A pandemia provocou um certo embaraço à teologia e à própria experiência religiosa e parece tê-las tornado irrelevantes no debate intelectual público e na doação de um “plus” de sentido à simples vida biológica. Com esse ponto de partida, João Paulo Costa, presbítero e investigador na área de filosofia, propõe uma reflexão sobre o que pode significar uma terceira via político-religiosa. Nela, o cristianismo católico poderá, enquanto instituição universal, ser capaz de orientar o devir das sociedades para a imunização do vírus dos exclusivismos, através de uma inteligência espiritual crente e com o melhor pensamento lúcido secular e as artes de sentido disponíveis para o resgate do humano.
A par do ensaio, propõem-se dois itinerários artísticos: uma digressão virtual por 369 trabalhos de Francis Bacon, e a audição do War Requiem, de Benjamin Britten, onde, a partir da categoria polissémica de Ruína, se poderá configurar uma outra proposta filosófico-teológica para pensar a existência.
Convenceram-se de que, para que nós crescêssemos, bastava vestir-nos, alimentar-nos, responderem a todas as nossas necessidades. E, a pouco e pouco, fundaram em nós o pequeno burguês de Courteline, o político da aldeia, o técnico fechado a qualquer vida interior. [1]
Se alguém pode exigir alguma coisa do cristão, é o próprio cristão. [2]
Nada parece ter causado maior embaraço à teologia e à própria experiência religiosa como a situação pandémica actual e as suas consequências imprevisíveis no tempo a vir. Não se trata de constrangimentos meramente práticos, ao nível organizacional, mas sobretudo pela irrelevância do pensamento teológico no debate intelectual público e na doação de um “plus” de sentido à simples vida biológica. Se a teologia enquanto tal é um discurso plausível sobre Deus e os humanos, e os modos do dar-se dessa relação numa existência crente crística, de ser um grito inteligível e compassivo na barraca trágica do mundo, impõe-se a questão de saber se ela poderá contribuir para pensar a situação actual.
Todavia, e não obstante o questionamento natural que a realidade impõe, parecem ser parcas ou inaudíveis as reflexões propriamente teológicas sobre a significação desta pandemia e das suas implicações ao nível do humano. Não se trata simplesmente de impor à realidade uma hermenêutica ou uma certa metafísica já feita e já sabida, mas sobretudo de escutar silenciosamente o que os fenómenos visíveis e invisíveis nos podem revelar, e o que os diversos conhecimentos disponíveis poderão contribuir para uma “razão filosófica ou teológica” alargada, sem prescindir do que ela mesma pode e deve dizer acerca desses fenómenos.
Será que a actual irrelevância pública da teologia cristã, por motivos externos e internos que agora não importa tanto descortinar, mas que também não são indiferentes ao próprio fazer teológico, e a uma certa ausência de estilo literário no modo de a pensar e expressar, a impede de se fazer presente e de dar um contributo às interrogações humanas? O seu discurso, a sua linguagem e a sua descrição da realidade serão assim tão implausíveis?
Não levanta a realidade questões às tradicionais respostas da teodiceia: Viveremos nós no melhor dos mundos possíveis? O Cosmos é intrinsecamente caótico ou harmonioso? De onde vem este mal infligido em tantos inocentes? Deus, Natureza, Homem? Será somente possível protelar uma redenção no mundo futuro? As leis empíricas e previsíveis da natureza são a explicação final e cabal de todos os fenómenos? Ou há algo mais para além do visível observável? Não será também este o kairos propício para reaver e repensar as questões do mal, do sofrimento, da dor, da morte, da existência, da angústia, do tédio, da fadiga, da antropotécnica, ou da própria ideia de Deus mesmo? Não terá sido a hodierna teologia de pendor liberal apanhada desprevenida, porque demasiadamente ocupada com as chamadas questões morais fracturantes, desinteressando-se da metafísica fundamental da ordem das coisas?[3]
O mesmo não parece acontecer noutros domínios intelectuais onde o momento actual tem sido amplamente reflectido, nomeadamente no campo científico, médico, psicológico ou filosófico ou até literário, como veremos. Isto não significa que não haja pensamento teológico, mas ele vem hoje essencialmente de uma filosofia criativa que se poderia designar crente ou religiosa, por filósofos que são católicos ou cristãos, assentes na filosofia fenomenológica (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Ricoeur, Levinas, Henry, Maldiney…).
Este modo filosófico de pensar a teologia está muito presente no mundo académico francófono ou anglo-saxónico, como são os casos de Emmanuel Falque, Jean-Luc Marion, Jean-Yves Lacoste, Jérôme Gramont ou John D. Caputo, Richard Kearney, Kevin Heart, John Milbank ou Charles Taylor, que procuram reabilitar o melhor da tradição teológica patrístico-medieval dando-lhe uma nova relevância filosófica e existencial, ombreando assim inteligentemente com a tradição filosófica secular.
Numa das suas conferências, “O incrédulo e os cristãos: Conferência no convento de Latour-Maubourg”, o escritor Albert Camus revelava a inactualidade do pensamento religioso cristão, e a pertinência da sua metafísica existencial, quando escreve: “O mundo de hoje pede aos cristãos que eles permaneçam cristãos […]. Eu partilho convosco o meu horror do mal. Mas não partilho a vossa esperança e eu continuo a lutar contra este universo onde as crianças sofrem e morrem […], o grande problema que opera no mundo de hoje é o problema do mal, e eu defino assim o interesse que o cristianismo pode aportar a isso” [4].
Não obstante as diferenças de aproximação às grandes questões, há aqui toda uma reflexão que poderá enlaçar mundo laico e religioso, filosofia e teologia, ciência e literatura, psicanálise e medicina, na indagação do problema do mal, na sua dimensão ontológica e existencial. Mais do que qualquer outro, foi o pintor Francis Bacon que nos deu essas variações do torso carnal de rostos infligidos pelo sofrimento de existir. A consciência do humano surge como experiência sensível de um mal que não escolhemos mas nos atrai e sequestra.
Filósofos não-confessionais, como Peter Sloterdijk (a atmosfera frívola do entretenimento impede alguma aprendizagem com as catástrofes, tornando-se necessária a instauração de um “escudo universal humano”, a “dependência básica”, que as “pandemias políticas” e os meios de comunicação “portadores de infecções” não permitem)[5], Slavoj Žižek (a abertura utópica igualitária neocomunista)[6], Bernard-Henri Lévy (uma apologia do mundo pré-pandemia: viagens, cosmopolitismo, comportamentos afectivos…)[7], Giorgio Agamben[8] (até quando estaremos dispostos a viver num estado de excepção que suspende toda a existência reduzindo-a quase a uma vida biológica?), ou ainda José Gil (a crise pandémica é a revelação de um tempo indomável e caótico, por fenómenos que saem fora do controlo científico e humano, abrindo uma crise sistémica e instaurando ao mesmo tempo novos modos ser que não podem excluir uma nova maneira de nos relacionarmos com a presença da morte na vida)[9], entre vários outros, têm vindo a polarizar o debate em torno desta questão premente[10].
