
Eduardo Duque: está a perder-se a “gramática” que permite ler a arte de uma igreja. Foto: Direitos reservados
Um dos riscos culturais que a sociedade portuguesa corre associado ao afastamento do campo religioso institucional é o da perda da “gramática” que lhe permite, por exemplo, ler o sentido do que se encontra e ocorre nos seus templos. Quem o sugere é o padre e sociólogo bracarense Eduardo Duque, a propósito do lançamento do seu mais recente livro sobre Valores e Religiosidade em Portugal – Comportamentos e Atitudes Geracionais, a cujos resultados o 7MARGENS fez já referência.
Na sessão de apresentação da obra, que ocorreu esta sexta-feira, 4 de novembro, no Museu Pio XII, em Braga, Guilherme de Oliveira Martins, administrador da Fundação Gulbenkian, foi ainda mais longe. Para ele, perante o “vazio do nosso tempo, importa não esquecer que o bem, o belo, o bom, o justo e o verdadeiro, em suma, os valores não são realidades abstratas”. A religião, se for entendida na sua dupla dimensão de relação ou religação (religare) e de releitura (relegere), é um dos valores que também “não se pode esquecer”. Sobre os dados do estudo, Oliveira Martins disse que a perda desse e de outros valores e o vazio daí resultante não são “uma fatalidade” e que preencher esse vazio “depende de cada um de nós”.
Também a apresentar o livro de Eduardo Duque esteve Carlos Veiga, sociólogo e professor da Universidade do Minho, que desafiou os leitores do livro e, desde logo, a instituição Igreja Católica a proceder à interpretação do significado dos dados quantitativos que o estudo publica, uma vez que os números não podem esgotar-se em si mesmos.
“A Igreja deveria ter em atenção o que no livro se diz, nomeadamente sobre o crescimento brutal dos jovens sem religião, tirando ilações sobre o que que fazer para se tornar mais relevante para eles”, observou Carlos Veiga.
Numa breve conversa com o autor de Valores e religiosidade em Portugal, que é também coordenador da Pastoral Universitária da diocese de Braga e assistente nacional da Pastoral do Ensino Superior, o 7MARGENS procurou desenvolver alguns aspetos e problemas suscitados pelo livro.

Jovens numa celebração de preparação da Jornada Mundial da Juventude de 2023. Foto © COD Portalegre-Castelo Branco/Agência Ecclesia.
7MARGENS – Com o presente estudo, que objetivos teve?
EDUARDO DUQUE – A minha preocupação foi conhecer como é que está Portugal, em termos de valores, de identidade religiosa, saber se é o mesmo país de há 20-30 anos ou se tem vindo a mudar profundamente… Tenho o desejo de querer ler Portugal e a identidade portuguesa, a sociedade em que nós estamos, de onde vimos e para onde vamos.
7M – O que mais o surpreendeu nos resultados obtidos?
– Neste estudo foi a quebra de jovens nas nossas igrejas, que é muito real [e que mostra que] estamos cada vez mais a viver numa sociedade arreligiosa.
7M – O inquérito do European Values Study, em que se baseou, apenas cobre os segmentos etários a partir dos 18 anos. Há dados relativamente ao segmento juvenil abaixo desse limiar?
– Eu estudo há muitos anos esta questão. E, há algum tempo já, houve um estudo sobre “Os Jovens e a religião na sociedade atual: comportamentos crenças, atitudes e valores no distrito de Braga”, em que havia uma radiografia para o território nacional que cobria a franja a partir dos 15 anos; já nessa altura [2007] me apercebi da existência de uma quebra religiosa, e que a forma como as pessoas se posicionavam relativamente à Igreja era, cada vez mais, de um afastamento.
7M – Que desafios para a ação podem deduzir-se dos resultados deste livro?
– Este livro não é de natureza pastoral, mas científica, é uma análise sociológica baseada no European Values Survey [EVS]. Abstive-me sempre de entrar no aspeto pastoral, que deixo para os pastoralistas e para quem porventura quiser ler o livro e perceber como a nossa identidade axiológica, valorativa, religiosa vai sendo posta em causa.
Nós somos filhos de uma identidade com dinâmicas religiosas muito expressivas que se manifestavam em termos sociais, culturais e nas formas como vivíamos; começámos a perceber aos poucos que Portugal está, de facto, a distanciar-se profundamente desta matriz. Continuamos a ser um povo católico. Mas católico em quê? Neste inquérito, em 2020, 69 por cento diziam-se católicos. Mas nós percebemos que, a continuarmos assim, possivelmente, vamos continuar a perder a nossa matriz.
Isso a mim leva-me a fazer perguntas. Como digo no livro, em breve, teremos pessoas que entram numa igreja e não sabem ler a memória do que ali está, o que é que aquilo representa. Uma talha é um livro aberto. Nós temos muita gente, não apenas jovens, que se posicionam diante dessas realidades e não as conseguem ler, porque não têm gramática para tal. Aos poucos, não é apenas o aspeto religioso ou o facto de termos menos católicos em termos de prática, que fica posto em causa, mas a herança que recebemos dos nossos antepassados, a nossa memória.

