
A Casa dos Direitos é uma iniciativa de oito organizações da sociedade guineense que trabalham na promoção e defesa dos Direitos Humanos. Foto © José Alves Jana.
A história é simples de contar. A casa era o posto da polícia colonial em Bissau. Como seria de esperar, era “lugar de humilhação e tortura”. Após a independência, “no tempo do partido único, continuou a ter as mesmas funções”. Até que… Mas o melhor é ouvir o seu atual responsável, ou melhor, o “coordenador” da sua atividade, Gueri Lopes Gomes.
P. – O que é a Casa dos Direitos (CdD)?
GUERI LOPES GOMES – A Casa dos Direitos (CdD) é uma iniciativa de oito organizações da sociedade guineense que trabalham na promoção e defesa dos Direitos Humanos (DH). Criaram um consórcio* para reforçar a capacidade da organização da sociedade civil na promoção dos DH, do estado de direito e da democracia. Esta iniciativa começou em 2012, quando esse grupo de organizações foi ter com o Governo, pedindo este espaço, que desde a época colonial era um estabelecimento prisional. Aqui estavam prisioneiros políticos, além de outros.
Depois da independência, na altura o partido único continuou a usar este espaço como estabelecimento prisional. Era, até então, um centro de tortura, de restrição de liberdades, de violação grosseira dos DH. E mesmo depois da “abertura democrática”, funcionou como estabelecimento prisional.
As exigências internacionais obrigaram o Estado da Guiné-Bissau a criar melhores condições prisionais. Foram criados dois centros, em Mansoa e em Bafatá. Com a transferência dos reclusos, esse grupo de organizações achou por bem fazer uma transformação deste espaço – de violação grosseira dos DH para promoção e defesa dos DH. O projeto de transformação foi financiado pela Cooperação Portuguesa [na Guiné-Bissau].

A CdD definiu para si mesma três campos prioritários de ação: as mulheres, as crianças e o ambiente. Em qualquer lugar do mundo, cada uma destas áreas é um continente de trabalho.
A Guiné-Bissau, como qualquer país do mundo, particularmente países de África, tem as suas tradições, algumas das quais são nefastas, porque são violadoras dos DH, particularmente das mulheres e crianças, as duas camadas mais desfavorecidas pela nossa tradição.
Falo do fanado (ou circuncisão) das mulheres, o casamento precoce e forçado, que são práticas legítimas segundo a nossa tradição, apesar de a lei da Guiné-Bissau as proibir. Mas quando se trata de práticas seculares, só a lei não as consegue banir. Estas organizações acharam que têm de trabalhar com o Governo na mudança do comportamento, como parceiros da sociedade civil na execução das políticas públicas para mitigar os efeitos dessas práticas na vida das crianças e das mulheres.
Mas não é muito comum ver incluído o ambiente no trabalho dos DH.

A Guiné-Bissau é um país muito rico em termos de biodiversidade. Mas dada a ausência de legislação ou da aplicabilidade das leis, essa biodiversidade vem sofrendo desmatamento, uma intervenção abusiva, em vez de ser protegida. A Casa entendeu que isso é uma violação dos DH, porque sem ambiente, sem condições de sobrevivência, não podemos falar de DH. A primeira coisa por que devemos lutar para a eficácia dos DH é que os seres humanos tenham condições de viver num clima bom, com recursos apropriados para se alimentarem e viverem na natureza como é habitual. Perdendo a natureza ou as condições para viver na natureza, não podemos falar de DH.
Para lá das atividades das organizações que constituem o consórcio, a CdD tem atividades próprias.
A CdD é um consórcio, mas também é uma estrutura – que tem servido de embaixada dos DH na Guiné-Bissau. Para isso tem um auditório onde as organizações podem fazer qualquer atividade em defesa ou promoção dos DH. A Casa tem servido de proteção às pessoas que sintam que os seus direitos estão a ser violados. Por exemplo, para denúncias. A maioria das denúncias na Guiné-Bissau, em conferências de imprensa ou para lá delas, acontece aqui. Todos os indivíduos têm acesso a esta Casa para fazerem as suas denúncias e eu, enquanto coordenador, tenho a responsabilidade de apoiar qualquer um que queira fazer a sua denúncia e de apoiar as organizações para executarem as suas atividades aqui com qualidade.

