O que se passou nesta semana, com o assalto planeado ou pelo menos induzido ao Congresso dos Estados Unidos, do ponto de vista da “invocação do nome de Deus” e da instrumentalização da fé para uma missão definida pelo ainda atual ocupante da Casa Branca? Uma análise do 7MARGENS que, numa segunda parte, procurará dar a conhecer diferentes leituras sobre os dramáticos acontecimentos por parte de algumas confissões e responsáveis religiosos. Recorrendo, basicamente, a trabalhos jornalísticos, confessionais ou não.

Marcha pró-Trump, antes da invasão do Capitólio. Foto: Direitos reservados
O cerco e tomada do Congresso dos Estados Unidos, o “santuário” da democracia do país, é reconhecidamente um ato da maior gravidade, incentivado explicitamente pelo Presidente Trump que preferiu fazer valer os seus interesses pessoais esquecendo o juramento que fez há quatro anos, de mão sobre a Bíblia, de servir o bem comum do povo e cumprir a constituição. Há certamente muita investigação a fazer sobre o que se passou e o seu significado. Mas há factos e sinais que nos ajudam nesta aproximação aos acontecimentos do Dia de Reis.
A marcha oriunda de diferentes pontos dos Estados Unidos foi organizada de modo a coincidir com a data da reunião das duas câmaras legislativas que se destina a certificar os votos do colégio eleitoral e reconhecer o Presidente e vice-Presidente eleitos, Joe Biden e Kamala Harris. Na verdade, tratava-se de um somatório de movimentações e de iniciativas (Maioria Silenciosa, Mulheres pró-Trump, a Marcha de Jericó, entre muitas outras), todas com o mesmo destino e o mesmo objetivo.
Trump e seus apoiantes conferiram-lhe uma missão de cunho quase religioso: “Salvar a América”. Acicatados pela contestação do Presidente aos resultados eleitorais, muitos marcharam para Washington no fim de semana para combater o que consideram “as instituições corruptas de governo”, rezando, ao mesmo tempo, para que Deus intervenha na eleição e se reponha o resultado que desejavam.
Um dos grupos de apoiantes radicais de Trump designou a iniciativa como a “Marcha de Jericó”, que incluía mesmo o ritual mágico de dar sete voltas ao quarteirão onde se encontra o edifício do Supremo Tribunal, no dia 5, e fazer a mesma coisa com o do Capitólio, no dia 6, seguindo o que diz o Livro de Josué (do Antigo Testamento), para simbolicamente limpar a corrupção. Um grupo de “patriotas, crentes e todos aqueles que desejam retomar a América” a viajar para Washington nesses dias para “derrubar a recente eleição presidencial”.
Várias outras organizações e grupos com e sem cunho religioso se fizeram representar, incluindo o célebre Proud Boys, que já em dezembro, numa iniciativa pró-Trump, tinha feito estragos em igrejas de Washignton, que consideraram pactuar com o movimento Black Lives Matter (“As vidas negras importam”). Voltaram, desta vez, para fazer reverter as coisas, de modo a assegurar que Trump, e não Biden, inaugurasse um segundo mandato, a 20 de janeiro.
A manifestação que culminou a Marcha teve lugar ao fim da manhã de quarta, dia 6, perto da Casa Branca. Trump oficiou, falando por mais de uma hora, não se cansando de estimular os seguidores a não ficarem quietos, a acreditarem nos vários senadores e mais de cem deputados de confiança que tinham no Congresso e amaldiçoando o vice-Presidente Pence, caso este não atirasse a toalha ao chão, na hora de validar os votos, na qualidade de presidente do Senado. O caminho apontado aos convocados não era, segundo Trump, ficar na Casa Branca, mas andar umas centenas de metros até ao Capitólio. O seu advogado Giuliani encarregou-se de espicaçar os manifestantes.
Entretanto, tornou-se público aquilo que Trump já sabia pelo menos desde a véspera: Mike Pence recusava-se a invalidar votos, por entender que tal ato extravasava as suas competências. Tornava-se, assim, óbvio, para que a Marcha não fosse em vão, que a multidão teria de ir fazer pressão em torno do órgão legislativo. O que se seguiu já deu a volta ao mundo, em imagens que deixaram toda a gente estarrecida, que mostram como são frágeis as democracias, inclusive as mais velhas.
Não foi apenas Trump que antes, durante e depois das eleições, criticou a narrativa da falsidade dos resultados eleitorais e do roubo dos votos e que propalou as histórias mais fantasiosas, que nunca foram confirmadas nos múltiplos pronunciamentos judiciais. De facto, diferentes media e confissões religiosas amplificaram e alimentaram até à exaustão as narrativas do Presidente, mesmo que contra toda a evidência dos factos. E fizeram-no destilando ódio, fazendo de Trump o exemplo e o arauto dos valores cristãos, acirrando as hostes e criando o caldo de onde, sem grande surpresa, surgiu a insurreição de 6 de janeiro.
É oportuno recordar aqui a intervenção de um arcebispo católico, escondido em parte incerta e inimigo figadal do Papa Francisco, que promoveu novenas e fez protestos de adesão à presidência de Trump e que voltou, nestes dias mais recentes, a entrar em ação.
Referimo-nos a Carlo Maria Viganò, aquele que foi até 2013, núncio do Vaticano nos Estados Unidos, e que quis deitar lama sobre o Papa acusando-o de encobrir abusos sexuais, nomeadamente do cardeal McCarrick. Viganò promoveu novenas de oração pela vitória de Trump e deu, no último domingo, dia 3, uma entrevista a Steve Bannon, em que lhe é atribuída a certeza – que ele não nega – de que “Deus quer a vitória de Trump” (assim mesmo, com o verbo no presente). Ele responde diplomaticamente, como que dando uma cobertura implícita aos que invadiram o Capitólio:
“Se os Estados Unidos perderem esta oportunidade, serão eliminados da história. Se permitirem a ideia de que o veredicto eleitoral dos cidadãos, expressão primeira da democracia, pode ser manipulado e frustrado, serão cúmplices da fraude e merecem a execração de todo o mundo, que vê a América como uma nação que conquistou e defendeu a sua liberdade”.
Mesmo que em versões menos fundamentalistas, muitos membros do clero instrumentalizaram a fé e o próprio nome de Deus e, desse modo, tornaram-se co-responsáveis pelo que veio a acontecer. E houve imagens em que se viam freiras, com os seus hábitos, embrulhadas em cachecóis com slogans pró-Trump, participando na manifestação. O National Catholic Reporter, que não esconde nem nunca escondeu de que lado está, entendeu, em editorial publicado no dia 7, “chamar os bois pelos nomes:
“Isso deve parar. Se a Igreja deseja viver de acordo com os ensinamentos do seu fundador e se deseja ser uma testemunha no campo da cultura, não pode e não deve fazer parte daquilo que aconteceu no Capitólio da nossa nação. Não deve haver um nacionalismo católico branco. E um movimento pró-vida que adota o nacionalismo branco não é um verdadeiro movimento pró-vida. Ponto.”
facilitar:
Fonte: Edison Research for the National Election Pool, um consórcio que junta ABC News, CBS News, MSNBC, CNN, Fox News e Associated Press. A sondagem é feita à boca das urnas, envolvendo 15.590 votantes, presencialmente ou por telefone (mais informação aqui).