É uma história conhecida de poucos: em 1971, houve um segundo capelão expulso do exército, depois do padre Mário de Oliveira. Além do então padre Arsénio Puim, que esteve um ano na Guiné, esta investigação permitiu ainda descobrir que pelo menos outros onze padres católicos se opuseram à Guerra Colonial e não quiseram ser capelães. Este texto foi publicado inicialmente na revista E do Expresso, de dia 12 de Maio de 2023. Em relação a essa versão inicial, foram corrigidos apenas dois pormenores, a partir de informações de Luís Graça.

Arsénio Puim, capelão militar na Guiné entre Maio de 1970 e Maio de 1971, foi o segundo a ser expulso do Exército por se opor à Guerra Colonial. Foto: Direitos reservados.
Pode uma guerra ter um fim? Arsénio Chaves Puim, padre e capelão militar na Guiné, registou no seu diário, no dia de Ano Novo de 1971, a história de dois homens e um par de sapatos. “A guerra não é coisa para ter fim. Qual? Até se lhe acharia a falta, como aquele homem que, dormindo num andar inferior, estava habituado a ouvir o vizinho descalçar os sapatos à noite. Um dia este só descalçou um e o homem não adormeceu.”
Para Arsénio Puim, a guerra – qualquer uma e a Guerra Colonial, mais ainda – parecia não ter fim. Mas nem deveria, aliás, ter tido início. Quase um ano antes, em Fevereiro de 1970, no Porto, já considerava que o compromisso com a instituição militar não jogava com a sua condição de padre: “Como ministro de Cristo, que veio dar testemunho e morrer por todos, o sacerdote não pode (sem falsear a sua realidade, manietar a palavra de Deus e dar um anti-testemunho de Cristo) estar comprometido, enquanto tal, com instituições de fim especificamente militar”, pensou ele para o seu diário.
Foi essa sua oposição à guerra que o levou a questionar a política do regime do Estado Novo e a apoiar as ideias da autodeterminação e da independência dos povos contra os quais os militares portugueses tinham sido mandados combater. Por causa disso, foi expulso do Exército e de capelão. É o segundo caso de um padre expulso de capelão militar – o primeiro e único conhecido até hoje era o do padre Mário de Oliveira (ou “Mário da Lixa”, por ter sido pároco de Macieira da Lixa e ali ter vivido até morrer), forçado a deixar a Guiné ao fim de quatro meses, em 1968, e que morreu em Fevereiro do ano passado.
Arsénio nasceu a 8 de Maio de 1936 na Calheta, freguesia de Santo Espírito (Santa Maria, Açores), onde viveu com os pais, as quatro irmãs e outros quatro irmãos. Foi para o Seminário de Angra e foi ordenado em 1960. Depois de expulso de capelão, ainda exerceu como padre durante alguns anos, até decidir sair. Casou com Maria Leonor Bicudo em 1979, tornou-se enfermeiro, foi presidente da Câmara de Vila do Porto (Santa Maria, Açores), re-fundou e dirigiu o jornal “O Baluarte”, empenhou-se na promoção cultural da sua ilha, publicou vários livros. Ainda antes do 25 de Abril, tinha feito parte do Movimento Democrático Português (MDP) nos Açores, que reunia boa parte da oposição à ditadura do Estado Novo. Nessa qualidade assinou a “Declaração de Ponta de Delgada” da candidatura de Melo Antunes pela Oposição Democrática, em 1969, às eleições que o regime promovera como suposto sinal de abertura.

Além daqueles dois padres expulsos, houve vários outros que se opuseram a fazer o serviço militar enquanto capelão. Na investigação para este trabalho, e cruzando diferentes fontes, foi possível recensear pelo menos outros onze padres que não quiseram estar ao serviço da instituição militar durante a Guerra Colonial ou contestaram o serviço da capelania católica: José Maria Pacheco Gonçalves, José Alves Rodrigues, Domingos Castro e Sá, Serafim Ferreira de Ascensão, Manuel Joaquim Ribeiro, António de Sousa Alves, José Domingos Moreira, José Lopes Baptista, Joaquim Sampaio Ribeiro e Carlos Borges de Pinho (todos da diocese do Porto) e José Carlos Pinto Matos, da diocese de Viseu. Mas vários deles recordam que outros colegas se manifestavam também contra a guerra, embora acabassem por aceitar, por vezes contrariados, ser incorporados como capelães militares.