Na mesma linha, ainda que não necessariamente aplicada a esta questão, parece situar-se o filósofo Frédéric Gros, que desenvolve toda uma teoria da “desobediência”[11] ou da “insubmissão” à actual ordem mundial, num apelo à responsabilidade e participação crítica dos cidadãos no governo da vida comum, que, nos dias que correm, se tem materializado de modo inesperado na “desobediência civil” dos cidadãos do norte da Europa. Não será esta “vida suspensa”, que o “vírus soberano” veio exacerbar e revelar as patologias da sociedade do controlo, a suspensão da própria vida biológica, na medida em que a degrada à sua componente fisiológica de sobrevivência? A vida suspensa é a vida submissa aos imperativos sanitários que impõem o confinamento absoluto, tornando-nos seres cadavéricos ou sonâmbulos comandados por uma voz soberana única, democraticamente legitimada.
O narrador da fábula de Orwell lança-nos esta interrogação muito contemporânea: “«Não será claro como a água, camaradas, que todos os males desta nossa vida provêm da tirania dos seres humanos?»”[12]. Os Padres do Deserto e os místicos carnais sabiam bem como essa tirania inumana actua até nos mais bondosos e pacifistas, e por isso mesmo propunham o “combate espiritual” permanente contra as perversões da natureza humana como forma de vitalizar o corpo pessoal e comunitário.
Também o filósofo Roberto Esposito, já antes desta pandemia, na esteira de Michel Foucault, havia elaborado uma filosofia política da bios, apelidando-a “paradigma da imunização”[13] moderna do indivíduo. Esta biopolítica afirmativa (communitas – exposição ao outro e a outro de si), ao contrário da negativa (immunitas, autoconservação da vida no encerramento solipsista ou grupal) potencia a vida na sua amplitude espiritual e comunitária. A biopolítica negativa é, na verdade, uma tanatopolítica, pois visa apenas a conservação e protecção da vida biológica, negando a abertura da vida mesma a outras formas de ser e de viver (como no nacional-socialismo que reduziu a vida ao biológico-fisiológico, ao sangue e à raça).
Esta filosofia da vida pressupõe que haja uma lógica transfronteiriça, quer dizer, sem prescindir das zonas limítrofes que circunscrevem o campo ou a identidade própria de cada entidade (cidade, país, personalidade…), vai para além das zonas limítrofes da auto-imunização excessiva diante do corpo outro (corpo-social, corpo-político, corpo-religioso, corpo-sensível, corpo-dolente), radicando-se na hospitalidade incondicional do humano, desse outro rosto concreto que é daí onde eu sou, como potencialização política da vida inter-humana. Não se trata de política sobre a vida nem da sua politização ideológica, mas de garantir que todas as formas de vida têm habitabilidade no espaço público e direito de cidadania.
Somente o verdadeiro diálogo, onde cada um permanece o que é e fala verdadeiro a partir do ponto em que se encontra, poderá desfazer alguns dos equívocos teóricos e práticos. Certamente que não há respostas definitivas para tantos questionamentos que nos assaltam nem pontos de vista absolutos. Todavia, a procura interrogante é o começo para o encontro de algumas respostas.
No texto em epígrafe deste ensaio, Saint-Exupéry interroga-nos se, para crescer, no sentido amplo deste termo, bastará vestir-se, alimentar-se e acomodar as necessidades fisiológicas, esquecendo a vida interior (arte, espiritualidade, cultura…). O cultivo do espiritual no humano (vida pensante ou meditativa) não deveria ser um luxo elitista, mas aberto a todos, pois é isso que nos humaniza, autentifica ou plenifica a existência, na medida em que é um antídoto para o medo e a ignorância que grassa naqueles lugares onde não existe imaginação, simbólica nem ethos[14].
Esta ausência da Vida (zóe) mais do que da vida (bíos) é o lodo propício para a efervescência dos fenómenos extremistas e prometeicos que a breve tempo, instalados no poder, disseminam a obscena gratuidade do mal e da violência sobre o outro. O que era “antisistema” torna-se sistema ainda mais perverso do que aquele que denunciava, instaurando novas redes de domínio e de poder ao que já existia, mas agora com novos protagonistas, ideologizando tudo e todos, desde a educação ao conhecimento e à cultura. Paradoxalmente, a afirmação exclusiva da bíos – encerramento tribal sobre si ou sobre a espécie ou sobre o indivíduo – acontece à custa da eliminação da Vida (zóe), da diversidade criadora de novas possibilidades e razões do viver juntos.
O quadro global que vivemos exige que se pense as complexas relações entre sociedade, política e vida. Vemos hoje determinados valores ou práticas predominantes a serem absolutizados e outros, outrora considerados inapagáveis, a ser relegados para segundo plano. Não eram esses valores até então de primeira ordem e imprescindíveis? Isso verifica-se seja no campo das liberdades, direitos e garantias, seja ao nível religioso, em que, por exemplo, o “absoluto culto e preceito dominical católico” ou até “Deus” foram praticamente terraplanados pelo “absoluto sanitário” (confinamento, distanciamento).
Esta reconversão secular do religioso – iluminismo teológico – mais no discurso do que nas práticas, tem sido, na verdade, uma das garantias da moderação católica, pronta a abrir brechas face ao crescendo do radicalismo religioso no seu seio ou nas tradições do protestantismo evangélico. Se com esse iluminismo crente a “folia de Deus” e dos seus excessos de virtuosidade foi apaziguada, hoje é evidente que esse empenho social e ético do religioso no mundo regride.
Há claramente um retorno dessa folia primitiva na sua forma politizada mais extremista. A reconversão moralista do cristianismo está em marcha, já não por via de uma ética da hospitalidade e da compaixão, mas por via da “chegada” de messianismos políticos do exclusivismo máximo, mesclando perigosamente gnose (o iluminado) e zelotismo (o Messias político que salvará pela luta armada). Impõe-se, portanto, pensar a urgência de uma Terceira Via, prático-teórica, entre a cosmovisão comunista e a interpretação ultraliberal do mundo.
Qual seria essa Terceira Via, espécie de “Mandamento Mais Novo” (Peter Sloterdijk), de nova teologia místico-política, que não exclui as outras duas mas as intermedeia criticamente, propondo uma via verdadeiramente alternativa à bipolarização ideológica? A via da imunização constituindo-se como uma teologia da imunidade, ou então, uma experiência espiritual crente da contra-imunidade? Como seria ou constituiria essa contra-imunidade espiritual?