Independentemente disso, a Casa também tem também a sua atividade. Por exemplo, organiza a “Quinzena dos Direitos Humanos”, de 1 a 15 de Dezembro. O Dia Internacional dos Direitos Humanos é 10 de Dezembro e, para comemorar esse Dia, organizam-se diferentes atividades relacionadas com os DH. A Casa coordena essas atividades a nível nacional, envolve diferentes organizações, desde a União Europeia e as Nações Unidas aos diferentes parceiros da Guiné-Bissau que trabalham neste domínio. A Casa tem ainda um “Observatório dos Direitos”, que produz relatórios, conteúdos, sobre a situação dos DH na Guiné-Bissau. A última publicação foi, já este ano, sobre DH e covid ou DH em tempo de pandemia.
A Casa também faz exposições: neste momento temos uma que não é da autoria da Casa, mas da Associação Guineense dos Artistas Plásticos que pediu para apresentar este resultado de um trabalho que desenvolveu com reclusos. Além disso, tem ainda uma exposição permanente que é o memorial da casa e da luta de libertação.
Há pouco tempo (Setembro 2022), foi notícia o “centro de recursos” da CdD. Teve mesmo a visita do embaixador de Portugal na Guiné-Bissau. De que se trata?
O centro de recursos (CR) oferece às organizações [do consórcio] ou mesmo a indivíduos a possibilidade de fazerem os seus trabalhos: espaço, computadores, internet, livros e outras publicações. O CR recebeu há pouco o apoio da Cooperação Portuguesa para a sua reestruturação e dinamização, para melhor atender as organizações e os indivíduos que nos procuram.
No princípio do ano (Fevereiro), foi notícia a destruição da Rádio Capital, em Bissau. Isso não condiz nada com os DH.
Quando falamos de “ataque à rádio”, não podemos ver apenas a rádio física: quando alguém ataca um jornalista, ataca a rádio. Isso tem sido prática na Guiné-Bissau, sobretudo nos últimos tempos em que tem havido uma violência brutal para com os homens da imprensa, para com as rádios. Aconteceu duas vezes com a Rádio Capital, para além das ameaças, da intimidação.
Neste momento [10 Outubro] temos um jornalista da Rádio Pindjiguiti de quem não sabemos o paradeiro, teve de fugir por ter dado uma notícia [“de uma suposta audição de um membro do Governo pela Polícia Judiciária”] que não caiu bem e a rádio foi invadida por pessoas fardadas, segundo a informação que temos.
Estas situações são recorrentes, são vários os jornalistas que, por via de publicações, foram ameaçados, intimidados. Não podemos falar de liberdade de imprensa na Guiné-Bissau. Sobretudo nos últimos tempos, porque o atual regime tem mostrado um comportamento hostil em relação à rádio e à imprensa.

Mais recentemente (Julho), foi notícia a vandalização de uma igreja católica em Gabu. É um episódio que contraria a imagem de que na Guiné-Bissau tem havido uma boa convivência entre religiões. Será que o ambiente está a degradar-se para maior conflitualidade ou é apenas um episódio isolado?
Para ser sincero, acho a Guiné-Bissau um exemplo da convivência religiosa, uma das coisas boas que temos para mostrar ao mundo. Esse episódio é um ato particular que aconteceu numa igreja católica de Gabu, de que a autoridade deve apurar responsabilidades. Mas, do meu ponto de vista, é muito cedo para avançar com a presunção de que foi um ataque religioso, porque mesmo em Gabu há uma convivência sã entre as comunidades cristã e muçulmana e os animistas.
Apesar de tudo, há uma tendência crescente da parte dos políticos para dividir a sociedade utilizando essas ferramentas, mas há uma resistência por parte da nossa sociedade a aceitar isso. Em relação a Gabu, é importante que as autoridades investiguem o que se passou.
E será que as autoridades estão interessadas ou disponíveis para investigar?
Quem pretende dividir são os políticos, que querem permanecer no poder ou chegar lá, mas nós temos a parte técnica que tem a responsabilidade e deve investigar. Acho que esses estão com vontade de fazer alguma coisa.
A CdD fez 10 anos. Qual é o resultado de uma década de trabalho?
É incalculável. Para as pessoas que tiveram esta ideia, ultrapassou a expectativa. A Casa é, como disse, embaixadora dos DH na Guiné-Bissau, da consolidação do estado de direito no país. Não se pode falar da sociedade civil guineense sem mencionar a CdD. Quase todas as dinâmicas da Guiné-Bissau [neste setor] acontecem na CdD, que tem um tal valor simbólico que a própria autoridade, política ou policial, da Guiné-Bissau lhe tem um respeito enorme, sem falar já da sociedade em geral. Porque todos sabem que esta Casa vem servindo o interesse dos cidadãos guineense em matéria dos DH.
Nos momentos mais difíceis, houve manifestações em que as autoridades faziam tudo para reprimir e violentar os manifestantes, mas havia respeito por este espaço, pelo recinto desta Casa: quando chegava aqui um ativista, bastava pisar o recinto desta Casa, o policial já não entrava.

* O consórcio da Casa dos Direitos é formado por: ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos, AMIC – Associação dos Amigos das Crianças, AMPROCS – Associação das Mulheres Jornalistas e Técnicas da Comunicação Social, LGDH – Liga Guineense para os Direitos Humanos, Miguilan – Mindjeris Nô Lanta [Mulheres, levantemo-nos], RENAJ – Rede Nacional das Associações Juvenis da Guiné-Bissau, RENLUV – Rede Nacional de Luta contra a Violência baseada no Género e Criança, Tiniguena – Esta Terra é Nossa!
Mais informações: http://casadosdireitos-guinebissau.blogspot.com/ e https://www.facebook.com/CasadosDireitosGB/
José Alves Jana é doutorado em filosofia, professor aposentado, voluntário e dirigente associativo. Contacto: jalvesjana@gmail.com