
Isabel do Carmo na sessão evocativa da vigília de 1972: “Já havia uma enorme rede de cristãos que se opunham ao regime.” Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
“Foram os cristãos que decidiram fazer a vigília” da Capela do Rato, em Lisboa, garantiu a médica Isabel do Carmo, antiga dirigente das Brigadas Revolucionárias (BR), durante o debate que decorreu na última quarta-feira, 14, reunindo participantes e organizadores da iniciativa que, em 30-31 de Dezembro de 1972, abalou a ditadura do Estado Novo. No final da sessão, o Presidente da República entregou à comunidade da capela a Ordem da Liberdade. “Aqui houve um gesto pela liberdade e esse gesto merece ser assinalado”, justificou.
Isabel do Carmo fez questão de afirmar que “pertencia à direcção das Brigadas” e que por isso estava em condições de garantir que “foram os católicos que tomaram a iniciativa: já havia uma enorme rede de cristãos que se opunham ao regime”. Citando vários nomes que integravam essas redes, acrescentou que no grupo de católicos organizador da vigília havia algumas pessoas com contactos ou ligações às BR e que informaram este grupo político da preparação da vigília. O papel das Brigadas, acrescentou – e reafirmaria no dia seguinte, na Gulbenkian – foi ajudar à divulgação: ela própria passou pela capela para confirmar o início da iniciativa e levar a informação que seria depois transmitida para Argel, para a Rádio Voz da Liberdade; e as BR organizaram o rebentamento de um conjunto de petardos em Lisboa, para distribuir panfletos a anunciar a vigília e convocar quem quisesse para aparecer.
“Parece ser mais seguro concluir que as Brigadas desempenharam um papel instrumental, mas decisivo, nalgumas dimensões fulcrais do protesto, nomeadamente na distribuição de panfletos e de propaganda por vários pontos de Lisboa”, afirmou António Araújo, no dia seguinte, no debate que juntou diversos historiadores na Fundação Calouste Gulbenkian e que foi a última de três sessões sobre os 50 anos da vigília.
Tendo defendido uma tese académica sobre o caso da Capela do Rato, António Araújo acrescentou que essa propaganda se fez com recurso “à deflagração de dispositivos explosivos de baixa potência” que feriram duas crianças.
“O regime e os seus adeptos mais fervorosos não deixaram de aproveitar esta cumplicidade revolucionária para questionarem a pureza e o pacifismo dos propósitos da jornada do Rato”, afirmou o historiador. Para concluir ainda que “parece exagerado dizer-se, como pretenderam alguns dirigentes das Brigadas, que a vigília foi uma acção da sua autoria, por si planeada e organizada por inteiro, do princípio ao fim”.
“Uma decisão e um problema”

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de entregar a Ordem da Liberdade à Comunidade da Capela do Rato, através do padre António Martins, responsável da Capela. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
O que aconteceu, afinal, naqueles dias 30-31 de Dezembro, que ainda hoje aparenta merecer controvérsia? Francisco Cordovil, um dos organizadores (a par de Luís Moita e Nuno Teotónio Pereira, aos quais se juntaram depois Maria da Conceição Moita, Francisco e João Cordovil, António Matos Ferreira e José Galamba de Oliveira), referia, num depoimento enviado para ser lido no debate desta semana, que a vigília “foi uma acção colectiva baseada na cumplicidade ética e de propósitos”. No texto, que em grande parte coincide com um testemunho publicado no último número da Visão História, acrescentava: “O que mais uniu as pessoas foi o dever de discutir a questão da guerra colonial, como outras que desafiavam as nossas vidas e a nossa realização futura. A maior parte de nós tinha uma posição anti-colonial e fomos confluindo na busca de soluções para problemas como os da guerra em África que afligiam a sociedade portuguesa. Aspirávamos à democracia e à paz, concretizada no 25 de Abril.”
Foi essa vontade que se traduziu na organização daquilo que pretendia ser um debate sobre a paz: no fim da tarde de 30 de Dezembro de 1972, antes de terminar a missa presidida pelo então padre João Seabra Diniz, Maria da Conceição Moita aproximou-se do microfone para anunciar que em nome de um grupo de cristãos, vinha “comunicar uma decisão e pôr um problema a toda a comunidade”: um grupo iria permanecer ali, em jejum e em vigília durante dois dias, “a fim de provocar um ambiente de liberdade onde todos os que quiserem – cristãos ou não cristãos” – pudessem debater o problema da guerra colonial, “o ponto crucial da situação” que Portugal vivia.
