(A propósito da entrega, quinta-feira passada, dia 13, no Vaticano, do documento sobre as “virtudes heroicas” da irmã Lúcia dos Santos, uma das videntes de Fátima, o 7MARGENS reproduz a seguir um texto publicado originalmente no Expresso de 14 de Maio de 2021.)

Irmã Lúcia e João Paulo II. Foto © Jornal O Bom Católico, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
No dia 13 de Maio de 1917, a pequena Lúcia pergunta: “Quando acaba a guerra?” Mais tarde, intercede pelo médico comunista do convento onde vive, na Galiza; escreve várias vezes a elogiar o “salvador” Salazar; avisa que a Rússia pode espalhar os seus “erros” (i.e., o comunismo) pelo mundo; e segue com atenção os últimos anos da União Soviética e a queda do Muro de Berlim. Mística, prática, ingénua, sem opiniões próprias no campo político, foi ditando, no entanto, modos de ver a guerra, o comunismo, o papel de Salazar. Uma vidente nos meandros da política.
Há duas constantes nas observações políticas da irmã Lúcia: a ideia da paz e o medo de que os “erros do comunismo” se espalhassem pelo mundo. Em 13 de Maio de 1917, a ainda pequena Lúcia dos Santos, 10 anos, conta que, ao ver a “Senhora mais brilhante que o sol”, lhe perguntou: “Quando acaba a guerra?” Mais tarde, já no convento, passaria a referir-se aos “erros da Rússia” e a dizer que os sucessivos papas deveriam consagrar aquele país a Nossa Senhora, de modo a evitar que esses erros se espalhassem pelo mundo ou o surgimento de novas guerras. O medo do comunismo tinha ainda uma alínea complementar: a admiração por Salazar, que estabilizara o país e as relações com a Igreja, afugentara o comunismo e colocara o país ao abrigo da Segunda Guerra Mundial.
Essas alusões frequentes aos temas da paz e do comunismo iriam traduzir-se em observações a propósito de episódios importantes, de carácter internacional, eclesiástico ou doméstico: Guerra Civil de Espanha, perseguições religiosas na União Soviética, as duas guerras mundiais, papel quase messiânico de Salazar na “salvação” de Portugal – tudo isso merece de Lúcia comentários, orações, apelos…
O tema da guerra inscreve-se em Fátima desde o primeiro dia: em 13 de Maio de 1917, quando tem a primeira visão de uma “Senhora mais brilhante que o sol”, como ela diria depois, Lúcia faz duas perguntas iniciais: “Que lugar é o de vossemecê? Para que é que vossemecê cá vem ao mundo?” Logo a seguir, quer saber a resposta à dúvida que, na altura, atormenta grande parte da população: “Vossemecê sabe-me dizer se a guerra ainda dura muito tempo ou se acaba breve?”
A pergunta tinha um grave contexto: quase um ano antes, em Março de 1916, a Alemanha declarara guerra a Portugal, após o apresamento de navios alemães e austro-húngaros ancorados em Portugal (antes, já houvera combates em África, entre tropas portuguesas e alemãs). Entre 1916 e 1917, oito jovens da freguesia de Fátima foram chamados ao serviço militar, como recenseou José Manuel Poças das Neves num estudo sobre a freguesia no início do século XX. Três deles morreriam na batalha de La Lys, em Abril de 1918, integrados no Corpo Expedicionário Português que desde 30 de Janeiro de 1917 combatia em França.
A guerra, a “grande obsessão” de todos

Mensagens do Correio de Nossa Senhora, com a carta da mãe de um militar que tinha estado na Guiné em destaque; muitas das cartas depositadas em Fátima fazem pedidos pela paz. Foto © António Marujo
A guerra era a “grande obsessão de todos”, como referia o irmão do então pároco de Ourém, José Pereira Gens, citado por Poças das Neves. A par da penúria e da miséria em que vivia grande parte da população portuguesa, o conflito de 1914-1918 e a vontade de paz das populações tornava-se, assim, paralelamente, um outro tema de oposição entre a República nascente e a Igreja – nomeadamente, os crentes anónimos, a quem a guerra atingia na carne, pela mobilização dos soldados.