Houve um episódio que elevou a questão a um nível hierárquico e doutrinal: no dia 1 de Janeiro de 1972, na homilia do Dia Mundial da Paz, sobre “o ministério sacerdotal e a paz”, o então bispo do Porto, António Ferreira Gomes, observava: “Causa-nos por vezes horror ver como esses capelães mostram tão evidentes virtudes ‘militares’”, que impressionam e assustam. A afirmação provocou reacções iradas do bispo castrense, António dos Reis Rodrigues. Numa anotação do próprio Ferreira Gomes incluída no livro Homilias do Dia da Paz, editado pela Fundação Spes, o antigo bispo do Porto dava conta da divergência do bispo castrense – que nem sequer responderia às cartas de Ferreira Gomes, como o próprio também conta nessa nota.
Dois anos depois – e um ano após a vigília de católicos contra a Guerra Colonial na Capela do Rato, em Lisboa –, um grupo de padres do Porto preparou uma homilia conjunta, que seria lida nas diferentes missas em que todos eles participaram. No texto, a guerra era fortemente posta em causa, recorda o padre José Maria Pacheco Gonçalves, ele próprio um dos que vivia, nessa altura, um conflito com a hierarquia, por se recusar a ser capelão.
A par das conversas com oficiais e soldados, as homilias eram outro dos momentos em que o então padre Arsénio manifestava a sua dissensão. “Falava desses temas nas missas se vinha a propósito, por exemplo, quando o evangelho referia o amor aos inimigos”, recorda hoje, 52 anos depois dos acontecimentos e da sua expulsão de Bambadinca – localidade próxima do rio Geba e a três horas de carro (120 quilómetros) para leste de Bissau. “Falava, não de forma imprudente, mas dizia o que pensava.”
Em 21 de Fevereiro de 1971, o antigo capelão foi a Mansambo, onde estava uma das companhias do batalhão. Tratava-se de acompanhar os militares na reedição, ordenada pelo comandante militar da Guiné, António de Spínola, de uma operação que não tinha corrido bem. Registou no diário: “De manhã, celebrei missa. Larga frequência dos soldados. O Evangelho fala de amor ao inimigo, da misericórdia para com os outros (…). Mas que podia eu dizer de amor e perdão a estes rapazes horas antes da sua partida para uma operação de destruição e morte, contra a verdade e a razão? Não vão defender nada, vão matar para calar, pondo também em risco a sua vida. (…) Uma chusma de matadores inconscientes.”
Querido Diário
Nesta página, como ao longo dos três volumes dos diários – cadernos pouco menores que o A5, dois deles com “O meu diário” escrito na capa, e todos com um fecho de cadeado – há vários sublinhados dos censores ou militares que os leram, depois de apreendidos. O autor só os recuperaria depois do 25 de Abril de 1974, depois de um primeiro pedido ter sido recusado, em Janeiro de 1972, pelo Ministro do Exército.
Algumas das homilias mais fortes de Puim contra a guerra foram entre Abril e Maio de 1971. Um grupo de pessoas – incluindo sete mulheres e algumas crianças – tinha sido detido em Madina, a norte do rio Geba. A memória é de Luís Graça, que viria a ser professor da Escola Nacional de Saúde Pública, colocado na Companhia de Caçadores CCaç12, e que hoje é o principal dinamizador de um blogue que recolhe memórias e testemunhos desse tempo: “Foi a sua discreta mas firme intervenção a favor de um grupo de prisioneiros, população civil, incluindo velhos, mulheres e crianças, que viviam sob controlo do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] (em condições miseráveis, diga-se em abono da verdade, esfarrapados, doentes, subnutridos), que lhe terá valido a ira de César contra os desígnios de Deus.”