Dizer “contra” não significa “anti”, ou melhor, é mais do que “anti”, porque não é uma negação, mas afirmação da Vida diversa. A imunidade grupal é necessária para os fenómenos que colocam em risco o saber viver comum. A contra-imunidade, que reúne em si a dialéctica do imunizar e do não-imunizar, afirma essencialmente que há um outro lado por explorar, para além da imunização absoluta que se fecha em si mesma, sem espaço para a real diferença dos corpos diversos. A haver imunização é a do humano comum contra os vários vírus, literais ou metafóricos, que de tempos em tempos ameaçam, invadem e abafam a biodiversidade, em nome de um absoluto irreal, porque essa mesma diferença está inscrita na ontologia da Natureza ou no modo de ser do próprio Cosmos.
Talvez esta “secularização sanitária global disseminada” no interior do próprio discurso religioso seja o último estádio da progressiva autonomia histórica do mundo secular. Esta já não resulta das legítimas reivindicações dos não-teísmos (evolução, ateísmo, agnosticismo, indiferentismo, relativismo…), mas da própria atitude religiosa ou discurso teológico que tende a adaptar-se e a adaptar as estruturas mundanas para a sua própria relevância e disseminação pública.
Esta subversão ou erosão de valores outrora intocáveis (horizontalização absoluta do Absoluto) que a situação pandémica expõe fragiliza os defensores das normas absolutas, dos dogmatismos inamovíveis, sem contextos nem subjectividades. Mas também denuncia o liberalismo moral porque implica aprender a viver juntos, para que não haja caos nem anarquia destruidores da própria Vida. Digamos com toda a veemência que esta leitura ou descrição dos fenómenos não implica qualquer tipo de juízo de valor, mas tão-somente o peso da evidência dos fenómenos actuais.
Todavia, segundo o filósofo Roberto Esposito, algo nascerá depois deste tempo, na medida em que “é a própria alma da sociedade que é posta em discussão, ou seja, a relação inter-humana. Obviamente, certa dose de imunização é necessária”. Mas imunizar-nos de quê ou de quem? A relação entre imunidade e comunidade é frágil. O excesso de imunidade viral pode voltar-se contra o próprio corpo biológico, ou numa outra dimensão, contra a própria comunidade, exacerbando a degradação do corpo social. Para Roberto Esposito, “é o que acontece, no plano biológico, com as doenças auto-imunes, quando a protecção imunológica se volta contra o próprio corpo que deveria defender, levando-o à destruição”. À pergunta sobre qual poderia ser o contributo do cristianismo ou da espiritualidade cristã na situação actual pandémica, Esposito responde o seguinte:
Na minha opinião, um papel importante. Mas tenha cuidado, a situação é de grande risco para a Igreja. Também nesse caso, a crise que estamos a enfrentar não deixará de ter efeitos. A Igreja pode sair desse episódio consideravelmente fortalecida ou profundamente enfraquecida. A fronteira entre essas duas possibilidades parece-me definida precisamente pelo termo “espiritualidade”. Se prevalecerem interesses partidários, que legitimamente existem na Igreja, então será difícil reconstruir uma intensa relação com a comunidade das pessoas de fé. Se, em vez disso, uma interpretação católica universalista prevalecer no sentido forte e originário do termo, então a Igreja poderá jogar – mas esse verbo parece-me inadequado – um papel de liderança na definição da sociedade por vir.
Se há questão que toca os fundamentos da salvação cristã são precisamente os problemas filosóficos e antropológicos que este vírus pandémico levanta. Temas clássicos como o mal, Deus, o humano, a finitude, o sofrimento, a ressurreição da carne, a qualidade de vida espiritual, coresponsabilidade pelo bem comum, salvaguarda ecológica, poderão alcançar aqui novas formas de expressão e de entrar em relação com os debates filosóficos e culturais actuais. Como escrevia Píndaro, citado por Albert Camus, como epígrafe ao seu livro O Mito de Sísifo: “Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível”, pois, e aqui é próprio Camus que o escreve, “o sentido da vida é o mais premente dos assuntos – das interrogações”. Há aqui mais que tudo um conflito espiritual desmedido e insanável entre a ânsia de vida eterna insolúvel e a eterna vivacidade do instante. E todavia, como escreve ainda Camus, “sei que é possível transigir e que é possível viver no século crendo no eterno”.
Esta “aspiração à vida imortal”, que o mundo religioso metaforiza como transcendência no quotidiano, e o esgotamento do “campo do possível”, que a razão humana e as artes de sentido tematizam e expressam, parece hoje entrar em franca clivagem ou em oposição. Os grandes temas religiosos deixaram de ser os propósitos das artes de sentido. Todavia, isso não significa que não haja indícios da transcendência nas novas formas de expressão artística, ou melhor, da necessidade de reabilitar e repor as grandes obras clássicas e humanistas como fonte de compreensão e de sentido para o mundo contemporâneo. Perante esta crise antropológica real, parece nem haver aspiração a uma meta-narrativa que nos arraste e motive nem crença suficiente no possível diante de uma “exegese sanitária” totalitária, prescindindo das outras dimensões que qualificam o viver propriamente humano. Somos reduzidos a objectos ou a mónadas desintegrados dos nexos simbólicos e lúdicos a partir dos quais a realidade do mundo adquire a sua consistência.
Evidentemente que, na situação pública dramática actual, tudo fica suspenso, em função do bem maior, que é a vida de cada um e de todos. Mas desde que seja temporariamente. Será, todavia, esta suspensão da Vida (zóe) em favor da vida material (bíos/psyché) apenas temporária, ou já estávamos a assistir à redução do humano à sua componente monista materialista, na sua versão numérico-digital actualizada? Mais do que qualquer outra soberania (política, religiosa ou económica), estamos submetidos a um “vírus soberano”, expressão última da “catástrofe respiratória” (Donatella Di Cesare[15]), a pedir outras formas ou novos modos de coabitação inter-humana. Por muito que se sobrevalorize a dimensão biométrica da vida, este tempo tornou-se irrespirável pela sanitarização e vigilância punitiva da existência.
Este vírus soberano, que revela a fragilidade da vida humana e dos sistemas públicos imunitários, manifesta igualmente a ilusão das soberanias nacionalistas e patrióticas e as ilusões das superioridades e vanglórias individuais. Como sentenciava Baruch de Espinosa: “O corpo humano necessita, para conservar-se, de muitíssimos outros corpos”[16]. Este saber ontológico do corpo torna-se, assim, a analogia adequada para pensar a infinita potência da vida e dos sistemas político-sociais e a origem do próprio conhecimento, a partir e através do qual a mente pode conhecer as coisas.
Na verdade, nada obsta que a actual vaga securitária e controladora da psique humana conduza à exposição digital dos nossos dados mais íntimos, como já acontece em grande escala na China, como forma de controlo e de punição dos infractores que não correspondem ao padrão moral estabelecido paternalmente pelo soberano. Esta nova intenção de criar um Boletim de Saúde Europeu, enquanto condição de acesso a diversos espaços e serviços públicos, é uma das consequências do pânico actual que pode levar à má exploração da nossa própria condição de fragilidade na dita “sociedade positividade” e do conseguimento (sucesso) intelectual, emocional e espiritual. Por outro lado, sem uma educação humanista, capaz de gerar cidadãos livres e responsáveis, a partir das grandes ideias e projectos do pensamento laico-espiritual, dificilmente se alcançará o equilíbrio entre o bem-estar individual e o bem da comunidade, entre o público e o privado, o íntimo e o extímico.
