Centenário

Inédito 7Margens: Leigos católicos em Portugal – um testemunho de Teotónio Pereira

| 3 Fev 2022

Nuno Teotónio Pereira em 1953: na época, floresciam “iniciativas e movimentos inovadores”, observava. Foto © Costa Martins

São quatro histórias de empenhamento de católicos na luta contra o regime ditatorial do Estado Novo aquelas em que se envolveu Nuno Teotónio Pereira (1922-2016), arquitecto, resistente antifascista, militante católico, fundador do Movimento de Renovação de Arte Religiosa e activista da liberdade, da democracia, da justiça e de várias causas sociais, que, se fosse vivo, teria completado 100 anos de nascimento domingo passado, 30 de Janeiro.

Num documento inédito a que o 7MARGENS teve acesso, escrito em 1986 para uma intervenção num encontro do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, o arquitecto passa em revista o que tinham sido as duas décadas e meia da segunda metade de vida do regime, e das principais dinâmicas de lutas de grupos católicos contra a ditadura e o silêncio de que acusavam a maior parte da hierarquia, contando alguns dos episódios em que se viu envolvido.

O texto dá conta ainda da esperança, das frustrações e das perplexidades com que muitos desses militantes católicos se confrontavam, ao viver ou conhecer determinadas experiências – como a do ostracismo a que teria sido votado o então bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, durante os trabalhos do Concílio Vaticano II.

No encontro, realizado em Coimbra em Outubro de 1986, o Metanoia pretendia “fazer uma análise do ambiente” e das dinâmicas dos católicos na sociedade, na política, na cultura, na família e na Igreja nas décadas anteriores. Para isso, pessoas de diferentes gerações, entre as quais Teotónio Pereira, tinham sido convidadas para contarem como tinham vivido “sonhos e desilusões, aquisições e impasses, encontros e rupturas” na sua relação com a Igreja Católica.

O documento que o 7MARGENS aqui revela, cedido pela família, é um dos que integra o arquivo do arquitecto, que constitui a base documental do website criado pela família de Nuno Teotónio Pereira – os três filhos e dois netos, com o apoio de Irene Buarque, sua mulher, que pretende divulgar a vida, obra e pensamento do arquitecto, por ocasião do centenário do nascimento.

Celebrar o centenário de Teotónio Pereira “significa criar oportunidades que estimulem” a reflexão e a açcão em torno de “algumas das causas que ele considerou importantes e às quais se dedicou”, diz a família – Luísa, Miguel e Helena Teotónio Pereira, Alice Cruz e Tiago Teotónio Pereira – na apresentação da iniciativa. “Passa também por construir pontes entre a sua vida e obra e a actualidade, facilitando um ponto de encontro onde todos aqueles que partilharam o seu percurso e todos os que se revejam em partes desse percurso, ou queiram saber mais sobre o mesmo, o possam fazer. Servirá também como ponto de divulgação privilegiado do que estiver para acontecer e do que se for concretizando no âmbito do centenário.”

Na página dedicada ao arquitecto – um dos autores da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, entretanto classificada como monumento nacional –, podem ver-se documentos inéditos e fotos sobre a vida e obra de Teotónio Pereira, a par de uma biografia, – textos autobiográficos e uma bibliografia dos seus escritos.

Também se pode encontrar informação sobre as instituições às quais Nuno Teotónio Pereira doou partes específicas do seu espólio, a par de testemunhos de colegas e amigos/as, apresentações de organizações formais ou grupos informais nos quais se envolveu, incluindo ensaios originais sobre matérias relacionadas com a sua vida e obra e alguns conteúdos multimédia.

O site, prometem os organizadores, inclui também um “destaque” anual. O de 2022 é dedicado ao direito à habitação, uma das causas em eu o arquitecto mais se envolveu. Várias notícias sobre as diferentes iniciativas ligadas à celebração do centenário – na lógica da iniciativa colectiva, criatividade e descentralização, ideias-base que nortearam Teotónio Pereira – completam a informação ali disponível.

 

Os leigos na sociedade portuguesa – um testemunho pessoal

Texto de Nuno Teotónio Pereira

 

1. Caracterização sumária de um quarto de século (1950/75)

Nuno Teotónio Pereira nos anos 1980 em sua casa, em Lisboa. Foto © Irene Buarque

 

Anos 50 – A Igreja e o movimento social cristão saem fortalecidos e prestigiados no após-guerra, pela resistência contra o nazismo e a participação activa nas novas con­quistas sociais, ao lado de comunistas e socialistas. Na Europa católica, os jovens par­tidos da Democracia Cristã que chegam ao poder, são liderados por resistentes anti-fas­cistas e encontram apoio nas massas populares urbanas, e não apenas no campesinato e na burguesia. Ao nível da Igreja, florescem iniciativas e movimentos inovadores – pa­dres operários, fraternidades – ao mesmo tempo que se dá uma abertura aos valores modernos na literatura e nas artes e católicos têm posições de ponta na sociologia e na economia. No nosso Portugal, narcotizado pela paz salazarista, nada disto encontrava eco. Pelo contrário, vozes isoladas e humildes, eram sufocadas pelo regime, com o silêncio cúmplice da hierarquia. Foi assim com o exílio do P. Alves Correia, com a proibição do jornal “O Trabalhador”. Mas que importava? Não é a Igreja universal? Por enquanto liam-se avidamente;em pequenos círculos, jornais e revistas francesas: Esprit, Temoignage Chrétien, Jeunesse de l’Église. Tudo isso havia de cá chegar um dia. E os últimos anos da década precipitaram os acontecimentos, com a campanha de Humberto Delgado e o exílio do bispo do Porto.