Puim, conta ainda o antigo militar, “inteirado da situação de injustiça, condoeu-se daquela gente e começou a visitá-los, levava leite às crianças e protestou”, até porque era alguém “que não se calava, como não se calou noutras situações que feriam a sua consciência de cristão, homem e português”. E nessa homilia de Abril abordou o tema, “doloroso para ele”, recorda Luís Graça.
“Eu falava, com alguma clareza, do evangelho apresentado na missa”, conta agora Arsénio Puim, confirmando: como os militares não tinham apanhado guerrilheiros, prenderam mulheres, crianças, velhos… Entre os presos, havia um bebé com apenas uma semana, recorda Arsénio Puim. Nesse dia, na missa, o excerto do evangelho – fixado previamente para toda a Igreja, como mandam as regras litúrgicas – era o trecho em que Jesus exorta: “Amai-vos uns aos outros.” “Fiz a homilia a partir dessa frase”, conta.

“As pessoas ficaram ali vários dias, presas numa cerca ao ar livre” e da tabanca (aldeia) vizinha é que lhes levavam comida. “Eu também levava.” No diário, Puim registou as “condições miseráveis” em que o grupo estava, dormindo no chão e sem poder sair. “Ao fim de alguns dias, fui ter com o comandante, dizer-lhe que tinha de os mandar embora.” O sipaio traduzia-lhe a conversa das mulheres: estavam muito gratas pelo apoio que ele lhes dava, pela comida que lhes levava. A libertação, no dia seguinte ao pedido feito ao comandante, aumentou o sentimento e, antes de partirem, elas colocaram-se em fila para lhe agradecer, prometendo rezar pelo padre aos seus irãs, as divindades da sua etnia.
Meses antes, em Outubro de 1970, outro facto chocara Arsénio Puim: também em Madina, a Companhia de Comandos Africanos tinha feito uma operação. “Parece que os turras tiveram várias baixas”, escreveu o capelão no dia 9 de Outubro. “Uma pelo menos é bem confirmada (…), pois a cabeça dele foi trazida por um furriel e passeada por Bambadinca. (…) ele pertencia a um exército que se diz civilizado. (…) Para [alguns] isto foi mais um ronco [sucesso].”
A história acabou com uma denúncia – não sabe de quem: poderia ter sido alguém que o ouvira em alguma missa ou outra pessoa que o tivesse escutado numa conversa menos coincidente com as opiniões do regime. Certo é que os comandantes do quartel lhe apareceram no quarto, obedecendo a ordens superiores, “de Bissau”, para revistar tudo. Começaram por exigir os diários: “Tinham ordem judicial, estavam informados de que eu os escrevia. Deram-me duas ou três horas para me preparar, iria depois uma avioneta buscar-me.” Abílio Machado, militar que presenciou a cena, contou, no blogue de Luís Graça: “Fui ver. Encontro o Puim sentado na cama, nervoso mas determinado, olhando uns sujeitos que impiedosamente lhe desmantelavam o quarto descarnado, de asceta, à cata de… Abriam, fechavam gavetas, apressados…”
Foi isto no dia 17 de Maio de 1971 – Puim fizera 35 anos dia 8 e estava a dias de completar, a 25, um ano na Guiné. Maio, maduro mês na sua vida, como se vê, de importantes colheitas. No seu processo militar, que hoje se pode consultar no Arquivo do Exército, consta apenas, nas “Ocorrências extraordinárias: Embarcou em Bissau de regresso à Metrópole, por não convir ao serviço do CTIG [Comando Territorial Independente da Guiné], em 21 de Maio, desde quando deixa de contar 100% de aumento no tempo de serviço. Desembarcou em Lisboa em 22. Disponibilidade desde 19Maio71.”
No arquivo da PIDE-DGS encontra-se o único documento que refere as causas da detenção: Puim “condenava a actividade das Nossas Tropas em defesa da integridade nacional” e “em relatórios que foram descobertos no seu quarto, descrevia-as, em pormenor, qualificando-as de crimes, torturas e massacres”.