Perante isto, como poderá o saber teológico cristão abordar esta questão? Quais as fontes de sentido da experiência cristã que permitem “imunizar” o humano? A acontecer, a imunizar de quê e de quem? De que modo a “biblioteca dos signos celestiais” (Peter Sloterdijk) podem ainda falar ao terrenal (campo do possível)? Não é líquido que uma teologia predominante autocentrada nas questões da pós-modernidade, que prescindiu de pensar uma ontologia da realidade ou dos fenómenos, possa ser de grande monta para reflectir estas questões metafísico-existenciais. Não podemos deixar de avançar a ideia de que o cristianismo, na sua forma originária crística e macária (“felizes os/as” das Bem-aventuranças práxicas), e na sua expressão práxica monástica (cultura, liturgia, trabalho e fraternidade)[17], é talvez a grande força aproximativa e mobilizadora capaz de se colocar entre a visão marxista capitalizada e o paradigma neoliberal da tecnociência. Esta forma de vida encarnada (relação equilibrada indivíduo e comunidade, cultura e ecologia, trágico e promessa de vida nova) contém e dá-nos uma narração, uma simbólica e um ethos que diz verdade e dá sentido à nossa presença no mundo.
Não se trata de uma simples sensação de si mesmo, mas da percepção vital de um Outro Erótico (o Eros como desejo do outro que se subtrai à posse absoluta) que nos interpela no Rosto infinito Trágico do mundo. Este Rosto concreto certifica o próprio ser do ser si mesmo (dor, angústia, desejo, paixão, tormento, consciência, destino…) contra o pasmo da “sobrevivência confortável” que apaga a dor sentida na carne. “O cristianismo é escândalo” (Kierkegaard) ou o “cristianismo como agonia” (Miguel de Unamuno) ou combate espiritual, entre o que se crê e o que está além do que se crê, o inatingível aqui e agora, como a realidade que faz o “génio do cristianismo” (Chateaubriand).
A tradição hebraico-cristã na sua força originária e testamentária, na verdade inerente aos seus mitos, não esconde a força do trágico nem idealiza a natureza humana, ao contrário das grandes ideologias políticas idealistas e distópicas, mas coloca-a num horizonte bem amplo de realização, da qual o combate aos ídolos mortíferos faz parte. Não por acaso os grandes criadores das literaturas, das artes e do pensamento, sempre consideraram a Escritura como o lugar da revelação dialéctica entre o trágico e o esplendor, a glória e a desgraça, a bondade e a corrupção, a catástrofe e a redenção, o mal e a graça… e nela se inspiraram fecundamente para as suas obras. O que seria a vida sem esta metafísica da realidade humana? Segundo Albert Camus, há na “metafísica cristã e na atitude cristã em geral algo que fez a sua riqueza e devia continuar a fazê-la: segundo o meu conhecimento, é uma das raras filosofias coerente, capaz de jogar ao mesmo tempo sobre o plano histórico e o plano eterno”[18].
Nesse sentido, valerá a pena citar textualmente Byung-Chul Han, no seu mais recente livro, onde o filósofo constata que:
Em face da pandemia, a sociedade da sobrevivência proíbe serviços religiosos mesmo na Páscoa. Os padres também praticam o “distanciamento social” e usam máscaras. Sacrificam totalmente a crença à sobrevivência sanitária. Paradoxalmente, o amor do próximo manifesta-se como distanciamento. O próximo é um portador de vírus potencial. A virologia desautoriza a teologia. Todos estão atentos ao que dizem os virologistas, que alcançam uma supremacia de exegese absoluta. A narrativa da ressurreição cede por completo o passo à ideologia da saúde e da sobrevivência. Perante o vírus, a fé degenera e transforma-se numa farsa. Ela é substituída por unidades de cuidados intensivos e por ventiladores. Contam-se os mortos diariamente. A morte domina por completo a vida e esvazia-se em nome da sobrevivência. A histeria da sobrevivência torna a vida radicalmente transitória. Ela é reduzida a um processo biológico, que precisa de ser optimizado. Perde toda a dimensão meta-física […]. A vida é despojada de qualquer narrativa com sentido. Ela deixa de ser narrável e passa a ser mensurável e contável.[19]
Para o pensador germano-coreano, o próprio posicionamento do mundo religioso face à crise pandémica, sem qualquer tipo de resistência intelectual, cedeu ao domínio dos virologistas e epidemiólogos, parece tornar a atitude religiosa uma “farsa” ou “obsoleta”, reduzindo-a uma paródia de culto televisivo ou facebookiano. A ausência de uma certa resistência intelectual e ética revela a transformação do próprio religioso, a perda ou a ausência da razão teológica no debate público. Há provavelmente uma certa neoliberalização da religião cristã, já reflectida por Max Weber (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), que a transforma numa espécie de investimento privado ou numa sociedade anónima de serviços e bens de consumo, como já acontece nas expressões cristãs norte-americanas (esta é a tese do reputado exegeta americano Walter Brueggemann, explanada no seu portentoso ensaio “Imaginação Profética”).
A religião, como as restantes expressões da existência humana (arte, literatura, conhecimento), está a transformar-se em entretenimento ou divertimento de massas por via da transformação digital. Aqui tudo se torna disponível, interactivo e divertido. Todavia, mesmo se “Deus” é agora anunciado como estando também fora do templo interditado, com apelos incessantes ao distanciamento e ao confinamento, Ele parece ser ocultado no interior do próprio discurso que o pretende dizer ou experienciar. A reserva de intimidade e de mistério que cada existência traz consigo cumpre agora o novo “imperativo moral” de se expor sem filtros. Não há dissidência nem desobediência de pensamento possíveis. Tudo é planície amarelada de uma “febre informativa”[20] trágica que nos embala quotidianamente, que ofega e não deixa espaço para outras possibilidades e até para pensar conscientemente o que vemos, sentimos e vivemos.
A excessiva torrente de sirenes ou imagens dramáticas que nos invadem diariamente, que o é, sem dúvida, coloca tudo no presente trágico, mas fazendo esquecer o passado e as suas crises, e com ele a possibilidade de aprendermos a viver e a preparar no tempo actual o futuro que vem. Esta poluição imagética que bloqueia o pensamento impede de reabilitar e pensar intensamente o humano em crise, esse “gosto do homem sem o qual o mundo será somente uma imensa solidão”[21].