Dos campos de batalha em França, chegaria aliás aquela que será a primeira referência de um soldado português ao tema da guerra e que se pode ler no II volume da Documentação Crítica de Fátima. António Ferreira de Andrade, a cumprir o serviço militar em França e natural de Barcelos, escreve, com data de 4 de Setembro de 1917, ao pai de Lúcia, pedindo que este lhe dê notícias dos acontecimentos de Fátima. E acrescenta, no final, desejos de paz (mantêm-se os erros gramaticais e a forma de escrita): “Recumendo – tambem há sua filha Lucia todos os homems de Portugal que nesta terra de França se encontro. Recumendo-lhe tambem que rogue anossa Sn.ra pela perceberança dos justos e pela comberção dos pecadores. Assim cumo tambem lhe peça a Nossa Sn.ra Pela Páz e concordia para que tôdos tinhamos alegria.”
Depois da Grande Guerra de 1914-18, Lúcia terá uma nova experiência, mais directa, de um conflito violento, quando vive em Espanha, durante os anos da Guerra Civil (1936-39). A vidente chegara a Tui, para iniciar o noviciado nas Irmãs Doroteias, em 1925, numa altura em que Primo de Rivera governava o país em ditadura. Mas em 14 de Abril de 1931, com a proclamação da República, inicia-se um período de ataques e perseguições à Igreja, aos seus agentes e instituições. Casas religiosas, escolas católicas, igrejas e outras instalações são incendiadas ou destruídas e muitos clérigos, religiosos e leigos católicos são mortos só pelo facto de o serem.
A Galiza é menos atingida pela violência do que outras regiões de Espanha, mas o conflito toca o convento das irmãs por via indirecta: o médico das doroteias era Alejo Diz Jurado, que chegara a ser alcaide de Tui entre 1918 e 1922 e, de novo, em 1931. “Muito bom” clínico, como dizia Lúcia – de acordo com o relato da biografia Um Caminho sob o Olhar de Maria, publicada pelo Carmelo de Coimbra em 2013 –, Jurado era filiado na Izquierda Republicana. O suficiente para que nessa biografia ele seja identificado como “comunista”.
Pai de seis filhos, Jurado baptizara-os a todos e considerava-se católico. “Tinha um temperamento conservador e protegera a Igreja em Tui, impedindo que ali houvesse quaisquer excessos anticlericais” durante os anos republicanos, observa, à revista E, José Rui Teixeira, autor da biografia integrada no processo de beatificação da vidente. Lúcia e as doroteias estimavam-no mas, condenado à morte em Outubro de 1936, o apreço de nada lhe valeu: o médico pediu a intercessão de Lúcia mas, na biografia do Carmelo, diz-se que isso era “impossível, sob pena de sofrer a mesma sentença”.
A vidente pediu então ao padre Mariño – jesuíta espanhol que acompanhou ao médico na prisão – que entregasse ao doutor Jurado um crucifixo que tinha sido oferecido a Lúcia. O padre jesuíta ainda contaria que, na prisão, o médico catequizara os seus companheiros e não quis morrer sem se confessar nem comungar. No final, foi fuzilado enquanto segurava, na mão direita, o crucifixo que a vidente lhe oferecera. Na biografia citada, diz-se que ele e os seus companheiros morreram gritando “Viva Cristo Rei” – apesar de quem os matava estar supostamente mais do lado da Igreja…
O anticomunismo nascido em Espanha

Irmã Lúcia com o bispo de Leiria, José Alves Correia da Silva, durante a visita da vidente a Fátima em maio de 1946. Foto de autor desconhecido, Domínio público, via Wikimedia Commons.
Esta proximidade com a violência republicana anticlerical em Espanha – mais intensa do que a I República Portuguesa –, muitas vezes identificada com o “comunismo”, ajudaria a configurar muito do que seria a visão política de Lúcia, se assim se podem designar as observações que ela fazia sobre temas dessa área.
