Começa neste domingo uma iniciativa de tributo a dez iranianas enforcadas há 40 anos por não renegarem a sua fé. As suas mortes são lembradas como um “terrível capítulo” numa longa história de luta por liberdade e justiça contra um regime totalitário.

Foto de arquivo de membros da comunidade Baha’i no local em que se supõe terem sido enterradas as dez mulheres. Foto incluída no relatório “Community Under Siege: The Ordeal of the Bahá’ís of Shiraz”, do Iran Human Rights Documentation Center, disponibilizado na Bahá’í Library Online.
Maryam Agassie lembra-se bem do que aconteceu em 18 de junho de 1983. Estava a trabalhar na sua loja no Algarve quando ouviu na rádio uma notícia perturbadora. Naquela noite, dez mulheres iranianas e bahá’ís, como ela, tinham sido enforcadas, na Praça de Chowgan, em Shiraz, cidade-natal de dois dos mais venerados poetas persas, Hafez e Saadi. Foram mortas porque, confrontadas pela República Islâmica com uma escolha, optaram por perder a vida e não as suas crenças e ideais.
Neste domingo, quatro décadas depois, Maryam Agassie junta-se a uma campanha mundial, #OurStoryIsOne, que homenageia aquelas mártires e a longa luta das mulheres iranianas por igualdade e justiça. “Não esqueço, porque um cunhado meu foi assassinado em 1981, pelo mesmo e único crime: recusou renunciar à sua fé”, diz ao 7MARGENS a empresária que emigrou para Portugal, quando o regime do Ayatollah Khomeini intensificava a perseguição aos bahá’ís, a maior minoria religiosa não-muçulmana do Irão.
Uma iniciativa da Bahá’í International Community (BIC), a campanha #OurStoryIsOne, que neste domingo arranca no Twitter, irá durar um ano e contará com a colaboração de artistas, músicos, cineastas e outros criadores, convidados a contribuir com trabalhos diversos para assinalar este “terrível capítulo de intolerância na história do Irão.”
As dez mulheres de Shiraz foram presas entre outubro e novembro de 1982, passando primeiro pelo Centro de Detenção de Sepah e depois pela penitenciária de Adelabad. Aqui, separadas dos outros reclusos, em total isolamento, foram sujeitas a interrogatórios e tortura por parte dos pasdaran (guardas da revolução). Negaram-lhes o direito a advogados e julgamento público. Quem ditou a sentença foi um juiz da sharia (lei islâmica), que as condenou por “espionagem a favor de Israel” e por “ensinarem educação moral a crianças”.
O seu destino ficou selado assim que se recusaram a converter ao islão. No dia 18 de junho de 1983, foram secretamente conduzidas ao cadafalso. Cada uma delas foi obrigada a testemunhar o enforcamento da que a precedia. A última e a mais jovem tinha 17 anos. Ninguém informou as suas famílias que, durante as raras visitas, só podiam olhar para as prisioneiras. Não eram autorizados gestos de afeto, nenhuma palavra de estímulo. Sem funerais dignos, as vítimas foram sepultadas pelas autoridades no cemitério bahá’í de Shiraz que, em 2014, seria demolido para dar lugar a um “centro cultural e desportivo”.
Famílias destroçadas

Quem foram, afinal, estas mulheres a quem hoje se presta tributo? Comecemos pela mais nova, Mona Mahmoudnejad, de 17 anos. Dava aulas particulares a meninos e meninas bahá’ís, privados de acesso à educação. Ela e o pai foram presos em 23 de outubro de 1982. Em janeiro de 1983, a mãe, Farkondeh, recebeu ordens para pagar 500 000 tumans (cerca de 110 euros) para garantir a libertação da filha, mas, quando foi entregar o dinheiro, também ela ficou encarcerada em Adelabad. Mona seria enforcada cinco dias depois.
Roya Eshraghi, de 23 anos, estudava ciência veterinária na Universidade de Shiraz, quando foi expulsa por ser bahá’í. Em 29 de novembro de 1982, após uma rusga policial à casa da família, Roya, a mãe, Ezzat-Janami, e o pai, Enayatollah, foram presos. Ele seria enforcado a 16 de junho de 1983, elas tiveram o mesmo destino dois dias depois.
Simin Saberi, 24 anos, perdeu o emprego numa empresa agrícola, onde era adjunta da administração, logo após a revolução islâmica, em 1979. Foi detida na sua casa, em Shiraz, a 24 de outubro de 1982. Em 29 de novembro, durante uma reunião de jovens bahá’ís na mesma cidade, detiveram Shahin Dalvand, a quem os amigos chamavam Shirin. Concluíra o curso de sociologia na universidade de Shiraz e, em 1979, decidira não emigrar para o Reino Unido, como fizeram os pais. Ambas foram enforcadas em 18 de junho de 1983.
Akhtar Sabet tinha 18 anos quando a casa e a loja da família, em Sarvestan, foram atacadas e pilhadas. Mudaram-se para Shiraz, a 80 km de distância, para que ela pudesse completar o curso de enfermagem. Akhtar trabalhava num hospital e dava aulas a crianças bahá’ís quando foi presa em 23 de outubro de 1982. Aos 25 anos, foi enforcada.
Zarrin Moghimi-Abyaneh, 24 anos, formou-se em literatura inglesa na Universidade de Teerão. Trabalhou como tradutora numa companhia petroquímica em Marvdasht e depois em Shiraz. Logo no início da Revolução Islâmica, foi despedida por ser bahá’í. Em 29 de novembro de 1982, numa rusga à casa da família, ela e os pais foram presos. A mãe saiu em liberdade em abril do ano seguinte; o pai apenas dois anos depois de enforcarem a filha.