É o ser humano em carne e osso que está em causa e não simplesmente a procura de uma reinvenção institucional do religioso que parece sucumbir ao inútil debate entre progressismo-tradicionalismo. Não haverá também aqui uma terceira via, a dos moderados lúcidos, tão excluídos do debate público, porque não inflamam, não espectacularizam nem entretêm as massas indigentes das redes sociais que ditam agenda pública e a vida das instituições? Se por um momento tudo isso se suspendesse, parafraseando um romance de García Márquez, ganharíamos cem anos de benéfica solidão solidária, em torno de um livro, de um quadro ou de um rosto vizinho atentamente escutado.
Ainda Albert Camus, no seu artigo “A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka”, lembra-nos que “a última tentativa do agrimensor é encontrar Deus através do que o nega, e reconhecê-lo, não segundo as nossas categorias de bondade e de beleza, mas por detrás dos rostos vazios e horríveis da sua indiferença, da sua injustiça e do seu ódio”[22]. É a lucidez desta realidade que é trágica, com ou sem vírus, porque as malvadezes humanas e cósmicas sempre existiram (desde as lutas pela sobrevivência do homem das cavernas à pobreza faminta do século XXI passando pelas loucuras mortíferas do século passado). É isto que os hodiernos agrimensores extremistas políticos ou religiosos não vêem: o Deus impalpável na carne palpável desta tríade da indignidade humana (indiferença, injustiça e ódio), o ‘encontro de Deus através de que o nega’.
Uma grande parte dos crentes desertará porque lhes falta esta experiência vital e solitária do deserto. A leitura contemplativa da Escritura e dos textos fundadores da aventura cristã, acompanhada de estudo e interpretação inteligentes, é quase nula numa grande parte dos crentes católicos. Muitos, à força de um comunitarismo agregador e sem discernimento, não têm a experiência de uma vida espiritual da solidão, do estar sozinho diante do Mistério absoluto e da sua própria finitude.
A fúria consumista que tem invadido os centros de consumação é espelho da “atitude positivista”, que foge ao confronto consigo mesmo, que é incapaz de um tempo de recolhimento, não como mera busca de auto-realização pessoal ou desabrochamento zen ilusório, mas a condição para a procura do bem comum de todos. Ser um cristão feliz, como um escritor ou artista feliz, não é ingenuidade ou pacifismo serôdio, é entrever na aridez da existência pessoal e comum, pequenas lucernas da graça inaudita, iluminuras pascais que clareiam o nosso Getsémani mais profundo.
Mas não será o Deus da tradição hebraico-cristã um Deus que caminha nas ruínas?[23] Como pode Deus não caminhar nas vias sinuosas dos humanos onde quer que eles se encontrem? Como poderá ser possível que o Deus crucificado – o máximo símbolo da rejeição do outro humano –, que ousou desconstruir as estruturas perversas do poder civil e sacro do seu tempo, abrir os túmulos do aprisionamento mortal da marginalização, possa legitimar o discurso radicalizado e extremista, sem que uma grande parte do mundo cristão (à excepção de Francisco e poucos mais), de modo particular autoridades religiosas, ouse pronunciar-se sobre esta falsa usurpação ideológica do discurso teológico cristão? “A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”! Não em oposição, mas cada um no seu lugar próprio, ambas as dimensões contribuindo para a pacificação do lugar e do mundo.
O Deus da Ruína é um Deus presente na ruína (contingência, finitude, apagamento, sofrimento, saudade, nostalgia…) como rasto indelével, mas não em ruína[24] nem arruína a liberdade humana[25]. O Deus da Ruína (teologia da Ruína) não é ruinoso, é do Abismo incriado, da Palavra, do Exílio, do Êxodo, do Getsémani, do silêncio dos inocentes que está lá onde está a fragilidade e a miséria da comédia humana, para a potenciar e recriar para um novo modo de ser ou de permanecer inactual no Ser. A Ruína é o que abre tempo futuro ao seu passado, como aquilo que permanece intocável na memória primitiva ou remota de já ter sido, não obstante a sua fragilização material, e por isso mesmo imperecível, porque resguardada pela erupção de uma atmosfera imemorial que nos constitui sem o sabermos. E quem melhor que o poeta para o dizer?
Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa[26].
Ou ainda a espada de se saber perdido na Ausência do divino, por instantes ou definitivamente, a interrogação de sabor nietzschiano que decide o humano propriamente dito:
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e como diremos rios?
O silêncio face à usurpação ideológica do teológico poderá revelar uma forma de assentimento subtil aos novos fenómenos partidários extremistas, de esquerda ou de direita, o princípio que lhes subjaz é o mesmo, que encontram guarida em muitos cristãos à margem da vida social, por vezes inconscientes dos dramas que estes messianismos políticos provocaram na história da humanidade. Por que razão os temas morais fracturantes mobilizam bem mais as investidas religiosas do que os extremismos políticos que pervertem a verdade da experiência espiritual crente autêntica? A defesa compulsiva dos ditos “valores inegociáveis” pode simplesmente ser feita à custa do aniquilamento do outro e das diferenças existentes numa sociedade plural? Estes fenómenos não surgem do nada, mas do interior de um “sistema” político e social adormecido e aburguesado nos chamados “direitos adquiridos democráticos”, que favorece ou privilegia uns quantos em detrimento de uma grande parte da sociedade que vive à margem de uma vida espiritual cultivada.
Paradoxalmente, face à omnipotência das autoridades sanitárias no domínio da fé religiosa, como em quase todos os sectores da sociedade, sem que se pensem modelos alternativos de actuação, o crente poderá descobrir que o Deus do templo é o Deus a quem pode orar no silêncio do seu quarto, no partir do pão da sua casa ou realizando o gesto do ágape nas relações de vizinhança ou no acolhimento do estrangeiro perdido. A suspensão da reunião da comunidade crente não é a suspensão da experiência vital de Deus, da sua presença recriadora no meio do caos. Assim, “em nome da sobrevivência, sacrificamos tudo o que dá valor à vida. Perante a pandemia, também se aceita inquestionavelmente a restrição radical dos direitos fundamentais. Sem opormos resistência, submetemo-nos ao estado de emergência, que reduz a vida à vida nua […] O campo de trabalho neoliberal em tempos de pandemia chama-se homeoffice. Apenas a ideologia da saúde e a liberdade paradoxal da auto-exploração o distinguem do campo de trabalho do regime despótico”, escreve Byung-Chul Han.
A decretação unilateral do “estado de sítio” ou do “estado de emergência”, que acentua drasticamente as desigualdades sociais já existentes, é paradoxal, porque, em última instância, depende sempre de um indivíduo, o governante ou o soberano máximo único, que decide democraticamente a vida de milhares de cidadãos. O novo dogma político do saber técnico: “como dizem os especialistas”, “como dizem os cientistas”. Ninguém coloca em causa o saber científico disponível e actual, mas o facto de o quererem tornar a explicação total da condição humana, que é bem mais do que boletins médicos ou algoritmos tecnológicos. Se outrora foi o tempo dos peritos-economistas (crise do subprime), hoje é a dos peritos-epidemiologistas (crise da covid-19), amanhã será a dos peritos-engenharias transumanistas (crise do Humano tal como o conhecemos).
