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O papel positivo das religiões na construção de uma fraternidade universal está longe de ser consensual e podemos até descortinar bastantes factos que apoiam a tese oposta.
Efetivamente, muitas atrocidades (e de vários tipos) foram ao longo dos séculos cometidas em nome das religiões e dos seus proclamados deuses. Infelizmente, é um fenómeno transversal e os erros parecem coincidir.
Aparentemente, a verdade que está na base de todos os sistemas religiosos, em vez de ser uma luz de aproximação e acolhimento transforma-se muitas vezes em muro intransponível ou em pedra de arremesso. Existem várias razões para isso, algumas das quais bastante óbvias: (1) Quem crê pode considerar-se facilmente mais do que os outros – a tentação da soberba; (2) Quem crê pode fechar-se comodamente no seu sistema de perfeição, desconsiderando tudo o resto – a tentação do isolamento; (3) Quem crê pode querer expandir a sua fé da forma errada: pela conquista ou pela supressão da diferença – as tentações do totalitarismo e da intolerância.
A fraternidade universal exige exatamente os movimentos contrários: humildade, abertura e aceitação do outro tal como ele é. Amor.
Para um cristão, essa exigência decorre do próprio comportamento de Deus feito Homem, que cada crente é chamado a imitar:
– O Deus que ensinou o amor morrendo pelos seus irmãos, injustamente, numa Cruz, sem abrir a boca;
– O Deus que esteve sempre junto dos mais fracos, dos mais pecadores, dos mais desconsiderados, incluindo os proscritos, as crianças e as mulheres;
– O Deus que salvou o que estava perdido, olhou para os doentes e excluídos e os curou.
A fraternidade universal exige que deixemos de olhar o mundo com olhos maniqueístas, dos bons e maus, nós e os outros.
Todos criados à imagem e semelhança de Deus, é impossível não haver bondade em cada ser humano. Qualquer preconceito em relação a alguém, priva-nos em primeiro lugar a nós próprios da graça de o amarmos.
Tão pequenos e enfezados nos fazemos ao rejeitarmos a humanidade do outro, de qualquer outro…
Santa Teresa de Calcutá afirmou que, para o amor ser verdadeiro tem de nos doer. Não pela dor procurada pelas mortificações que mais nos centram em nós mesmos do que nos outros, e por isso nos enchem de soberba. Mas, sim, pela dor do esvaziamento de nós, pelo outro. É uma dor sempre relacional: uma reação amarga que não se profere, a aceitação silenciosa de um agravo, uma dádiva para além da comodidade. A dor da preferência do outro à custa de nós próprios.
O mundo precisa urgentemente desse amor que dói, pelo outro. Dói, porque prefere, porque o põe acima. Seja ele quem for, tem nele a imagem de Deus e merece que morramos por ele. Não que o conquistemos, mas que morramos por ele.
Para isso é preciso que exista outro ou muitos outros na nossa vida. Tão fechados e justificados no fechamento, corremos o risco de nos perdermos de nós mesmos, já que só nos encontramos se damos tudo de nós.
Essa é a dimensão da fraternidade que pregamos, essa é a medida do rasto que deixamos. Essa é a verdade maior para um cristão – um amor que todos os dias (e muitas vezes por dia) morre pelo outro, imitando o seu Deus.
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária