos perseguida e expulsa de Castela. Tendo ficado viúva aos 25, herdeira de um império comercial e de uma incalculável fortuna por muitos cobiçada, Gracia iria revelar-se uma exímia gestora dos negócios fundados pelo seu marido, o banqueiro português Francisco Mendes. A sua vida e personalidade, e o destino de outros 100 mil judeus sefarditas, descendentes das comunidades judaicas da Península Ibérica, expulsos de Portugal por ordem de D. Manuel I, são o foco do documentário Sefarad: Gracia Nasi, que passa na noite desta quarta-feira, 30 de novembro (23h20), em estreia na RTP2.
O documentário de Nuno Garcia, diz a sinopse, percorre a história dessas pessoas, enquanto dá a conhecer a incrível mulher judia que, no século XVI, “se destacou pelo seu carácter e pelos seus feitos extraordinários”.
Tendo vivido “desde criança no mundo ambivalente de uma verdadeira fé escondida e de uma falsa declarada”, escreve Esther Mucznik na biografia que lhe dedicou (Gracia Nasi. A Judia Portuguesa do Século XVI que desafiou o seu próprio destino, ed. A Esfera dos Livros, 2010),
“Gracia Nasi era uma mulher de convicções sólidas, com uma grande força de carácter e de grande argúcia e capacidade empresarial. Mas os seus traços mais marcantes são a sua inquebrantável fé judaica e a compaixão que manifestou durante toda a sua vida pelos seus correligionários ‘marranos’, sujeitos às perseguições.”
De facto, depois de ter deixado Portugal após o estabelecimento da Inquisição no país, em 1536, atravessando meia Europa (Antuérpia, Veneza, Ferrara, onde mandou imprimir a primeira Bíblia em ladino, a famosa Bíblia de Ferrara…), Gracia chegou ao Império Otomano, onde encontrou a liberdade de professar o judaísmo sem o receio de ser perseguida. Aí, além de continuar a dirigir os negócios, dedica também parte do tempo e do seu dinheiro, a apoiar outros marranos na sua fuga à Inquisição, bem como o estudo e ensino do judaísmo, a edição de Bíblias e a ajuda a pessoas carenciadas.
Muitos desses marranos estendem-se nessa época por vários continentes, conta o documentário, fazendo permanecer a cultura sefardita por vários séculos. “Hoje, calcula-se que o número de judeus desta linhagem ronde os vinte milhões”, diz ainda a sinopse de Sefarad: Gracia Nasi.

Capa do livro de Esther Mucznik.
No seu livro, Esther Mucznik escreve: “Muito cedo [Gracia] interiorizou o perigo de se afirmar abertamente como judia e só o fez verdadeiramente em Istambul, já na meia-idade, no final de uma errância que percorre o mapa europeu. Uma mulher que incarna nela própria o destino dos cristãos-novos ‘judaizantes’, eternamente dilacerados entre dois mundos, duas culturas, duas pertenças religiosas, duas identidades. Viúva aos 25 anos e à frente de um império baseado no comércio de especiarias cobiçado por reis, príncipes e papas que não se coibiam de exercer sobre ela as mais violentas pressões para se apoderarem da sua riqueza, ela assumirá o seu papel de ‘mulher de negócios’ simbolizando ao mais alto grau o espírito pioneiro, empreendedor e preponderante assumido na época pelos sefarditas judeus/cristãos-novos. Mas, como muitos marranos, ela aliava um grande sentido prático e o instinto de sobrevivência a uma religiosidade mística e fervorosa que a fazia preferir o face a face com Deus à companhia dos homens.”
A investigadora de assuntos judaicos acrescenta: “A vida de Grácia ilustra a história do marranismo português. Mesmo judia, Grácia nunca deixou na verdade de ser ‘marrana’. A longa vivência dupla, acompanhada de uma exposição permanente ao sofrimento e às perseguições dos cristãos-novos acusados de ‘judaizarem’, contribuíram para manter acesa a sua identidade de grupo, mesmo já no seio do judaísmo. Grácia Nasi combateu toda a vida por aquilo em que acreditava, sem nunca alterar as suas convicções e a sua fé e protegendo sempre os seus correligionários perseguidos. Habituada ao convívio de igual para igual com os poderosos do mundo cristão e muçulmano e a enfrentar os permanentes assaltos à sua família e ao seu poder económico, a resignação não estava na sua índole, nem na sua história. Ela teve o mérito de ousar proclamar que nada condenava os judeus a aceitar passivamente a perseguição e o sofrimento.”
Neste que é “um dos mais impressionantes episódios da Europa seiscentista”, Gracia Nasi surge como “uma figura maior do judaísmo do século XVI: judia e marrana, não judia ou marrana”, escreve ainda Esther Mucznik. Que conclui: “Pelo seu próprio exemplo demonstrou o fracasso da assimilação forçada. O que, afinal, toda a história humana nos comprova. “
Sobre ela, a escritora francesa Catherine Clément escreveu A Senhora (1992), romance histórico que conheceu um êxito assinalável e foi publicado em Portugal pela Asa.
“O nosso verdadeiro nome comum era Nasi, que quer dizer príncipe. Pobres de nós! Nessa época já não éramos príncipes, mas proscritos disfarçados”, escreve a autora, colocando estas palavras na boca do sobrinho de Gracia. Sobre este livro, escreveu o Magazine Littéraire que através do livro de Clément “o mundo mediterrânico ressuscita com a luz, os seus perfumes, o esplendor e a desgraça dos marranos“.
Sefarad: Gracia Nasi (estreia)
RTP2
Quarta, 30 de novembro, 23h20
Documentário