O filósofo Byung-Chul Han assume aqui algumas das teses de Foucault sobre a vigilância e a punição tão vigentes na biopolítica transmutada em psicopolítica, mas alterando a sua intenção inicial. Han aplica-a não apenas às instituições do poder, como o faz Foucault, mas sobretudo ao regime neoliberal da felicidade absoluta, que é o modo actual global de exercer a violência física e emocional sobre os indivíduos. Neste paradigma ultraliberal são os próprios sujeitos que se autoflagelam sem disso ter consciência, pois “a digitalização é anestesia” da realidade sem resistência. Para este estado de coisas contribui grandemente a proliferação viral das redes sociais e da tecnologia disponível que invadiu todas as realidades da existência humana.
É esta era da antropotécnica que permanece ainda por pensar, bem como as suas consequências no nosso modo de ser pessoal e colectivo. Assim, segundo Han, “o vírus restitui a realidade”, acordou o gigante adormecido que nos fez entrar em pânico, tão adormecidos que estávamos pelo sonho da digitalização absoluta do humano. A esta dramatização viral acresce a ausência de consciência histórica, dando aso ao aparecimento de demagogos autofágicos que se alimentam a partir do sangue da ignorância e da miséria de outros humanos.
Estranhamente esta defesa absoluta do bem maior da saúde leva ao apagamento da própria Vida, pois estamos agora reduzidos a boletins epidemiológicos, a medição de temperaturas e a consumidores de ansiolíticos, porque tudo o que faz a vida digna de ser vivida, em nome da sobrevivência decretada pelo estado de emergência viral, como a cultura, a arte, a vida religiosa, o pensamento, a educação, as relações afectivas foram suspensas ou totalmente banidas.
Em nome desta sobrevivência, da “algofobia” que é uma “tanatofobia” que suspende o “bem viver” (gute Leben), até os pequenos prazeres que tornam a vida digna de ser vivida foram banidos. É o tempo da instauração absoluta do paradigma neoliberal do mundo, que optimiza os recursos humanos tendo em vista a pretendida maximização da “felicidade” por meio da meritocracia, da competição e do sucesso. Esta “coacção da felicidade”, como lhe chama Han, é uma armadilha da existência humana, porque reduz o humano a um vivo-morto, a não colocar a sua existência numa destinação ou narrativa maior do que o si próprio. “E óbvio que nos falta a mão curativa do outro. Nenhum analgésico pode substituir aquela cena primitiva de cura”, afirma Han.
A ausência de narrativas ou de contos de sentido faz com que o humano se reduza àquilo que é maximamente útil para a sua sobrevivência. “Sê feliz é a nova fórmula de dominação. A positividade da felicidade supera a negatividade da dor”, que se alcança mediante um desempenho optimizado ininterrupto até que a pessoa se torne consumidora compulsiva de antidepressivos para atingir as metas que lhe foram exteriormente impostas. Assim, “a motivação pessoal e a optimização pessoal tornam o dispositivo de felicidade neoliberal muito eficiente, pois a dominação não exige grande investimento. O submetido nem sequer tem consciência da sua submissão”, o que torna ainda mais perigosa a situação, a ampliação da dor por via da solidão e da anulação da proximidade tocante.
Como escreve o filósofo José Gil, agora, “perante a efemeridade da vida, agora intensa e imediatamente sentida, cada existência adquire um valor infinito […], a possibilidade de morrer invade-nos a cada instante, obceca o nosso presente”[27]. Claro que em tempos de prosperidade e de bem-estar absolutos o morrer não nos incomoda, mas a realidade impõe agora que a pensemos como uma presença invisível e secreta na vida.
A “experiência dos cuidados curativos como sensação de nos tocarem e falarem connosco está a tornar-se cada vez mais rara”, empobrecendo sempre mais o humano concreto, a humanidade como um todo. O drama da questão é que, depois deste trauma social, psíquico e económico, muito poucos serão os que se levantarão, como um doente após ser curado no hospital, mas agora sem casa afectiva para serem recebidos. Se faltam as narrativas de sentido pelas quais os seres humanos empenham toda a sua vida, tudo o resto se desmorona, é a instauração da barbárie. A esse propósito, Han cita o filósofo Ivan Illich: “Numa sociedade anestesiada, são necessários estímulos cada vez mais fortes para dar às pessoas a sensação de que estão vivas. As drogas, a violência e o terrorismo são os únicos estímulos ainda capazes de transmitir a experiência pessoal.”
O mesmo se poderia dizer relativamente ao recrudescimento de fenómenos ideológicos extremados que estimulam as pulsões guerreiras mais primitivas. Mas estes surgimentos são, também, de algum modo, um despertar dos humanos para o facto de nada estar garantido ou dado como adquirido. Vivíamos confortavelmente num “sentimento de imortalidade quotidiana”, sendo, agora, momentaneamente, assaltados pelo sentimento da fragilidade da vida e da iminência da morte, não apenas dos outros, mas da nossa. Ainda José Gil, no seu referido ensaio, constata o “esquecimento da presença dos mortos, cada vez mais obliterados e inexistentes nos nossos gestos e pensamentos. E, no entanto, essa presença pode ser um factor decisivo para a vitalidade da democracia”. E de onde virá essa espiritualidade de que fala subtilmente o filósofo se não da doutrina católica da “comunhão dos vivos e dos mortos” (comunhão de todos os santos, declarados e anónimos, passados, presentes e futuros), como sinal de esperança não apenas do além-vida, mas como memória sacramental reconstitutiva do divino no humano já nesta terra? E, de modo surpreendente, José Gil continua dizendo: “É a uma certa espiritualidade dos mortos no exercício da vida que a democracia pode ir buscar as forças vitais para o seu funcionamento.”
Não obstante um certo pessimismo radical de Byun-Chul Han, e de uma certa tendência para o revivalismo ou nostalgia de tempos, condições e lugares áureos inexistentes[28], a sua descrição filosófica do mecanismo social contemporâneo é de extrema importância. Neste paradigma a liberdade não é suprimida, mas explorada pelo próprio indivíduo que se explora a si mesmo para alcançar o máximo de prazer no consumo de bens descartáveis. É a satisfação autofágica do instante que nos consome. O sujeito neoliberal auto-explora-se, fazendo-se ele mesmo escravo do seu senhor (a lei do mercado liberal como novo deus – o que era visto como libertação da opressão tornou-se opressor do qual o sujeito atomizado não se liberta porque dele depende para o seu ideal de bem-estar), em virtude desse dispositivo de felicidade neoliberal que o seduz e lhe é imposto e ao mesmo tempo o agrilhoa. O humano submete-se voluntariamente ao poder inteligente tendo em vista a optimização e a realização pessoal.
