Como pode um homem tão intransigente com as injustiças e a dominação ser tão tolerante? Como pode um homem dominar tantas áreas do saber e manter-se tão curioso, tão humilde a pensar a novidade, tão interessado pelo acontecimento de hoje? Talvez porque o “homem de pé” – totalmente presente ao seu tempo – é, em simultâneo, o “homem de joelhos” que louva a graça da vida em que descortina o mistério indizível de Deus.
A imagem que retenho do Zé Mattoso – a quem assim sempre tratei, pois o que nos liga é uma amizade antiga e cumplicidades várias – é esta de um homem profundamente comprometido em perscrutar, sem barreiras nem preconceitos, a história, as instituições, os locais e as mentalidades, o mundo, convocando para isso todo o arsenal intelectual disponível. “A glória de Deus é o homem de pé, o homem vivo”, como ensina a patrística. E de pé, vertical, incansavelmente presente viveu o Zé esse modo de ser homem.
Nome incontornável da historiografia medieval portuguesa, que as suas intuições e o seu extenso trabalho recriaram de cabo a raso, ele viveu sete vidas. Monge beneditino, deixou a ordem e veio a casar com Lucy Wainewright com quem criou uma bela família, lecionou história em Portugal e um pouco por todo o mundo, escreveu mais de 30 obras, algumas delas em colaboração com outros autores, dirigiu as mais significativas instituições nacionais de arquivos, investiu longa e pessoalmente na construção de um património organizado em Timor-Leste, foi parte ativa em diversos movimentos cívicos e políticos e… seriam precisos outros 90 anos para referir o tanto que fez e viveu ao longo dos seus 90 anos de vida.
O que distingue José Mattoso de outros valorosos cidadãos e cidadãs que nos ajudaram a saber quem somos, ou se dedicaram por bem à coisa pública, é o facto por ele sempre afirmado de que nisso tudo e no mais que viveu, para ele, realmente importante sempre foi a procura “da relação com Deus”. Nesse caminho de ação e contemplação, nesse esforço de “Levantar o Céu”, ele é um caso único no catolicismo português. Num catolicismo fervilhando de ativismo social sem qualquer densidade espiritual e visceralmente incapaz de se relacionar com qualquer trânsito irregular, a história que ele tanto respeitava guardará de José Mattoso a memória de um homem de joelhos, curvado no mais íntimo silêncio, contemplando o mundo, as coisas, os rostos conhecidos e por conhecer, sem sobre eles se pronunciar, aceitando-os apenas como dádiva de Deus. Do Deus que sempre buscou, cultivando uma espiritualidade muito própria e muito densa que sentíamos como convívio entre os dois – Deus e ele –, ou festa permanente entre os quatro – se quisermos ter presente a Trindade. Creio ser esse convívio, essa festa, que alimentava a serena inquietação com que nos olhava e olhava a realidade.
A minha mulher diz que o Zé Mattoso sempre lhe surgiu como um santo. Ele sorriria atrapalhado se a Ana alguma vez lho tivesse dito. Mas sim, um santo. Não um “santinho”, não um monge afastado do mundo e obcecadamente obediente a todas as regras da ordem e mais aos caprichos do superior. Não um santo isento de contradições e virginalmente puro do nascimento à morte. Não. Um verdadeiro santo. De carne e osso. De espírito e fé. Um santo capaz de dizer e sentir com naturalidade: “Irei para a casa de Deus, do Deus que é a minha alegria.”