José Barreto, investigador do ICS (Instituto de Ciências Sociais), da Universidade de Lisboa, é muito céptico sobre isso, como nota à revista E: “A cultura política de Lúcia era insignificante e pouco informada da realidade”, observa o autor de Religião e Sociedade – Dois Ensaios, onde se debruça sobre o fenómeno de Fátima. Tal facto tinha uma origem, diz: “As doroteias tinham sido perseguidas e muito maltratadas pela República” em Portugal – de onde foram obrigadas a fugir para Espanha – e isso configurava também o modo como as religiosas entendiam o que se passava naqueles anos em Espanha.
Barreto, que tem estudado vários temas ligados a Fátima, recorda que a superiora da casa onde estava Lúcia era a Madre Monfalim, bisneta do duque de Palmela, oriunda portanto da alta aristocracia monárquica portuguesa. Ela “exerceu uma grande influência” sobre Lúcia, incluindo na “perspectiva franquista e salazarista” que adoptava e na consideração de que o 28 de Maio de 1926, em Portugal, o golpe militar que derrubou a República, “era a boa revolução”. Ao mesmo tempo, Monfalim – queixava-se a própria Lúcia, como recorda o investigador – desanimava-a de relatar conversas e visões, perguntando-lhe se ela não estaria a falar consigo própria e se o demónio não andava ali…. “Lúcia não tinha opiniões pessoais, era muito obediente”, conclui o investigador do ICS.
Não será por acaso, aliás, que mais tarde a esposa de Franco, Carmen Polo, visitará Lúcia, já no Carmelo. Em 25 de Outubro de 1949, o ditador espanhol vem a Coimbra receber o doutoramento honoris causa da Faculdade de Direito, e a mulher aproveita para um encontro com a vidente. No dia seguinte, Franco e a sua comitiva visitam o Santuário e a devoção do casal é relatada no jornal Voz da Fátima de 13 de Dezembro.
Lúcia, é verdade, respondia à confiança que a Madre Monfalim nela depositava, mesmo se com as admoestações acerca das visões: durante os 12 anos em que viveram na mesma casa, a superiora encarregou-a de várias tarefas, incluindo a ajuda na enfermaria ou nas compras, que eram feitas em Valença durante a Guerra Civil.
“Lúcia revelava em inúmeras situações um temperamento místico e contemplativo, mas não deixava de ser uma mulher prática e muito competente no exercício das funções que lhe eram confiadas e revelando qualidades de organização e iniciativa”, nota José Rui Teixeira, que também dirige a Cátedra Poesia e Transcendência Sophia de Mello Breyner, no polo do Porto da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. “Mais: era temerária, talvez por um certo desprendimento que aprendera com as vicissitudes e as provações sofridas.”
É também na experiência em Espanha que se forja o anticomunismo de Lúcia e a ideia da “conversão da Rússia”, recorda José Barreto. Nessas ideias, ela revela uma “mistura de velhas concepções de pecados e da ideia de remissões de pecados”, observa o investigador do ICS.
“É interessante ver como e porque surge a história da Rússia na mensagem de Fátima”, nota José Barreto. Os papas Bento XV e Pio XI tinham feito vários esforços para se aproximar da União Soviética, propondo a abertura de seminários e casas religiosas, “aproveitando a completa falência da Igreja Ortodoxa”, diz.
Qual conversão de qual Rússia?

Desenhos e mensagens de crianças no Correio de Nossa Senhora, Fátima. Foto © António Marujo.
A ideia da “conversão da Rússia” traduzia – nessa altura, em que as igrejas Católica e Ortodoxa ainda se olhavam como inimigas – a vontade de “trazer ao redil romano” o cristianismo ortodoxo russo.