Seabra Diniz foi apanhado desprevenido pela decisão, mas não se opôs a ela, deixando à liberdade de cada pessoa a decisão de ficar ou não na vigília. O padre Alberto Neto, responsável da capela retido em casa com uma pneumonia, foi informado logo a seguir e também não contestou a iniciativa. No dia seguinte, a equipa de padres divulgou um texto conjunto, no qual aceitava a interpelação dos organizadores: “Seja qual for a nossa posição diante deste gesto, ele tem um sentido interpelativo de tal densidade que não o podemos ignorar.”

A pauta de música do cântico “A paz é possível”, na exposição evocativa dos 50 anos da vigília pela paz na Capela do Rato. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
Durante as 24 horas em que ali permaneceram, cerca de 200-300 pessoas discutiram o tema da guerra, o silêncio da hierarquia católica perante ela, a exploração praticada por Portugal nas suas colónias africanas e a luta de autodeterminação dos povos desses territórios. Como pano de fundo, estava a mensagem do Papa Paulo VI para o Dia Mundial da Paz de 1973, sobre o tema “A Paz é Possível”. Uma das moções aprovadas foi escrita em papel higiénico, pelo hoje médico e antigo presidente da Câmara Municipal de Sines Manuel Coelho, quando a polícia cercou a Capela. O activista colocou o escrito debaixo de um tapete, para que outras pessoas a levassem para divulgar no exterior.
O clima de liberdade não duraria muito mais que 24 horas. Pouco antes das nove da noite de dia 31, as autoridades – incluindo os agentes da PIDE-DGS, a polícia política do regime – invadiram a capela, antecipando o fim previsto para o dia seguinte, 1 de Janeiro. As pessoas foram intimadas a sair, várias dezenas foram identificadas pela polícia e algumas foram mesmo levadas para a prisão de Caxias, onde estavam os presos políticos.
A “certidão de óbito” da ditadura
Nos dias seguintes, o sucedido na Capela da JEC [Juventude Escolar Católica], como também era conhecida, continuou a ter repercussões. Dois dos padres – António Janela e Armindo Garcia – foram celebrar missa no dia 1, apesar de a PIDE ter mandado fechar o espaço. Levados para a sede da polícia política, só de lá saíram quando o então patriarca, António Ribeiro, se apresentou pessoalmente no local. O Governo de Marcello Caetano demitiu os funcionários públicos que tinham participado na vigília, o Patriarcado de Lisboa emitiu uma nota sobre os acontecimentos, criticando o uso do espaço para a vigília, mas condenando a polícia por ter entrado no interior da capela. A notícia começou a ter eco na imprensa internacional. E no final de Fevereiro, na então Assembleia Nacional, o deputado Miller Guerra, da designada Ala Liberal, envolveu-se num debate acalorado com Cazal-Ribeiro, um dos membros da linha dura do regime. Miller Guerra demitiu-se de deputado dias depois. Com a demissão dos restantes deputados do grupo, incluindo Sá Carneiro, esse gesto pôs fim às expectativas que alguns sectores ainda alimentavam, de renovar o regime por dentro.
O próprio Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, quando se preparava para entregar a Ordem da Liberdade, recordou as dificuldades que, nas primeiras semanas de existência do jornal Expresso, tinha com os censores, que queriam cortar os textos do Diário das Sessões da então Assembleia Nacional, alusivos ao debate entre Miller Guerra e Cazal-Ribeiro.
Marcelo Rebelo de Sousa, que tinha sido da JEC e tinha tido reuniões na Capela, com o padre Alberto Neto, considera que o caso provocado pela vigília significou “um momento de certidão de óbito do marcelismo”. “Ele estava morto desde esse ano de 1972, que foi um ano decisivo, por incapacidade [do regime] de equacionar e resolver minimamente qualquer dos problemas fundamentais para o país: a guerra colonial, a democratização e a transformação económico-social”, afirmou.

Francisco Fanhais e Pepe (José António) Feu a cantar a Cantata da Paz, de Sophia de Mello Breyner, na sessão evocativa dos 50 anos da vigília pela paz na Capela do Rato (30-31 Dezembro 1972). Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
Mas não era só politicamente que o país estava bloqueado. Quinta-feira, na Gulbenkian, a historiadora Rita Almeida Carvalho apresentou uma série de indicadores que reflectiam “um país muito desigual”, com a população a diminuir, grandes taxas de analfabetismo ou de casas sem água, luz, banho ou sanita (29%), sem televisão (75%) ou equipamentos como máquina de lavar a roupa e frigorífico (92%). As mulheres eram relegadas para posições menores e tinham salários mais baixos do que os homens.
