
Pintura representando Santo Óscar Romero e Frei Rutílio Grande, SJ, na reitoria da Igreja de São Jose, Aguilares, El Salvador. Foto CNS, Octavio Duran)
A 24 de março de 1980 (faz sexta-feira 43 anos), ao fim da tarde, D. Óscar Arnulfo Romero y Galdámez, arcebispo de São Salvador, foi assassinado com um disparo à queima-roupa no coração, quando celebrava missa na capela do Hospital da Divina Providência, na colónia Miramonte, em São Salvador. Trinta anos depois, a 21 de dezembro de 2010, o dia da morte do arcebispo de São Salvador foi escolhido pela Assembleia Geral das Nações Unidas para assinalar o Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e Dignidade das Vítimas, homenageando deste modo o seu trabalho em prol dos direitos humanos.
A escolha do dia do assassinato de D. Óscar Romero (1917-1980) para assinalar um direito humano é simbólica a partir de diversas perspectivas: não só mostra a possível coincidência entre os direitos defendidos pelo humanismo secular e o testemunho cristão e católico, como toma como referência uma personalidade de um pequeno país da América Latina, fiel ao seu povo. Pedro Casáldáliga, bispo de São Félix da Araguaia (Brasil), dedicou-lhe um poema: «Romero de uma Paz quase impossível, nesta terra em guerra,/Romero em roxa flor morada da Esperança incólume de todo o Continente».
O testemunho de Óscar Romero
O assassinato de D. Óscar Romero foi o clímax da crescente tensão com a oligarquia militar e económica que dominava São Salvador e dos «esquadrões da morte» que iam eliminando pessoas incómodas e um padre inicialmente visto como tímido, que se formara com claretianos e jesuítas, tendo-se licenciado em Teologia na Universidade Gregoriana de Roma. Desde 3 de fevereiro de 1977 era arcebispo de São Salvador.
Os assassinatos e torturas de um grupo de direita paramilitar, a Ordem, eram sistemáticos e quotidianos. O semanário Orientación, da arquidiocese de São Salvador, ia publicando listas de mortos e desaparecidos. No sermão de 13 de janeiro do ano em que foi assassinado, D. Romero disse: «temos realmente de condenar esta estrutura de pecado em que vivemos, esta podridão que pressiona lamentavelmente muitos homens a tomarem opções tão radicais e violentas. Os culpados são, precisamente, os que mantêm essas estruturas de injustiça social e que fazem perder a esperança de que se possam resolver as coisas de outro modo que pela violência…»
Um Dia Mundial pouco conhecido
A comemoração de um Dia Internacional pelo Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e Dignidade das Vítimas visa alcançar três objetivos:
– Honrar a memória das vítimas de brutais e sistemáticas violações de direitos humanos e promover o direito à verdade e à justiça;
– Prestar tributo a todas e todos que dedicaram e perderam as suas vidas a defender e promover direitos humanos;
– Reconhecer, em particular, o valor do trabalho de Óscar Romero, na defesa dos direitos humanos dos mais pobres, na promoção da dignidade humana e na oposição a todas as formas de violência.

“O reconhecimento do trabalho de D. Óscar Romero pelos direitos humanos começou ainda durante os seus últimos anos de vida: em 1979 o seu nome foi indicado como candidato ao Prémio Nobel da Paz, que viria a ser recebido por Madre Teresa de Calcutá.” Gravura: retirada do site Eurocid de homenagem à memória do Arcebispo Óscar Arnulfo Romero.
Que caminhos foram percorridos pelas organizações de promoção da paz e defesa dos direitos, nas academias, nas igrejas, nas organizações internacionais, que estabeleceram a conexão entre um arcebispo assassinado em 1980 e a escolha de um dia para assinalar um direito humano pela Assembleia Geral das Nações Unidas?
O reconhecimento do trabalho de D. Óscar Romero pelos direitos humanos começou ainda durante os seus últimos anos de vida: em 1979 o seu nome foi indicado como candidato ao Prémio Nobel da Paz, que viria a ser recebido por Madre Teresa de Calcutá. A 2 de fevereiro de 1980, a Universidade de Lovaina atribuiu-lhe o título de doutor honoris causa em «reconhecimento do seu trabalho em defesa dos direitos humanos». A 9 de março de 1980 recebeu o Prémio Paz da Ação Ecuménica Sueca pela sua ação baseada na «mensagem do Evangelho, pela reconciliação entre os homens, pela justiça e a humanidade, bem como pela sua significativa ajuda em favor dos oprimidos.»
No início da década de 1990, foi organizada, seguindo as orientações dos Acordos do México de 27 de abril de 1991, uma Comissão para a Verdade em El Salvador, com o objetivo de investigar os crimes ocorridos em El Salvador no início da década de 1980. No relatório de 15 de março de 1993, a comissão apresentou publicamente a documentação relativa ao assassinato de Óscar Romero por «esquadrões da morte».
A valorização do direito à verdade sobre as violações de direitos humanos e dignidade das vítimas resultou de um trabalho de vários anos nas Nações Unidas. Um estudo do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos definiu em 2006 o direito atualmente assinalado a 24 de março como inalienável e autónomo. Em 2009 um segundo relatório identificou as melhores práticas para assegurar este direito, relativas à organização de arquivos que preservem a memória dos abusos e a programas de proteção de testemunhas.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, lembrou que o «reconhecimento, justiça e prevenção só podem começar com a descoberta e o reconhecimento dos factos». Um começo que pode levar à conclusão de que não basta punir os responsáveis diretos por situações de violação de direitos humanos, mas é preciso também averiguar se os processos de violação dos direitos humanos não têm na sua origem problemas sociais e não exigem também soluções políticas, além das que respeitam estritamente à justiça. Nas palavras de António Guterres, «uma prestação pública de contas de verdade sobre graves abusos dos direitos humanos permite que as sociedades abordem as suas causas subjacentes».
Atualmente, milhares de pessoas continuam a ser torturadas, assassinadas e a desaparecer em todo o mundo e crimes de guerra e contra a humanidade são praticados na Europa, às portas da União Europeia. É, portanto, urgente sublinhar a necessidade de defender todos os direitos humanos, em especial os diretamente visados pelo exercício das maiores violências. Assim como é urgente ver no cristianismo não só uma confissão religiosa que permite definir identidades sociais, mas, também um humanismo radical.
João Miguel Almeida é historiador. Publicou A Oposição Católica ao Estado Novo, ed. Nelson de Matos (2008).