O investigador recorda, aliás, que só em 1930, uma vez goradas as tentativas de aproximação ao regime soviético, o Papa Pio XI lança uma campanha internacional contra as perseguições religiosas. “A mensagem sobre a Rússia é interpolada mais tarde” nos escritos de Lúcia e de Fátima – acrescenta José Barreto –, quando o bispo de Leiria, José Alves Correia da Silva, e os confessores da vidente começam a transmitir essa ideia, depois do falhanço as negociações.
As observações de Lúcia sobre a Rússia eram, por isso, “um mero eco das preocupações da hierarquia da Igreja” – desde logo o Papa e o bispo de Leiria, acrescenta Barreto. “Ela não sabia nada sobre a Rússia, era muito ignorante, muito ingénua.” Lúcia confessaria mesmo nas suas memórias que a primeira vez que ouvira falar na Rússia [Russa] pensava que era uma mulher.
O bispo de Leiria pedia-lhe muitas coisas e incitava-a a escrever, mas ela “não devia ter muitas ideias próprias” sobre o tema. E paradoxalmente, quando começa a referir-se aos erros que a Rússia iria espalhar pelo mundo, o país estava precisamente a ser atacado e invadido pelos nazis.
Quando o texto completo do “segredo de Fátima” foi publicado, em Junho de 2000, uma das notas introdutórias relata a conversa tida com a vidente em Abril desse ano: “[Lúcia] reafirma a sua convicção de que a visão de Fátima se refere sobretudo à luta do comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento das vítimas da fé no século XX.”
Mas esta perspectiva foi analisada criticamente, mesmo dentro da Igreja Católica, desde muito cedo. O padre jesuíta belga Edouard Dhanis (1902-1978), que chegaria a ser professor e reitor da Universidade Gregoriana, falou desde 1944 no que ele considerava a “história antiga” (baseada nos relatos dos acontecimentos de 1917) e a “história nova”, acrescentada com o que Lúcia vai revelando de novas visões e nos escritos das Memórias, durante os seus anos em Espanha.
Citado por José Barreto, num artigo que o investigador português publicou recentemente na revista italiana Memoria e Ricerca, escrevia Dhanis: “Somos levados a acreditar que, no decurso dos anos, certos acontecimentos exteriores e certas experiências espirituais de Lúcia foram enriquecendo o conteúdo original do segredo”. Acrescenta Barreto: “Sem pôr em causa a sinceridade da vidente, Dhanis, cujo país estava nesse momento a ser libertado da ocupação alemã, observava que ‘o modo pouco objectivo como a provocação da guerra [mundial] é descrita no segredo só pode explicar-se pela influência que a guerra civil espanhola exerceu sobre a maneira de pensar de Lúcia’.” E conclui o investigador português, sobre o papel da Rússia: “De facto, o segredo assacava por inteiro à Rússia a responsabilidade de guerras e perseguições à Igreja, ainda que dentro de uma concepção a-histórica e apocalíptica desses flagelos como castigo divino pelos pecados do mundo.”
O cumprimento das profecias?

Papa João Paulo II e Mikhail Gorbachov no Vaticano, em dezembro de 1989. Lúcia dizia que só uma oração de consagração da Rússia – feita em determinadas circunstâncias, que a vidente só considerou plenamente cumpridas com o Papa João Paulo II – poderia evitar a ameaça do comunismo que Lúcia relatava. Foto © Vatican Media.
Aos temas da Rússia e do comunismo, por um lado, e da guerra por outro, Lúcia ligava a “consagração ao Imaculado Coração de Maria”. Em Abril de 1946, a vidente evocava aquilo que ouvira da aparição, em 13 de Julho de 1917 e que ficou transcrito na sua Quarta Memória: “virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem aos meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas.”
Só essa oração de consagração – feita em determinadas circunstâncias, que a vidente só considerou plenamente cumpridas com o Papa João Paulo II, em 25 de Março de 1984 – poderia evitar a ameaça que Lúcia relatava. Para ela, era claro que as consagrações feitas pelos bispos de Portugal em 1931 e 1938 protegeram o país de um conflito como a Guerra Civil Espanhola, bem como da Segunda Guerra Mundial e da emergência do comunismo.