Esse poder inteligente exercido pelas máquinas, mais invisível que o poder repressivo ou disciplinar tradicional ou despótico, seduz-nos, porque dá-nos uma aparente liberdade total. Somos permanentemente solicitados e convidados a comunicarmos as nossas necessidades, a sermos autênticos na praça pública, a expressarmos os nossos desejos e preferências, a contar o que fazemos e somos, sem nos darmos conta das informações preciosas que facultamos aos algoritmos do comércio que nos sugerirão bondosa e automaticamente aquilo de que mais necessitamos.
Mas aqui, como escreve Han, a “comunicação total e vigilância total, exposição pornográfica e vigilância panóptica confundem-se”. É nesta confusão total que o indivíduo se entrega ao mais puro narcisismo, acorda solitário e sem empatia pelos seus semelhantes, porque a sua rede neuronal se encontra domesticada pelo poder sedutor da promessa de uma vida sem negatividade nem dor.
Atenda-se, o filósofo não faz uma apologia da “via dolorista”, tão presente numa certa tendência cristã, mas apenas uma abordagem ontológica à dor, a dor como verdade do humano, como ligação, como diferença e a dor como realidade. Enfim, a dor como aquilo que nos torna verdadeiramente humanos, “na resistência que dói”, que faz com que as relações sejam não proximidades funcionais, mas uniões vivas, na medida em que sentimos o outro como sentimos a nossa própria dor. Tanto assim é verdade que o grande sonho da técnica robótica é precisamente a criação de máquinas inteligentes sem dor, na medida em que é isso que as torna vulneráveis e inoperacionais. Mas não é a vulnerabilidade do ser o que nos torna verdadeiramente humanos, capazes de sentir a dor de outrem como a nossa dor?
Como afirma o filósofo Peter Sloterdijk, “a imunidade será a grande questão filosófica e política após a pandemia”. Se há problemática que neste momento poderia suscitar interesse para os cultivadores da teologia, é a possibilidade de pensar uma nova teologia política da imunidade a partir da dimensão corpórea do humano – quer dizer, da resistência do corpo (e dos corpos socais, políticos, religiosos ou artísticos) à sanitarização da existência humana, mediante a criação de anticorpos naturais. O populismo político ou ideológico não surge do nada, emerge do interior da própria pluralidade democrática e do tecido social que se degradou. Os actuais actores da cena pública, intelectual e educativa distraíram-se em diatribes, marginalizando sempre cada vez mais camadas espessas do tecido social, de modo particular o mundo rural ou periférico, até ao aparecimento viral (literal e metafórico) destes fenómenos demagógicos de massas, que ampliam a revolta (“a rebelião das massas” de Ortega y Gasset) dos indignados.
O que é incerto, na verdade, é a própria ideia de Europa, com a sua possível desmembração e separação, como aconteceu com o “Brexit” e como está a acontecer com movimentos intelectuais e populares em França, que já idealizam o “’Frexit’ já, a nossa salvação está em jogo”, segundo o seu ideólogo Charles-Henri Gallois, ou noutras latitudes, como a emergência imparável dos nacionalismos suprematistas e de pendor xenófobo. Sem dúvida que muita da tecnocracia das instituições europeias e democráticas ajudou a alimentar esta onda de fogo ideológico anti-humano. Este novo sentimento leva o seu tempo a materializar-se, mas nada obsta que ele não venha a concretizar-se, colocando em risco a pacificação dos povos tal como a temos vivido até aqui.
Ora, a única instituição universal capaz de orientar o devir das sociedades, porque tem peso histórico e experiência humana para isso, é precisamente o cristianismo católico, sem exclusão das outras tradições religiosas, embora mais particularizados e menos estruturadas globalmente, mas igualmente fundamentais e necessárias para a imunização do vírus dos exclusivismos étnicos, como atrás nos referimos. Será, se o cristianismo católico não se partidarizar nem se tornar numa luta de facções, interna e externamente; será, se se auto-imunizar com a inteligência espiritual crente e com o melhor pensamento lúcido secular e as artes de sentido disponíveis para o resgate do humano.
Para o novo tempo que está aí, que revela a nossa total rendição à vida paliativa ou anestésica, que impede de pensarmos as causas profundas que conduziu a humanidade a este ponto aflitivo, a exigir uma “nova gramática comportamental” (comunidade, criação e conhecimento) ou de uma “co-imunidade mutualista” (Peter Sloterdijk), entre solidariedade biológica e consistência jurídico-social, poderá ser muito benéfica a leitura, não apenas do livro filosófico A Sociedade Paliativa, mas também o romance de José Saramago, As intermitências da morte, e de Don DeLillo, a sua novela O Silêncio, escrito antes mesmo do primeiro confinamento global. Aqui, perante o “ecrã vazio” do mundo, o narrador interroga-nos: “E não é estranho que certos indivíduos pareçam aceitar resignadamente o confinamento, a cessão do fluxo? Será uma coisa por que sempre ansiaram, subliminarmente, subatomicamente? Algumas pessoas, sempre algumas, um número ínfimo entre os habitantes humanos do planeta Terra, o terceiro planeta a contar do Sol, o domínio da existência mortal”[29]. Este domínio da extensão barbárica é a explosão actual tão ansiada da ordem digital que debilita a ordem da terra como o lugar originário do contacto humano e das diversas resistências que nos fazem sentir vivos.
Paradoxalmente, face a um tempo mais geocêntrico que heliocêntrico, contra todas as evidências e necessidades, que a hipercomunicação hodierna impõe a todos os instantes, não será tempo de começarmos a contemplar um pouco mais a grande “biblioteca de signos” que o céu nos revela? Para tal, entre o comunismo comunitarista (teologia libertário-marxista) e o neoliberalismo individualista (teologia da auto-realização ou da prosperidade), a experiência cristã, no seu todo diversificado e ramificado entre várias tradições, poderá constituir-se para a humanidade actual um espaço intersticial de refundação da compaixão humana, talvez único à escala global ou universal, que possa colocar em relação perspectivas tão diversas do mundo, isto se for capaz de ser fiel às suas próprias origens crísticas – a defesa da singularidade plural e do humanamente justo, a transformação do ódio em desejo de justiça.
Em suma, como escreve o narrador de O Silêncio, em forma de fragmento ditirâmbico: “Era o nome que o seduzia. A beleza do nome. […] – A figura luminosa. O Nazareno. Einstein – disse ele”[30]. E o que poderá a beleza do Nome luminoso dar-nos de novo? Ficam as palavras do compositor inglês Benjamin Britten, autor de um dos maiores monumentos do século XX, o seu inactual War Requiem (1961-62), onde aí se cruzam pensamento religioso e pensamento poético, para a dignificação do humano e das suas ruínas: “Uma vez que acredito que habita em cada homem o espírito de Deus, não posso destruir. Acredito que é meu dever ajudar a evitar a destruição humana. Toda a minha vida tem sido dedicada a actos de criação, sendo eu um compositor profissional, pelo que não posso participar em actos de destruição”[31]. A Terceira via está aberta, tornar-se-á ela inevitavelmente realizável? O espiritual (Nazareno), o científico (Einstein) e o artístico (Britten), se o forem, poderão, na verdade, juntos com a lucidez do pensamento, lançar-nos para essa terceira e nova Via do humano.