Tahereh Arjomandi Siyavushi, 30 anos, era enfermeira em Yasuj, cidade do povo Luri, nas montanhas Zagros, no Sudoeste do Irão. Em 1978, vésperas da Revolução Islâmica, foi despedida por ser bahá’í. Forçada a mudar-se com o marido, Jamshid, para Shiraz, aqui começou a trabalhar num hospital privado. Em 1982, foram ambos presos – Jamshid em 26 de outubro e Tahereh a 29 de novembro. Ele foi enforcado em 16 de junho de 1983; ela dois dias depois.
Nosrat Ghufrani Yaldaie, 46 anos, era uma figura influente da Assembleia Espiritual Bahá’í de Shiraz e, por isso, muitas vezes foi insultada em público por membros da Anjoman-e Hojjatieh, sociedade fundada em 1953 por Mahmoud Halabi, com o único propósito de combater a fé que ele considerava inimiga do xiismo duodecimano, religião maioritária no Irão.
Apesar dos recursos limitados, Nosrat transformou o lar da família num abrigo para os bahá’ís que foram expulsos de suas casas ou ficaram sem elas, depois de incendiadas por extremistas em 1979 ou destruídas no início da guerra com o Iraque, que durou de 1980 a 1988. Na manhã de 23 de outubro de 1982, guardas da revolução detiveram Nosrat, o marido, Ahmed, e o filho mais velho, Bahram, de 28 anos. Bahram vendia roupas para criança nas ruas, depois de expulso da universidade onde completava um mestrado e era professor assistente de economia. Seria enforcado dois dias antes da mãe, na mesma praça em Shiraz. O pai saiu em liberdade antes de perder ambos.
Mahshid Niroumand, 28 anos, licenciada em Física pela Universidade de Shiraz e com diplomas em três línguas (alemão, francês e inglês), era professora de crianças bahá’ís. Foi presa em 29 de novembro de 1982, enforcada em 18 de junho de 1983.
A desumanização

O mundo revoltou-se timidamente contra estas mortes. Interrompeu-as, mas não pôs fim à perseguição e à discriminação. Constantemente, os bahá’ís são privados da sua humanidade e cidadania. Estão proibidos de trabalhar na função pública. As suas empresas e lojas são encerradas ou queimadas. As suas terras e propriedades são confiscadas. Os seus lugares de culto são vandalizados e os cemitérios profanados. Jovens são impedidos de frequentar as universidades e os professores que os ajudam como voluntários são presos.
Ao contrário dos zoroastras, judeus e cristãos, que são “dignos de proteção”, segundo o artigo 13 da Constituição iraniana, os bahá’ís – cerca de 300 mil numa comunidade mundial de mais de 6 milhões – são considerados “uma seita política perversa”, descritos como “impuros”, “infiéis” e “hereges”, porque não acreditam em Maomé como “último profeta”.
Religião monoteísta, fundada no século XIX por um nobre da antiga Pérsia, Bahá’u’lláh (nome que significa “Glória de Deus”), a Fé Bahá’í tem as suas próprias escrituras, leis e ensinamentos. Inspirou-se no movimento Babí, criado por um comerciante de Shiraz, Siyyid ‘Alí-Muhammad, que se tornou conhecido por Báb (“Porta”). Defensor de reformas sociais e mais direitos para as mulheres, Báb foi fuzilado em 1859 pela “heresia” de anunciar “a chegada iminente do prometido de todas as religiões”. Preso e desterrado, Bahá’u’lláh assumiu, posteriormente, ser essa “manifestação de Deus” que o Báb profetizara.
O facto de a Comunidade Bahá’í, também presente em Portugal, ter membros de todas as nações, grupos étnicos e culturas, é vista pelos crentes como a confirmação do ensinamento principal de Bahá’u’lláh: “A Terra é um só país e a humanidade os seus cidadãos.”
Embora os Bahá’ís aceitem a legitimidade do islão, a realidade é que o regime teocrático iraniano persiste em vê-los como ameaça existencial à República Islâmica, porque “as doutrinas relativas ao Mahdi (Messias) se tornaram irrelevantes com o aparecimento da fé de Bahá’u’lláh”, explica Mehdi Khalaji, investigador no Washington Institute for Near East Policy e teólogo xiita formado em Qom, de onde Khomeini emergiu para derrubar a dinastia Pahlavi e 2500 anos de monarquia.
“A religião bahá’í, uma das mais pacíficas do planeta, rejeita toda a violência”, admite o iraniano-americano Khalaji. No entanto, “o facto de os bahá’ís não abdicarem do seu dever de proselitismo, e porque o Mahdi é, indiscutivelmente, o principal pilar do xiismo duodecimano, o regime sente que tem de usar a força para evitar a expansão de uma fé que rejeita aquela crença”.
Não foi em vão