Santuário do Cabo Espichel: “Continuamos a ter pessoas religiosas, mas há um afastamento da estrutura” eclesiástica. Foto © António José Paulino.
7M – No prefácio, o professor Boaventura Sousa Santos sugere haver no livro uma análise “habitada por uma certa angústia pela perda da experiência e vivência religiosa, sobretudo entre os mais jovens”. Estaremos perante um processo de derrocada ou haverá, nos dados que apurou, sinais de esperança?
– Estou completamente de acordo com essa leitura. Nós somos filhos de um contexto histórico em que o Iluminismo criou uma certa beligerância em relação ao religioso, ao transcendente, como que pretendendo retirar Deus da história. O que percebemos é que, em boa verdade, não o conseguiu. E não conseguiu porque, se é verdade que a Igreja, numa primeira fase, reagiu muito negativamente, quase com algum revanchismo, nos últimos tempos, ela tem tido uma forma muito interessante de se posicionar: é uma Igreja em saída, uma Igreja que dialoga com o mundo, uma Igreja que respeita verdadeiramente as pessoas que não querem ser religiosas…
Esta, para mim, é a mudança da Igreja, quando assume que é tanto mais Igreja quanto mais dialogar com os diferentes e os distantes, assumindo-se como uma proposta de verdade, que se é livre de aceitar.
7M – Há em certos passos do livro o que pode ser visto quer como uma certa idealização da Igreja, em que ela surge ameaçada, ainda que isso não surja concretizado ou fundamentado.
– Se bem percebi a observação, no meu estudo torna-se claro que existe um afastamento da estrutura religiosa. Porém, não há um afastamento da ideia de Deus ou da própria religião. No livro, trabalhei variável a variável e, a partir de determinado momento, agreguei um conjunto de variáveis e construí um índice de religiosidade por perceber que, no mundo de hoje, falar desta religiosidade a partir de uma, duas ou três variáveis é muito pobre… para se perceber se de facto nós temos ou não pessoas religiosas. E nós continuamos a ter pessoas religiosas. Percebemos é que existe afastamento de uma estrutura que está a ser posta em causa.
7M – Não seria necessário algum trabalho em torno da interpretação dos dados que apura, quer a partir dos processos socioculturais quer da vida eclesial?
– Este inquérito do ESV já estava feito e os dados que utilizei não nos permitem entrar nesse terreno; para isso teria de haver um inquérito dirigido nessa direção. Não nos permite perceber, de forma explicativa, porque é que as pessoas se afastaram das instituições religiosas. Agora, saindo do âmbito deste inquérito e indo para trabalhos de campo que temos feito, quer academicamente quer pastoralmente, percebemos que este afastamento da Igreja e das estruturas religiosas acontece ao mesmo tempo noutras estruturas da sociedade civil e política. Há um significativo alheamento das instituições, até mesmo da própria família. Porquê? Porque vivemos com uma geração profundamente individualizada, voltada para o próprio sujeito, egocêntrica, à volta dos próprios interesses e não vivemos no contexto comunitário, como antigamente.
Esta cultura, na verdade, entra em choque com a cultura da Igreja. A Igreja vive tempos lentos, vive tempos comunitários… é relação, não se consegue ver sem tempos comunitários. Ao contrário da sociedade, que vive tempos céleres, muito ágeis. Então, é normal que as pessoas não se revejam na estrutura eclesial, porque também não se revem em estruturas lentas. Como acontece com outras estruturas. O que existe é um alheamento geral face a tudo o que é institucional.
Do ponto de vista mais interno [da Igreja], há muitas coisas que nós precisamos de alterar – comportamentos, atitudes, valores – para acompanhar os tempos de hoje. E acho que este Sínodo nos veio mostrar isso, que as pessoas querem uma Igreja mais acolhedora, inclusiva, aberta e transparente. Que a Igreja não pode ser conduzida por duas ou três pessoas a seu belo prazer. A Igreja é o povo de Deus em caminho. Então há que dar voz a esse povo de Deus. Há, portanto, dentro da própria Igreja, individualismos de que temos de nos afastar.
7M – Apesar deste afastamento dos jovens relativamente à vida das instituições religiosas, o que se lê em muitas sínteses da auscultação sinodal é que eles não foram ouvidos, parecem ter sido um pouco excluídos.
– A crítica pode ter a sua razão de ser. Falando por Braga, talvez pudéssemos ter feito as coisas de outra maneira, com um pouco mais de tempo, permitindo preparar melhor as comunidades. Na Pastoral Universitária de Braga, por exemplo, fizemos três grupos sinodais e eu não estive na coordenação de nenhum deles. Foram universitários que os coordenaram. E tivemos também um grupo só de professores, moderado por uma professora.

Eduardo Duque: “Há que dar voz ao povo de Deus.” Foto: Direitos reservados