 

Anos 60 – E chegou. Grupos de intelectuais e sectores da Acção Católica assumem posi­ções divergentes das tradicionais. A JOC e a JUC contestam as directivas episcopais e exi­gem autonomia, para a intervenção no campo sindical, no movimento estudantil, nas coope­rativas. Aparecem o jornal Encontro e a revista O Tempo e o Modo. Ao nível paroquial, os centros mais activos deixaram de ser as igrejas chiques da burguesia fina: eram agora as pa­róquias dinâmicas e abertas aos problemas sociais. E vem João XXIII. E vem o Concílio, num abraço universal, renovador e ecuménico. Era a primavera da Igreja, que também se vivia por cá, embora à margem e até contra os bispos: “eles eram o passado, nós o futuro”. Era preciso compreender as amarras que os manietavam: o anti-clericalismo da 1ª Repúbli­ca, o longo convívio com as classes privilegiadas… Havia de chegar um dia… Entretanto, era gratificante sacudir o pó, limpar a ferrugem, varrer a casa, deitar fora o lixo. Estava-se na crista da onda. E a actividade conspirativa e clandestina tinha o gosto da novidade e não oferecia grandes riscos para os católicos, que tinham tratamento de privilégio na PIDE. Mas a cumplicidade activa da Igreja na guerra colonial era já difícil de suportar.

 

Anos 70 – Caem os velhos dirigentes (Salazar, Cerejeira), mas nada mudava afinal. A continuidade prevalecia sobre a evolução. Em Roma, Paulo VI dava a perceber que não era só andar para a frente: hesitações, travagens, até retrocessos, como que a dizer que afinal os de cá é que tinham razão. A guerra colonial tornava-se mais insuportável, mas a Igreja, já com o bispo do Porto regressado, não mexia uma palha: na Assembleia Nacional o problema importante era saber se o nome de Deus aparecia ou não na Consti­tuição. A radicalização política e religiosa tornou-se inevitável, e com ela a marginalização. Vem o 25 de Abril e, mais uma vez, a Igreja não muda. E porque haveria de mudar, se nem sequer fazia uma auto-crítica? Não fora ela sempre contra a opressão, contra as ditaduras, e defensora da dignidade do ser humano? Agora o distanciamento acentuava-se, e surgiam as mesmas interrogações de sempre: então a Boa-Nova da liber­tação – o que fizeram dela? Só que as respostas já não eram as mesmas. Não disse Jesus de Nazaré que as árvores se conhecem pelos seus frutos? Porque nos havíamos de continuar a iludir?

 

2. Alguns episódios exemplares ao acaso da memória

Nuno Teotónio Pereira com Vitória Almeida e Sousa (ambos à direita) em 27 de Novembro de 1971 no casamento de Joaquim Pinto de Andrade com Vitória depois de este padre angolano ter sido exilado na então Metrópole. A fotografia foi tirada junto à prisão de Peniche, onde Joaquim estava preso, pois nem todos os amigos puderam entrar para a cerimónia. Foto: Direitos reservados.

 

I – Em 1959 um grupo de católicos de vários quadrantes políticos, animado por Francisco Lino Neto, entende que a repressão policial do regime tem de ser denunciada em nome da consciência cristã e organiza, com muito esforço, um dossier sobre as actividades da PIDE: torturas, assassínios, prisões arbitrárias, etc. A acompanhar esse dossier escreve uma carta
a Salazar e outra, diferente, aos bispos. Não era de esperar uma resposta, mas o grupo pe­de uma audiência ao cardeal Cerejeira, durante a qual justifica a sua iniciativa. O car­deal, como era seu costume, mal deixa falar os circunstantes e disserta sobre os mais va­riados assuntos; mas, no final, faz uma recomendação paternal: que nós tivéssemos cuidado, que tínhamos responsabilidades familiares, que não era agradável sermos incomodados e que portanto seria melhor ponderarmos bem antes de quaisquer novas iniciativas. Uns anos mais tarde, em nova audiência, mas a outro grupo, ao ser instado a pronunciar-se sobre as bru­talidades da PIDE, a repressão e a guerra colonial, responderia de outra forma: “a situação já está tão extremada que não quero ser eu a deitar mais achas para a fogueira”.