Mês e meio antes da expulsão, Puim registara no seu diário a mais longa reflexão em que sistematizava para si mesmo as razões da sua oposição à guerra. Tem a data de 1 de Abril: “Dediquei-me, portanto, a esquematizar algumas ideias, para que eu saiba melhor por que discordo da guerra do Ultramar” e por que escrevera ao bispo castrense dias antes a pedir para deixar de ser capelão. São 22 razões, em outras tantas alíneas: é uma guerra “falha nos seus fundamentos e condenável nos seus processos e consequências”; a autodeterminação é “um direito e um valor intrínseco”, reconhecida como tal de forma “bem clara” também pelos documentos da “Igreja conciliar”; a população que lutava por esse objectivo habitava “de direito e de facto” aquela terra; a ideia do Estado Novo de uma pátria “multirracial” é “anti-humana, retrógrada, sentimental e dúbia”; o colonialismo foi uma etapa da história, já ultrapassada pela “negritude” e que outras potências coloniais tinham compreendido.
Puim indicava ainda: muitos portugueses estavam contra a guerra mas não tinham liberdade para o dizer; entre os militares não havia qualquer espírito de defesa do que o regime via como “parcelas sagradas do território nacional”; a guerra agravava o sofrimento dos guineenses; a ideia da independência tinha uma grande adesão das populações; os dirigentes políticos dos movimentos de libertação tinham proposto a negociação antes de recorrer à luta armada, mas a ditadura portuguesa respondeu com “repressão”.
“Na nossa guerra”, acrescentava o capelão, registavam-se “acções abusivas e degradantes”, “brutalmente arrasadoras” e recorrendo “inclusive ao napalm”. E tudo isto agravara o fosso com os guinéus.
Pelo contrário, a autodeterminação das colónias era uma aspiração justa, considerava o padre Puim. “Este povo deve caminhar para a maioridade e independência, que são valores em si, tanto dos indivíduos como das sociedades. (…) este povo (…) luta por uma causa justa e quem guerreia essa luta (…) pratica uma guerra injusta”, escreveu ele no diário, em 21 de Setembro de 1970. Um movimento africano, o da negritude, “bem justificado e irreversível”, tinha acrescentado, ainda em Viana do Castelo, em 9 de Maio, antes de embarcar para a Guiné.
Nessas ideias, Puim sentia-se em casa quando se deslocava a Bafatá, para descomprimir em casa dos missionários italianos do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras (PIME). Ali conheceu Lino Bicari, um dos padres que depois abandonou o ministério e se passou para o PAIGC, tendo tido responsabilidades nas áreas da saúde e da educação, primeiro nas zonas “libertadas” pelo partido ainda em 1973 e, depois, na Guiné-Bissau independente, até 1987, quando deixou a militância política. Desde 1990, Bicari trabalhou com organizações não-governamentais entre Portugal, Angola e Moçambique, residindo hoje no Alvito, Alentejo, onde se estabeleceu definitivamente em 2005.
“Fiquei muito amigo do Lino”, recorda Arsénio Puim. “Quando estava farto da guerra, ia ter a casa desses missionários e ficava lá dois ou três dias a refrescar as ideias.” Ali, noutras ocasiões, tinha longas conversas acerca da guerra, da Igreja e do mundo, sobretudo com Lino Bicari. Ali tomou conhecimento de documentos importantes, como uma carta que 700 católicos em França tinham dirigido ao Governo português pela tensão que este criara com o Vaticano, por causa da audiência do Papa Paulo VI aos dirigentes dos movimentos de libertação das então colónias – Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Agostinho Neto (Angola) e Marcelino dos Santos (Moçambique).
Bicari dirigia um internato, recorda o antigo missionário, onde alguns alunos passavam quase directamente para a guerrilha. De tal modo que a escola recebeu ordens de fecho, conseguindo o missionário transformá-la no primeiro seminário católico da Guiné.