A par da realidade social, só 20% das pessoas eram eleitoras e, entre essas, os votantes eram poucos (62,5% nas eleições de 1969 e apenas 42,5% em 1973).
Neste quadro, a vigília “tem um efeito brutal por causa da ligação que havia entre uma parte da Igreja Católica e a ditadura”, considerou o Presidente Marcelo, na quarta-feira na Capela do Rato. Apesar de o país ser “maioritariamente católico, havia tensões” e a nota que o patriarca de Lisboa, António Ribeiro, publicou dia 10 de Janeiro, “denota isso mesmo: reconhecia que “o tema podia ser discutido, mas não podia ser discutido exactamente naqueles termos, pelo incómodo de contestar a hierarquia da Igreja e abrir o debate sobre o [fazê-lo] num lugar de culto da Igreja”.
“Falta um convicto pedido de perdão”

Exposição evocativa dos 50 anos da vigília pela paz na Capela do Rato (30-31 Dezembro 1972): “Os 50 anos do 25 de Abril de 1974 oferecem a ocasião propícia para um pedido público de perdão”, defende Jorge Wemans. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
Momentos antes, Jorge Wemans, que também esteve envolvido na vigília, afirmara que o caso da Capela do Rato “foi um enorme sobressalto” e “provocou um imenso salto em frente na tomada de consciência sobre a injustiça da Guerra Colonial e sobre o bloqueio desesperado em que então se encontrava o cada vez mais repressivo regime marcelista”. E considerou-o “um gesto participado por muitos que a história não nomeia”, traduzindo “uma larga rede” de muitas pessoas que “alimentavam a mesma convicção sobre a necessidade de pôr termo à guerra colonial e à ditadura e se dispunham a correr os riscos de lutarem por esse fim”.
Na realização da vigília confluíram organizações e jovens católicos que foram “tomando consciência de que a guerra e a ditadura eram incompatíveis com a sua fé, com a doutrina social da Igreja e com os ensinamentos do Concílio Vaticano II e dos Papas mais recentes”, afirmou o jornalista, que hoje integra a equipa editorial do 7MARGENS. Ela não resultou, portanto, de uma qualquer organização de conspiradores, mas dessas redes cuja deslocação ocorreu “apesar da quase totalidade da hierarquia e da esmagadora maioria dos altos responsáveis católicos manterem o seu apoio cordato e tranquilo a uma situação a todos os títulos condenável do ponto de vista dos valores evangélicos”.
Então estudante, Wemans chegou a ser detido pela polícia durante dez dias porque não tinha consigo o bilhete de identidade. Hoje, considera que a vigília foi decisiva sobretudo para um largo número de pessoas indecisas, “já descrentes na propaganda do regime, mas incapazes de com ele romperem por medo” ou outras razões. Foi um “momento-chave” da ruptura de muitos com a ditadura, “que deu à vigília a importância” que nenhum dos seus organizadores ou participantes teria sonhado que ela viesse a ter.
Jorge Wemans evocou ainda “todos aqueles mortos, feridos, traumatizados, abusados e deslocados, vítimas de uma guerra longa de 13 anos” – calcula-se que pelo menos mais de 70 mil jovens morreram na Guerra Colonial, entre portugueses, guineenses, angolanos e moçambicanos. “Para todos eles, por todos eles, e também por todos os outros que ousaram erguer a sua voz contra a guerra colonial”, falta ainda um “pedido convicto de perdão público por parte da Igreja Católica em Portugal”, afirmou. “Pelo que não fez. Pelo que não disse. Pelo medo que a tolheu. Pelas conveniências que aceitou. Pela sua falta de fé. Pelo silêncio a que tão generalizadamente se remeteu. Os 50 anos [do 25 de Abril de 1974] oferecem a ocasião propícia para tal acto público.”
As fissuras crescentes

Descerramento da placa evocativa dos 50 anos da vigília de 1972): Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura; Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa; Rebelo de Sousa, Presidente da República; à direita, o padre António Martins, capelão; à esquerda, Inácia Rezola, presidente da Comissão das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
A exigência de “autenticidade cristã” procurada por muitos católicos foi também destacada por António Matos Ferreira, historiador da Faculdade de Letras e do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica. Nesse processo, a questão da Guerra Colonial aparecia como central, não só para a sociedade e o regime, como também para um catolicismo que passava da “situação” para a “resistência como oposição”.
Intervindo no debate de quinta-feira na Gulbenkian, Matos Ferreira recordou que aos “inimigos” do catolicismo que vinham do século XIX e da Segunda Guerra Mundial – protestantismo, comunismo e ateísmo – juntavam-se agora novos factores de “confronto entre a Igreja e o mundo” em torno do “secularismo, laicismo e indiferença”. Mas o catolicismo “persistia fortemente antiliberal e não democrático”.