Notas
[1] Antoine de Saint-Exupéry, Um Sentido para a Vida, Livros do Brasil, Lisboa 2018, pp. 132-33.
[2] Albert Camus, Conférences et discours 1936-1958, Gallimard, Paris 2017, p. 87 (“O incrédulo e os cristãos. Conferência no convento de Latour-Maubourg”).
[3] Há excepções, sem dúvida, nomeadamente vindas do mundo francófono, onde abundam propostas editoriais de grande qualidade para o grande público, de todas as áreas do pensamento (Études, Le Débat, Commentaire, Le Point, Philosophie Magazine, Le Monde des Religions, Le Monde de la Bible, Sciences humaines, Connaissances des Arts, Magazine Littéraire, Science et Vie, La Vie, La Croix), presentes em qualquer escaparate ou quiosque, e onde, seria menos expectável, até pela ideia de uma maior laicização da sociedade e pelas diferenças culturais e religiosas existentes, os teólogos e filósofos participam frequentemente no debate de ideias. Mas é onde há verdadeira diferença de pensamento e estilos que também há maior estímulo ao pensamento criativo e inovador sem com isso prescindir da qualidade académica da proposta. Esta vitalidade editorial, à qual acrescem os livros e os espaços concretos de pensamento de excelência existentes (Collège de France, Collège des Bernardins, Collège International de Philosophie…), fora do âmbito estritamente académico clássico, revela que, não obstante a crise que assola o mundo dos livros e do pensamento, que há uma procura por parte de um público cioso de um melhor conhecimento do mundo.
[4] Albert Camus, Conférences et discours 1936-1958, pp. 88,93.
[5] Las epidemias políticas, Ediciones Godot, Buenos Aires 2020.
[6] A Pandemia que Abalou o Mundo, Relógio D’Água, Lisboa 2020.
[7] Este Vírus que nos Enlouquece, Editora Guerra & Paz, Lisboa 2020.
[8] A che punto siamo? L’epidemia come politica, Quodlibet, Macerata 2020.
[9] O Tempo Indomado, Relógio d’Água, Lisboa 2020.
[10] Para uma síntese global dos diversos posicionamentos filosóficos sobre a questão da pandemia, cf. João Pedro Cachopo, A Torção dos Sentidos – Pandemia e Remediação Digital, Documenta, Lisboa 2020.
[11] Frédéric Gros, Desobedecer, Antígona, Lisboa 2019.
[12] George Orwell, O triunfo dos Porcos, D. Quixote, Lisboa 2021, p. 12.
[13] Cf. Bios: Biopolítica e Filosofia, Edições 70, Lisboa 2014.
[14] Cf. o excelente ensaio de Bernard Stiegler, Da Miséria Simbólica – A Era Hiperindustrial, Orfeu Negro, Lisboa 2018.
[15] Vírus Soberano? A Asfixia Capitalista, Edições 70, Lisboa 2020.
[16] Ética, Relógio d’Água, Lisboa 2020.
[17] Cf. Benoît-Joseph Pons, L’économie monastique : une économie alternative pour notre temps, Editions Peuple Libre, Paris 2018.
[18] Albert Camus, Conférences et discours 1936-1958, pp. 107-108.
[19] A Sociedade Paliativa, Relógio d’Água, Lisboa 2020, p. 26.
[20] Cf. a excelente entrevista a Arturo Pérez-Reverte, in Revista E, pp.48-55, onde o escritor escreve o seguinte: «Esquecemos que as coisas podem acontecer. É como a história do “Titanic”: um barco indestrutível, que navega a 25 nós, nada pode acontecer. Depois o navio naufraga e toda a gente fica chocada, mas os barcos naufragam desde sempre. Há acidentes, há meteoritos, há vírus. Quem se esqueceu tem de o lembrar, não pode é dizer que está a acontecer um impossível […] Isto não é um horror: é a vida, que tem momentos maravilhosos e momentos duros. Agora, tocou-nos um dos duros”.
[21] Albert Camus, Conférences et discours 1936-1958, p. 11.
[22] O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo, Livros do Brasil, Lisboa 2018, p. 125.
[23] Cf. Pierre-André Stucki, Les ruines de la chrétienté, Labor et Fides, Genève 2013.
[24] Cf. o notável romance histórico, filosófico e psicológico de Kate Atkinson, O Deus em ruínas, Relógio d’Água, Lisboa 2017, onde se relata a perda da inocência e da bondade com o trágico da guerra. O título da obra é uma paráfrase de “A man is a god in ruins” (Ralph Waldo Emerso). Todavia, será que é Deus que é causa da ruína do homem ou é este que é ruína de si mesmo quando se deífica e auto-idolatra, levando à sua destruição e à morte de outrem?
[25] Esta ideia de “Ruína” é algo a trabalhar ainda de modo conceptual, juntamente com a de “Indícios”, e “Rasto”, mas a sua intuição adveio mais fortemente aquando de uma visita emocionante à exposição singularíssima na Bibliothèque National de France, intitulada Ruines (2020), do artista checo Josef Koudelka, com um catálogo de excelência. Koudelka, na sua conferência inaugural da exposição, diz: “As ruínas, não é o passado, é o futuro. Um dia, tudo, em torno de nós, se tornará ruína”. Saramago fala dessa Ruína em termos de memória afectiva, quando escreve, no seu Palavras para uma cidade: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro.” (in José Saramago, O Caderno, Editorial Caminho, Lisboa 2009).
[26] Manuel António Pina, “Ruínas”, in Como se desenha uma casa, Assírio & Alvim, Lisboa 2011, p. 31.
[27] José Gil, «A democracia e os mortos», in Jornal Público (P2), 31 de Janeiro de 2021, pp. 12-13.
[28] Cf. a sua nostalgia em dois dos seus mais recentes livros, algo diversos da sua linha temática, como O Desaparecimento dos Rituais (2020) e Louvor da Terra (2020), publicados pela Relógio d’Água.
[29] Don DeLillo, O Silêncio, Relógio d’Água, Lisboa 2020, p. 60.
[30] Don DeLillo, O Silêncio, p. 38.
[31] Cf. a excelente nota introdutória ao War Requiem, de Anthony Burton, tradução de Joaquim Ferreira, no sítio da Casa da Música do Porto (https://www.casadamusica.com/pt/artistas-e-obras/obras/w/war-requiem-benjamin-britten/#tab=0).