
Missa Crismal na Sé de Lisboa. Foto © Patriarcado de Lisboa
Passaram 15 dias e ninguém deu por isso. Procura-se nos media e nada se encontra. Na internet nem uma referência. Só a agência Ecclesia deu pela existência da Síntese Diocesana do Patriarcado de Lisboa aprovada a 14 de maio.
Um texto de 30 mil caracteres, que pretende resumir a reflexão realizada por mais de 15 mil católicos da diocese de Lisboa durante seis meses, passa despercebido. Não gera debate, nem uma simples menção. Nada. Parece inacreditável. Mas não é. É, simplesmente, justo.
De facto, o documento em causa não contém qualquer novidade. Nenhuma boa nova. Nenhuma nova, boa ou má. No seu discorrer burocrático repete o já dito, esconde a Novidade e falha o encontro com o tempo em que vivemos. Por que razão demorarmo-nos sobre tão indigente texto? Por duas razões: porque nele se espelha a incapacidade da hierarquia do Patriarcado de Lisboa de dar um passo, por mínimo que seja, para acompanhar as comunidades católicas da diocese num caminho espiritual que as leve a serem capazes de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo a partir das periferias. E porque é preciso manter a Esperança, procurar outros sinais que a alimentem, que nos permitam sentir e dizer uns aos outros que Deus não abandona a Sua Igreja.
Vivemos o fim de uma época. A guerra regressa à Europa. O terror nuclear ressurge. Nos países do mundo ocidental, em cada ato eleitoral o espectro do populismo chauvinista, retrógrado e antidemocrático ameaça tornar-se dominante onde ainda não o é. As instâncias multilaterais desabam, feridas de ineficácia. Os grandes espaços económicos erguem altos muros em todo o seu perímetro e procuram a todo o custo a autossuficiência. As desigualdades de todo o tipo não param de aumentar. O mundo de ontem está a acabar. A incerteza e a angústia, a violência e a lei do mais forte marcam os nossos dias. Não há nenhuma manhã radiante de esperança que nos anuncie o mundo de amanhã.
Silenciar o que nos perturba
Alguém acredita que 15 mil católicos, reunindo ao longo de seis meses refletindo sobre que Igreja querem ser, nada tenham dito sobre tudo isto? A Igreja Católica enfrenta há anos o escândalo dos abusos sexuais e do seu encobrimento – o maior terramoto desde a rutura da Reforma – e ninguém o referiu, apesar de o Papa Francisco insistir vezes sem conta que o abuso sexual de menores está intimamente ligado a um modo de conceber (e exercer) o papel do clero oposto à Igreja sinodal a que o discipulado de Jesus Cristo nos convoca?
Não, não acreditamos. E, porém, ao longo de um texto de cinco mil palavras, nem uma de esperança, de compromisso, de empatia, de proximidade sobre qualquer um destes temas, destas imensas nuvens negras que escurecem o nosso presente. Este documento fica como um marco de um novo desencontro da hierarquia do Patriarcado de Lisboa com a História, como a reafirmação da irrelevância da Igreja do Patriarcado. O que é particularmente grave num contexto em que o anúncio da Boa Nova de Jesus é tão necessário e em que a Igreja já não se pode socorrer de formas e fórmulas antigas de o fazer.
Mas também dentro da comunidade católica, nenhum homem ou mulher desinquietado pela sua fé em Jesus Cristo encontra confirmação, estímulo, ou desafio capaz na Síntese Diocesana do Patriarcado de Lisboa. Por isso crescem os “cristãos apesar da Igreja”, gente de fé cujos caminhos não se cruzam com qualquer comunidade por não suportarem autoritarismos clericais, teologias e eclesiologias ignaras, celebrações medíocres e pregações moralistas.
Faltar ao dever de escutar
Se não soubéssemos, não criticávamos. Mas sabemos. Não podemos ignorar. Vemos o entusiasmo com que inúmeras pessoas deixaram o rame-rame de uma pertença anódina à sua realidade eclesial e se envolveram na procura de caminhos de futuro para a sua comunidade. Ouvimos cristãos entusiasmados com a participação, a partilha e a reflexão vividas no seu grupo, os mais velhos lembrando os tempos do Concílio Vaticano II, os mais novos sublinhando ser a primeira vez que tal dinâmica viviam. Lemos contribuições de vários grupos portadoras de reflexões sérias sobre o que é preciso mudar na igreja diocesana para que nela se multipliquem comunidades sinodais significativas para os homens e as mulheres nossos contemporâneos.
Em tudo isto a nossa Esperança ganha alento. De tudo isto se alimenta.
Muitas vozes entregaram escritos em que solicitavam o reabrir da reflexão sobre a ordenação das mulheres, a revisão das práticas do assistencialismo social, o carácter vinculativo da opinião dos leigos emitida nas estruturas de participação existentes ou a criar, o fim da excomunhão dos recasados, o acolhimento das pessoas LGBT e o seu inteiro protagonismo no interior da Igreja. Escritos em que se propunham novas formas de entender a participação, múltiplos meios de reduzir o clericalismo que sufoca a Igreja na Diocese e modos de responder aos desafios da sustentabilidade desenhados pela Laudato si’ ou à urgência de ação política e pessoal enunciada na Fratelli Tutti…
A toda “esta sinfonia de vozes”, a este sopro do Espírito, a assembleia diocesana de Lisboa de 14 de maio – 4 bispos, 77 padres, 4 diáconos, 3 freiras e 51 leigos (28 homens e 23 mulheres) – fechou as janelas, encerrou as portas, não o deixou entrar. Fechou-se no mais sacrossanto clericalismo que apenas ouve aquilo que o confirma e põe de lado tudo quanto o possa pôr em causa. De facto, como escreve Francisco: “A escuta exige sempre a virtude da paciência e a capacidade de deixar-se surpreender pela verdade, mesmo que seja apenas um fragmento de verdade, na pessoa que ouvimos. Só o espanto possibilita o conhecimento.” Aqui, nem surpresa, nem espanto. Como lembrava Aura Miguel num texto recém-publicado no 7MARGENS, há “uma surdez interior pior do que a física” que só se supera com “a coragem de sair de si”.
É esse “sair de si” que o clericalismo dominante não permite e, pelo contrário, impede. Centrada em si mesma, surda à surpresa dos fragmentos de verdade que lhe chegaram, incapaz de se espantar, a hierarquia da Diocese de Lisboa falha, assim, o encontro com a História. Mas falta também ao dever de contribuir para o “aggiornamento” da Igreja universal. Mantém-se, como vem estando no último século, na cauda, atrás, arredada do palco dos debates teológicos e doutrinais mais importantes, longe das experiências espirituais mais marcantes na Igreja universal. Refugia-se nos “brandos costumes” nacionais. Nem sim nem não. Enquanto em vários locais do vasto mundo há bispos e cardeais que tomam posições públicas contra o pensamento, as prioridades e as posições assumidas pelo Papa Francisco, neste país o tom é outro: faz-se de conta que se está de acordo, enquanto se espera que passe.
Está nas nossas mãos (e na nossa vida) não deixar que os desafios de Francisco passem sem lhes respondermos com o empenho que merecem e a Esperança que suscitam.
Jorge Wemans é jornalista e membro da equipa editorial do 7MARGENS