A nível internacional, a própria ainda assistiu, nas duas últimas décadas de vida (Lúcia morreu em 13 de Fevereiro de 2005) a alguns acontecimentos que também pareciam confirmar o bom resultado da consagração de 1984 e o cumprimento das profecias: a eleição de Mikhail Gorbatchov para líder da União Soviética, em 11 de Março de 1985, e a sua política de perestroika e glasnost (reconstrução e transparência); o apelo do Presidente Ronald Reagan, dos EUA, a Gorbatchov, em Berlim, no dia 12 de Junho de 1987: “Deite abaixo este muro”; a própria queda do Muro de Berlim, em 8 de Novembro de 1989 e o encontro de Gorbatchov com João Paulo II, no Vaticano, três semanas depois (1 de Dezembro de 1989); e o fim da União Soviética (21 de Dezembro de 1991), depois da queda sucessiva dos vários regimes comunistas do bloco de Leste.
José Rui Teixeira diz que, quando se dá a tentativa de golpe de Estado na União Soviética, que procurava depor Mikhail Gorbatchov, em Agosto de 1991, Lúcia fica apreensiva. Depois, considera a derrota dos golpistas como uma espécie de “vitória de Deus”, conta o biógrafo. Dois anos mais tarde, como se conta na biografia publicada pelo Carmelo de Coimbra, Lúcia “vibrou fortemente” com o pedido de um bispo russo de visita ao mosteiro para fundar um carmelo na Rússia. Antes, ainda longe da queda do comunismo soviético, ela escrevera numa carta a Lektor Vladimir, de 10 de Dezembro de 1978, citada no mesmo livro: “Sei que a querida Mãe do Céu e Nossa Mãe ama o querido Povo Russo e quer ajudá-lo a encontrar um caminho melhor. Peço-Lhe, pois, que o guarde no Seu Coração de Mãe Imaculada, até conduzi-lo a Cristo Jesus Nosso Salvador!”
Mas, se os acontecimentos pareciam “confirmar” a narrativa de Lúcia sobre o bom resultado da consagração, e se é verdade que o império soviético se desmoronou formalmente, também acontece que a Rússia continua a ser predominantemente ortodoxa e a ter uma lógica expansionista – exportando, afinal, vários “erros”. O papel que o país tem desempenhado em conflitos como a Síria ou o Nagorno-Karabakh, ou na guerra latente com a Ucrânia, entre outros, são exemplo disso. Não falando já da corrupção e do regime autocrata que persiste, é difícil entender onde ficou a “conversão”.
O problema para Lúcia, era o “comunismo histórico, não a ideologia, porque ela nem sequer distingue direita ou esquerda”, observa José Rui Teixeira. E, no caso português, Lúcia considerava que o Estado Novo era um regime que não perseguia a Igreja. Isso lhe bastava.
As guerras e a ausência da Guerra Colonial

Correspondência de um militar que esteve em Angola durante a Guerra Colonial: muitas das cartas depositadas em Fátima fazem pedidos pela paz. Foto © António Marujo,
Quer no texto do segredo, quer em várias passagens das Memórias, Lúcia fala também da importância da consagração para evitar “outra guerra”, pior do que a de 1914-18. Mas, estranhamente, além das “poucas referências” à Segunda Guerra Mundial – ela “sabe que o conflito é devastador, mas aprecia a neutralidade de Salazar” – o biógrafo não se recorda, em todas as consultas que fez, de ter encontrado qualquer alusão à Guerra Colonial, que Portugal manteve em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau entre 1961 e 1974. “Lúcia, de facto, nunca se refere a uma guerra em concreto, faz sempre referências indirectas, para rezar pela paz e manifestar compaixão pelas vítimas”, nota o biógrafo.