“Havia outros capelães com quem falava, mas era com Puim que estava mais abertamente”, recorda Lino Bicari que já se reencontrou com Puim nos Açores e no Alvito. Bicari saiu da Guiné para uma reunião em Roma poucos dias antes da expulsão de Puim. Só voltaria à Guiné em 1973, já para trabalhar com o PAIGC. Para trás, mesmo antes de Puim chegar à Guiné, já tinha havido três missionários italianos expulsos – Antonio Grillo, Mario Faccioli e Salvatore Camilleri.
Caixões empilhados, 60 funerais

No diário, Arsénio Puim revela desde o início, em Fevereiro de 1970, ainda no Porto, Gaia e Viana, as suas dúvidas sobre ser capelão numa guerra, bem como a sua oposição ao conflito em que a ditadura de Salazar e Caetano envolvera os jovens portugueses. “Eu não escolhi vir para capelão militar. Fui mandado (sem qualquer palavra de consulta ou informação do meu prelado)” para uma situação que sentia como uma “acomodação da Igreja e distorção do Evangelho e do sacerdócio”, vestindo uma “farda antievangélica”.
Em Viana e em Gaia, onde esteve em formação militar durante trê meses, Arsénio Puim fez mais de 60 funerais de militares mortos. “Tem imagens terríveis como um quarto no quartel da Serra do Pilar, com caixões empilhados até ao tecto e a tristeza das famílias”, conta o filho mais novo, Miguel, economista que trabalha em Lisboa. “Um terrível quadro emocional para alguém que ia ser enviado para a Guiné em breve”
Logo de início, Puim não quis usar a G3. O episódio é contado pelo próprio também no diário, quando chega o dia 29 de Maio de 1970, já na Guiné: “Recusei-me a aceitar a G3, depois de apresentar os motivos, não muito compreendidos, ao comandante. Uma questão de princípios, de missão específica do capelão e de testemunho antiguerra. – Você é Testemunha de Jeová? – disse-me o comandante. – Não, sou padre católico.” Uma “sensação no Batalhão.”
Ao longo desses doze meses, Puim escreverá várias vezes ter sido forçado a aceitar aquela missão. Na reflexão já citada de 1 de Abril, reafirma que se considera “por natureza pacifista”. E o curso de capelães não respondia às dúvidas: “Vi como preocupavam as consciências de um grupo de cursistas certos problemas de fundo que nunca mereceram mais que uma resposta lateral e pré-determinada da parte dos responsáveis eclesiásticos.” Todas essas eram razões para não querer “ser mais capelão militar nesta guerra”, como escrevera dias antes ao vigário-geral castrense, o bispo António dos Reis Rodrigues, pedindo para sair. Apesar disso, sentia-se bem a acompanhar aqueles rapazes: “Terei pena de abandonar os homens com quem vim e de quem não tenho razões pessoais de queixa.”
Queixas, tinha-as, sim, contra a orientação seguida pelo bispo responsável dos capelães, Reis Rodrigues. O bispo marcara pela positiva gerações de intelectuais católicos universitários – João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Nuno Bragança… Mas, sobretudo nos últimos anos do Estado Novo, quando assumiu o cargo castrense, as opiniões desfavoráveis sobre ele multiplicaram-se.
Arsénio Puim cruzara-se com Reis Rodrigues em 26 de Fevereiro de 1970, no Regimento de Artilharia Pesada (RAP) 2, em Gaia, antes de embarcar para a Guiné. Não gostou de ver o bispo chegar num carro com motorista, sentado atrás e não lhe beijou o anel, como era da praxe. Pouco depois, um outro capelão segredou-lhe: “Arranje uma batina e apareça amanhã com ela. O D. António ficou danado”, porque Puim tinha aparecido apenas com fato e cabeção eclesiástico. Não obedeceu: “Será grande questão aparecer de fato eclesiástico quando é canónico e meritório andar a celebrar de farda militar?”, perguntou ele ao seu diário, no dia seguinte.