Esta é, segundo Khalaji, uma das razões por que o regime iraniano nega o estatuto de religião à Fé Bahá’í, renegando-a como “uma seita” da qual todos se devem afastar. Outro argumento para justificar a hostilidade é declarar a Fé Bahá’í “uma conspiração sionista, concebida pelo Ocidente para dividir a comunidade muçulmana”. A prova, alegam os mullahs em Teerão, é o facto de o Centro Mundial Bahá’í se localizar em Israel. Isso deve-se ao facto de Bahá’u’lláh ter falecido, em Akka, na Palestina (hoje Acre), em 1892. O santuário com os seus restos mortais é, para os Bahá’ís, “o lugar mais sagrado do mundo”.
Ao recorrer à opressão e à intimidação para forçar os Bahá’ís a “uma fuga em massa”, adianta Mehdi Khalaji, o regime procura “eliminar e não resolver um problema”. Este método já havia sido bem-sucedido com os judeus (cuja presença no Irão remonta há 2700 anos), que antes da Revolução Islâmica eram mais de 100 mil e hoje são menos de 8500 (e ainda assim permanecem a segunda maior comunidade judaica depois de Israel). “Os restantes judeus são mais ou menos tolerados porque, entre outros fatores, não têm interesse em disseminar o judaísmo.”
“No Irão há mais bahá’ís do que judeus por causa do imperativo do proselitismo, mas também porque estão demograficamente mais dispersos e mais integrados na sociedade”, refere Khalaji. “Não obstante todas as pressões e injustiças, a maioria não deseja deixar o país, sobretudo a geração mais velha. Porque o Irão é a sua pátria e o berço da sua religião.” Além disso, prossegue, porque a Fé Bahá’í surgiu entre as elites, “ainda continua a apelar às elites, e o regime está preocupado com a atração que os jovens sentem por uma religião que, para eles, é mais compatível com a vida moderna do que os ensinamentos tradicionais xiitas”. Há cada vez “mais conversões e mais ateísmo”, o que revela o fracasso do “totalitarismo” do regime, conclui Khalaji.
O sacrifício das dez mulheres há 40 anos enforcadas, numa só noite, “não é o fim da história”, acredita Simin Fahandej, representante da Bahá’í International Community nas Nações Unidas, em Genebra. “Hoje, no sangue, nas lágrimas e nas feridas” de milhares de jovens iranianas que lutam pelos seus direitos, “podemos ver ecos da injustiça sofrida pelas dez mulheres de Shiraz, cuja morte trágica tocou a vida de tantas pessoas.”
Sobre a campanha #OurStoryIsOne, a escritora Shabnam Moinipour destaca, no site IranWire: “A história mostra-nos que a violação dos direitos de uma só pessoa é a violação dos direitos de todas as pessoas. Em 40 anos, o Irão passou do enforcamento de dez mulheres bahá’ís, com pouca ou nenhuma reação no país, ao assassínio de Mahsa Amin, que gerou protestos nacionais e internacionais. O sangue daquelas dez mulheres bahá’ís, em 1983, e de muitas outras não foi derramado em vão.”
Substituída a foto de Bahá’u’llah, às 16h30 do dia 18, pela dos Jardins do Báb, em Haifa (Israel); para os bahá’ís, a sacralidade de Bahá’u’llah deve ser respeitada através da não divulgação da sua imagem fotográfica; embora essa foto circule publicamente, o 7MARGENS entendeu neste texto respeitar essa convicção.