A presença do tema é frequente nas cartas e mensagens que muitos devotos enviam para o Santuário, e que estão agora arquivadas no Correio de Nossa Senhora, uma das secções do arquivo. Há cartas que se ficam pelo pedido genérico de paz, como o de M.L. em 1967: “Outro pedido, a paz no mundo, principalmente evitar-se a 3ª Guerra Mundial.” Ou que o ligam também ao tema da conversão e dos pecados, como fazia Lúcia: “… faz a conversão dos pecadores, para que não haja uma terceira guerra mundial que seria muito pior do que as outras duas anteriores com as bombas atómicas…” E há ainda mensagens muito preocupadas: “Maria em seguida passo a falar-te do problema da guerra, O Mãe vê que qualquer dia se assim continuámos se desencadeia uma guerra mundial!”
Bruno Cardoso Reis, historiador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, observa que estas mensagens e as observações de Lúcia traduzem essa “ligação umbilical, seminal, presente desde o princípio” no fenómeno de Fátima.
Ao contrário de Lúcia, dezenas de crentes que escrevem para Fátima referem concreta ou mais remotamente a Guerra Colonial: uma das primeiras cartas que aborda o tema, datada precisamente de 1961, quando se inicia a guerra em Angola, diz: “Minha Mãe, sabeis que ando aflita, tenho medo do que se passa à minha volta. A guerra está em Portugal. O mundo está perdido. (…) ajudai os soldados de Angola. Dá-lhe coragem em vós.” Cinco anos depois, em Dezembro de 1966, outra “mãe aflita” pede a Nossa Senhora “protecção para um filho que tem [em] Angola numa das regiões mais atacadas pelo terrorismo”.
Outras alusões políticas de Lúcia relacionam-se directamente com Oliveira Salazar e o regime do Estado Novo. No final da década de 1950, ela toma o partido do ditador contra o bispo do Porto, António Ferreira Gomes, obrigado a exilar-se por imposição de Salazar. Onze anos mais tarde, pouco antes da morte do ex-governante, nessa ocasião já moribundo, Lúcia defende o Papa Paulo VI contra o regime fascista português: os líderes dos movimentos de libertação que combatiam em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau tinham sido recebidos no Vaticano, o Governo português protestou e Lúcia disse que o Papa não estava a fazer mais do que a defender a paz.
O grande impacto internacional da audiência de Paulo VI a Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral (que liderou a conversa, em nome dos três) provocou uma enorme zanga no Governo português, já liderado por Marcello Caetano, recorda José Rui Teixeira.
Lúcia percebeu o desconforto de alguns católicos em relação a esta audiência concedida por Paulo VI, conta o biógrafo. Mas a vidente toma partido pelo Papa, defendendo a ideia de que ele e a Igreja deveriam estar do lado da paz. Lúcia pensa que a imprensa estrangeira enfatizara indevidamente este encontro, “considera o apelo de Paulo VI como um instrumento de paz e sente que a guerra não beneficia nenhuma das partes”, conta José Rui Teixeira.
Contra o bispo, por Salazar; contra o regime, pelo Papa

Paulo VI com o bispo Pereira Venâncio e a Irmã Lúcia, na visita do Papa em 13 de maio de 1967, que a ditadura de Salazar não viu com bons olhos. Foto de autor desconhecido, Domínio público, via Wikimedia Commons.
Uma década antes, após as eleições presidenciais de 1958, em que Humberto Delgado ameaçou a solidez de Salazar e do regime, surgiram vários episódios de contestação organizada de grupos católicos ao regime. Um dos que teve consequências mais importantes foi o da chamada “carta” – na realidade um pró-memória para um encontro que não chegou a acontecer entre o bispo e o ditador – de D. António Ferreira Gomes a Salazar. Por causa dela, Salazar forçou o bispo a um exílio de mais de uma década.
Em Outubro de 1958, no Vaticano, Angelo Giuseppe Roncalli é eleito Papa, com o nome de João XXIII. Antes ainda, a poucos dias das eleições presidenciais portuguesas, em Junho de 1958, “Lúcia preocupava-se com a situação social e política e rezava em desagravo pelas manifestações contra Deus, contra a Igreja e contra a Pátria”, nota o biógrafo. “Ela entende que o que está em jogo nas eleições é uma disputa maniqueísta entre bons e maus.” Nessa altura, com 25 anos de Estado Novo, “as relações entre a Igreja e o Estado condicionavam a consciência de que a acção política de Salazar era providencial, no âmbito de um sistema que a oposição acusava de clerical-fascista e que alguns observadores classificavam como um nacional-catolicismo”.