Carlos Borges de Pinho, um dos capelães oriundos do Porto que esteve na Guiné entre Março e Setembro de 1973, conta agora que se identificava com a posição do bispo do Porto, Ferreira Gomes. “Mas a pastoral católica no exército obedecia a uma cartilha de patriotismo. O bispo Reis Rodrigues dizia no curso que estávamos a defender os nossos e nós contestávamos essas ideias com toda a frontalidade.” Na homilia final do terceiro curso de capelães, em Outubro de 1969, o bispo Reis Rodrigues defendia a ideia de que os capelães eram um sinal da liberdade religiosa e da neutralidade do Estado, que desse modo permitia que os crentes pudessem ser acompanhados numa fase difícil das suas vidas. E acrescentava: “O capelão aparece junto do bispo castrense, nas Forças Armadas, integrado numa disciplina militar, disciplina que ele tem que respeitar e de que deve ser o primeiro exemplo.”
Era contra esta ideia que vários padres se insurgiam. No final do seu curso, Domingos Castro de Sá, José Domingos Moreira e José Lopes Baptista afirmaram-se objectores de consciência, deixando o bispo de Madarsuma (o título oficial de Reis Rodrigues) muito aborrecido: “Se houver mais casos como estes, reprovo-os e não avançam”, disse-lhes ele, segundo conta o padre Domingos Sá. José Maria Pacheco Gonçalves recorda que entre as reacções contra as posições do bispo do Porto, estavam “sobretudo os meios militares e o próprio bispo das Forças Armadas, Reis Rodrigues”. Borges de Pinho, hoje com 77 anos, deixou a Guiné porque queria sair do ministério de padre; Domingos de Sá é hoje pároco, com 74 anos, em Vila Nova de Telha (Maia); Pacheco Gonçalves, 78 anos, colabora na paróquia de Canidelo (Gaia).

António de Sousa Alves passou, no final do curso, à disponibilidade por falta de “adaptação”, alegaram os superiores. “Caminho para arbitrariedades, senhor bispo”, escreveu o agora pároco de Paço de Sousa, 77 anos, numa carta dirigida ao bispo, que se encontra no arquivo do Ordinariato Castrense, guardado no Patriarcado de Lisboa. Na carta, referia que tinha sido o bispo a não lhe dar aproveitamento, segundo lhe confidenciara outro responsável da capelania.
José Alves Rodrigues escreveu a Reis Rodrigues a dizer que pretendia ir para Taizé (a pequena comunidade monástica em França) ajudar a preparar o Concílio de Jovens, que se iria realizar em 1974. Não sendo conhecida a resposta do bispo castrense (as regras do Arquivo do Patriarcado não permitem aceder a essas cartas), Pacheco Gonçalves confirma que o seu colega conseguiu esse intento. Serafim Ferreira de Ascensão comunicou também a “decisão de não” aceitar ser capelão. E ao mesmo bispo Reis Rodrigues escreveu Pacheco Gonçalves, em 12 de Julho de 1973, dizendo que duvidava que, enquanto capelão, pudesse ter “uma livre e plena actuação como padre”. E avisava: “Em último caso, e por razões suficientemente fortes e objectivas, pode surgir como imperativo de consciência mesmo uma recusa perante a insistência superior.” Acabaria mesmo por não comparecer no curso de capelães e assim ser considerado desertor, preso em Janeiro de 1974 e ser colocado depois como ajudante de dentista no Hospital Militar, sem qualquer graduação e sem que o tempo de serviço lhe fosse contado. Nunca pediu a revisão da situação, continua registado como desertor…
O padre António Gonçalves Simões, que fez parte do quadro de capelães, publicou vários livros nos quais regista todos os nomes dos que fizeram o curso para a capelania. Num deles, cita José Pinto de Matos, de Viseu, do curso de Outubro de 1969. “Recebi comunicação para me apresentar dois ou três dias depois nas Caldas da Rainha. Não fui”, conta Pinto de Matos. A GNR foi buscá-lo e conduziu-o ao serviço da capelania, em Lisboa. “Disse ao graduado capelão que me recebeu que iria, mas faria como o padre Mário de Oliveira.” Deixaram-no ir, mas, por causa disso, foi proibido uma vez de viajar a França. “Nas conversas, partilhávamos muito as ideias do Concílio Vaticano II e defendíamos a liberdade e independência para as colónias”, conta.