 

II – Alguns anos depois da anexação de Goa, Paulo VI vai visitar a União Indiana. A censura impede, com extremo rigor, qualquer simples alusão a esse acontecimento (as via­gens do Papa eram então quase inéditas): era como se não existisse. Um grupo de fiéis, cons­cientes do carácter universal da Igreja, faz diligências para que, ao nível da imprensa ca­tólica (que não era submetida à censura), o acontecimento seja noticiado. Mas todas as por­tas se fecham: isso iria criar um conflito gravíssimo com o governo. Contactam-se outros tipos de comunicação, ao nível de boletins paroquiais e de movimentos. Impossível qual­quer alusão, pois havia ordens determinantes da hierarquia nesse sentido. Nem sequer seria possível falar do assunto nas homilias dominicais. Restava então o recurso ao traba­lho clandestino: foi organizada uma equipa que redigiu um jornal (Igreja Presente), que o fez imprimir em Madrid, que o fez passar a fronteira e que o distribuiu em algumas dezenas de igrejas de norte a sul do País. Afinal, algo parecido com o que acontecera com a divulgação da encíclica Pacem in Terris de João XXIII alguns anos atrás. Afinal, a palavra de Roma, com a qual os bispos enchiam a boca, era tratada com duas medidas, consoante agradasse ou não ao poder.

 

III – Durante o Concílio Vaticano II, um grupo de fiéis que se solidarizara com o bispo do Porto quando do exílio a que fora compelido por Salazar, recebe uma carta de D. António, onde este fala com entusiasmo do Concílio e alude com alguma amargura a um certo isolamento relativamente aos outros bispos portugueses. Perante o espanto pro­vocado por esta alusão, pedem-se notícias a amigos então em Roma. Era verdade: os bis­pos estavam alojados no Colégio Português, mas D. António não fora autorizado a hospedar-se ali; vivia, só, noutro lugar; no decurso das sessões, mal lhe dirigiam a palavra; e outros pormenores chocantes. E tudo isto porque o bispo apenas mandara ao ditador uma carta (que circulara entre amigos), com algumas interrogações. No fundo, manifestava-se neste comportamento uma grande coerência: o bispo fora compelido ao exílio e nem o mínimo protesto fora feito pelos seus “irmãos” no episcopado; nem sequer lhe foi prestado qualquer acto de solidariedade – até na sua diocese. Dava-se como desculpa que D. Antó­nio, com o seu gesto, “tinha dividido os fiéis”.

 

Familiares e amigos de Nuno Teotónio Pereira em 1970, em Marvão, antes de Fernando Venâncio e Joel Pinto (segundo e terceiro à direita) saírem clandestinamente para Espanha, para desertar da guerra colonial. A foto foi captada pelo próprio Teotónio Pereira e é uma das que integra o arquivo.

 

IV – Em 1961 estala a revolta em Angola e a repressão colonial é feroz; por cada bran­co morto são massacradas centenas de negros. O escol do clero “nativo” toma atitudes de discreto apoio aos movimentos nacionalistas, é preso pela PIDE e deportado para a Metró­pole. Alguns, como o P. Pinto de Andrade, vão para o Aljube, Caxias e Peniche, enquan­to a maioria são internados em casas religiosas e aí mantidos sob custódia, à guarda dos próprios superiores. Um deles, cónego da Sé de Luanda, morre e o seu funeral é realizado secretamente durante a noite numa aldeia do Minho. Os bispos das várias dioceses ignoram a sua presença: não os visitam, não há o mínimo gesto de solidariedade, nem sequer de re­conforto, de caridade fraterna. Durante anos são deixados aqui à sua sorte. Só o Papa se lembra deles pelo Natal, enviando uma lembrança, com algumas palavras: a Igreja ainda haveria de precisar deles. Mais tarde, já próximo da derrocada, com o exílio do bispo de Nampula e a expulsão dos Padres Brancos de Moçambique, a história repetir-se-ia. As guerras coloniais já levavam mais de 10 anos, desesperavam a nossa juventude e massacra­vam os povos africanos. O Cardeal Cerejeira já não ocupava o trono, mas a sua frase continuava a fazer lei para a Igreja: “Não quero ser eu a deitar mais achas para a fogueira”. Só que uma intervenção da Igreja neste drama, feita “a tempo e a contratempo”, poderia ter mudado o curso da História e evitado muito do que aconteceu e está a acontecer, e poupado povos inteiros à tragédia imensa que estão a sofrer. A Igreja era um dos pilares do regime, e foi-o até ao fim. Coube a outro dos pilares, e já demasiado tarde, acabar com a ditadura. Porque razão é que as Comissões Justiça e Paz não foram formadas quando eram mais necessárias e até urgentes “aqui e agora”? Porque é que o trabalho que se fazia nas bases, pela justiça e pela paz, era mal visto e compelido à clandestinidade, mesmo na Igreja?

Foram lembrados 4 casos. Podiam recordar-se 40 x 4 na mesma linha de coerência. Não nos foi ensinado que as árvores se conhecem pelos seus frutos?

 

Nuno Teotónio Pereira

Coimbra, Outubro de 1986

 

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