No conflito do chefe do Governo com o bispo, Lúcia coloca-se claramente do lado do regime e de Salazar contra o membro da hierarquia católica. Conta José Rui Teixeira que Lúcia procurou interceder pela pacificação das relações entre a Igreja e o Estado, que pareciam deteriorar-se na sequência desta situação. “Como tantos católicos portugueses, ela valorizava o contributo de Salazar para a estabilidade da Igreja e do país; e lamentava que houvesse quem não compreendesse esse contributo”, refere o biógrafo.
“Percebemos, neste contexto, o quanto os prelados portugueses eram subservientes em relação ao Estado e o quanto esta relação era mantida sob a ameaça da perda das condições definidas pela Concordata de 1940 e de outras benesses informais”, comenta ainda José Rui Teixeira. Aliás, no discurso da tomada de posse da nova Comissão Executiva da União Nacional (o partido único do regime), em 6 de Dezembro de 1958, Salazar ameaçara com a denúncia do tratado entre Portugal e o Vaticano, se os bispos não mantivessem a “frente nacional” de apoio ao Estado Novo. Estava em causa não só a Concordata como também “o regime de prestigioso carinho de que a [Igreja] tem sido cercada nos últimos trinta anos”, avisava o ditador.
A simpatia de Lúcia por Salazar vinha de trás e está bem documentada. Para ela, como para muitos portugueses na altura, era evidente que Oliveira Salazar era um garante da estabilidade social, depois do caos da Primeira República – a que, no caso de muitos católicos, se acrescentava a má memória do forte pendor anticlerical do regime instaurado em 1910. Salazar pacificara as relações com a Igreja, saneara as finanças públicas e asseguraria a neutralidade de Portugal durante a Segunda Grande Guerra.
Numa carta de 7 de Novembro de 1945, já estudada e divulgada por José Barreto, investigador do Instituto de Ciências Sociais, a vidente escrevia: “o bom Deus quer que os Senhores Bispos, nestes poucos dias que restam antes das eleições [legislativas de 18 de Novembro seguinte] falem ao povo por meio do Clero e da imprensa, dizendo que Salazar é a pessoa por Ele escolhida para continuar a governar a nossa Pátria; que a ele é que será concedida a luz e a graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade. (…) Depois é preciso dizer a Salazar que os víveres necessários ao sustento do povo não devem apodrecer nos celeiros, mas serem-lhe distribuídos.”
“É uma manifestação ingénua” aquilo que Lúcia diz na carta, considera José Barreto. “Pensar que os bispos deviam vir para o espaço público defender o regime era de quem não percebia que isso não aconteceria. Tal como dizer que os cereais não podiam apodrecer nos celeiros traduz uma visão muito distante da realidade…”
José Rui Teixeira concorda com esta perspectiva. Para o teólogo, a referida carta denuncia uma certa ingenuidade e não revela necessariamente uma posição política ou ideológica. “Em 1945, quantos portugueses não consideravam Salazar um político providencial? Basta termos em consideração que essa era uma questão dominante na retórica do regime.”
Mas não foi apenas nessa carta que Lúcia manifestou um olhar quase messiânico sobre o papel de Salazar, refere José Rui Teixeira. Por diversas ocasiões, mesmo na sequência da morte de Salazar, Lúcia revela estima e gratidão por aquilo que a sua figura representava.
No texto do “segredo”, Lúcia escrevia que o Papa atravessava uma “uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam varios tiros e setas”.
No leito de morte, em 2005, uma das últimas frases que ela proferiu foi “Sofro… ofereço [esse sofrimento] pelo Santo Padre.” Lúcia atravessara quase um século, entre ruínas.