É neste quadro que surgem “múltiplas fissuras entre os católicos e, destes, com a instituição eclesiástica e política”, considerou António Matos Ferreira.
Sendo a guerra um tema central, João Miguel Almeida, historiador e autor do livro A Oposição Católica ao Estado Novo, referiu-se, também no debate de quinta-feira, 15, na Gulbenkian, ao modo “como a estada no território metropolitano de padres africanos e a chegada à metrópole de notícias das dinâmicas missionárias em África levou à mobilização de católicos contra a ditadura e a guerra colonial, motivando-os para um compromisso com a paz de que a vigília da capela do Rato foi a expressão mais simbólica e dramática”.
No final da década de 1950, já vários padres católicos angolanos estavam na mira da PIDE, suspeitos de apoiarem os movimentos independentistas. Nove deles foram presos a partir de 1960 e mandados para Portugal, sob residência vigiada. Joaquim Pinto de Andrade, ligado ao MPLA, foi um deles, tendo conhecido Nuno Teotónio Pereira, um dos organizadores da vigília do Rato. Em Moçambique, o bispo da Beira, Sebastião Soares de Resende, traduzia nas suas posições “a passagem de um paradigma missionário que associa a evangelização à ‘portugalização’ e ‘missão civilizadora’ de Portugal, para um paradigma de inspiração conciliar segundo o qual a evangelização implicava um enraizamento na sociedade e tradições africanas”.
O impacto de África nas lutas de oposição em Portugal

Monumento às vítimas do massacre de Wiriamu, em Moçambique, protagonizado pelo exército português em 1971, durante a Guerra Colonial. Foto: Direitos reservados
Em Moçambique, acumularam-se factos: os Padres Brancos foram expulsos em 1971; no mesmo ano, tropas portugueses e agentes da PIDE-DGS executaram vários massacres em Mucumbura, Catacha, Capinga, Matahanda e António, todos eles documentados por missionários; no início de 1972, dois “padres de Burgos”, do nome da congregação que integravam, foram expulsos por denunciarem o massacre de Mucumbura; dez dias depois, são presos mais dois padres portugueses, Joaquim Teles de Sampaio e Fernando Marques Mendes (de quem o 7MARGENS já publicou vários testemunhos).
Sampaio e Mendes foram mandados para a prisão da Machava, onde estavam detidos 31 membros da Igreja Presbiteriana de Moçambique, entre os quais o pastor Zedequias Manganhela, que acabaria morto na prisão – com a PIDE a dizer que se tinha suicidado e vários testemunhos a atestar marcas de tortura. Finalmente, em Wiriamu, registou-se em Dezembro de 1972, poucos dias antes da vigília no Rato, um novo massacre, que só seria denunciado publicamente meses depois, como João Miguel Almeida recordou no 7MARGENS esta semana.
Vista muitas vezes como “uma espécie de ‘exportação’ do catolicismo europeu, e no caso do colonialismo português, do catolicismo português, para espaços coloniais em África”, a história da missionação também pode ser vista pelo impacto que o catolicismo africano e as dinâmicas missionárias católicas em África tiveram “na consciência e na intervenção pública dos católicos da metrópole”, referiu João Miguel Almeida.
“A vigília de oração pela paz, aqui celebrada [na Capela do Rato], fez parte de um movimento mais amplo, o despertar da consciência católica para a urgência da paz, do fim da guerra colonial e do caminho para a democracia”, acrescentaria o padre António Martins, actual responsável da Capela, na sessão de quarta-feira. “Nesse movimento, estiveram implicados leigos, padres e alguns bispos, no Porto e em Lisboa, de Portugal a Moçambique.
Em síntese, resumiu Matos Ferreira, o caso da Capela do Rato foi “útil à Igreja” na hora de ser preciso apresentar católicos que se opuseram à ditadura; mas as questões que esses crentes colocavam continuam a não ser assumidas, em grande parte, pelo catolicismo contemporâneo.
(O autor deste texto esteve a moderar o debate na Capela do Rato, quarta-feira; sobre a vigília de há 50 anos, incluindo as homilias do padre Alberto Neto, pode ver-se o livro Terra da Alegria e da Justiça, que acaba de ser publicado, recolhendo textos e testemunhos sobre o antigo capelão do Rato; no próximo dia 30, às 19h00, a comunidade da Capela do Rato promove uma vigília pela paz evocando também a vigília de há 50 anos.)