Numa situação como a da Guerra Colonial, os capelães corporizavam uma “aprovação moral e certa sacralização” do conflito, resumia Puim na sua reflexão de Abril de 1971. No Natal anterior, notando o contraste entre o que a Igreja pretendia transmitir e a realidade vivida, escrevia, a propósito da mensagem do general Spínola: “É um contrassenso. Exprime ideias de paz, amor e de afastamento de ódio neste dia de Natal.” E em 21 de Setembro de 1970, recordava que dias antes encontrara um grupo a rezar o terço e a pedir “pela conversão dos turras”, a designação dada aos “terroristas” da guerrilha. “O que será isto? Conversão a quê? Ao evangelho português segundo Salazar?”, perguntava, em mais umas linhas sublinhadas pelos leitores/censores do seu diário.
À espera de ouvir o segundo sapato

Quando recebeu ordem de expulsão, Arsénio Puim sentiu-se “revoltado” e “indignado”. Em Bissau, o militar diante de quem foi levado tratou-o de forma “paternalista”, admite. Casado com Leonor Bicudo, que conheceu no curso de enfermagem que fez depois do regresso forçado, com ela teve dois filhos e tem hoje três netos. A esposa e os filhos definem Arsénio como o anti-herói, homem humilde, e nisso coincidem todos os testemunhos dos antigos militares da Guiné nos depoimentos publicados no blogue de Luís Graça, já citado. “Uma das coisas que me fascinou é que ele era um homem bom, bem formado e humilde”, dizia Leonor no final da última semana.
Em Bissau, o ainda padre Arsénio ficou quatro dias no “Vaticano”, a forma como era conhecida a casa do capelão-chefe da Guiné, padre Pedro Gamboa, oriundo do Patriarcado de Lisboa, nascido em Castelo Novo (Fundão). Com ele e os restantes capelães na Guiné estivera Puim reunido em Março, num encontro em Bolama. Perante as objecções de “alguns capelães sobre a pactuação do capelão militar e da Igreja com a guerra”, Gamboa refutou de forma “agreste e como se a dúvida fosse um ataque pessoal”. Os capelães manifestavam “descontentamento, dúvida, desejo de discussão aberta” sobre a questão de saber se a guerra deveria continuar e se a missão da Igreja era “conformar-se, contornar as situações e não afirmar e testemunhar a verdade” e o Evangelho. Era o segundo sapato que não se ouvia, colocando um fim à guerra e deixando as pessoas adormecer tranquilas.
Os “mais discordantes da reunião éramos os do Porto e os dos Açores”, recorda agora Arsénio Puim. No final do encontro, perante “novas dúvidas”, Gamboa disse aos colegas subordinados que “se alguém lhe apresentasse seriamente o problema de consciência de ser capelão militar, ele lhe poria a guia de marcha nas mãos e o mandaria para Lisboa”. Foi isso que levou Puim a escrever ao bispo Reis Rodrigues, manifestando o seu profundo “desenquadramento e frustração” com a missão de capelão. “Não tenho índole” para estar no exército, sentia uma “duplicidade interior” que não lhe agradava – confessava. E discordava da guerra que Portugal conduzia em África. Tudo somado, a decisão de sair era “inteiramente” o seu “desejo”.
No diário, os acontecimentos impediram-no de registar o que aconteceu – a carta foi enviada ao bispo no final de Março –, mas hoje Puim recorda que nunca percebeu se a carta terá seguido para Lisboa ou não. O padre Gamboa ainda lhe disse que não valia a pena sair já, porque faltava pouco tempo para o regresso. Facto é que, menos de dois meses depois de a carta ter seguido, o quarto de Puim era invadido e ele recebia guia de marcha – mas para sair do exército. Muitas das reflexões que fazia para si mesmo no diário pessoal serviriam para o incriminar.
“O meu grande problema é a guerra, continua a ser a guerra, ainda mais quando não tem nenhuma motivação justa”, insiste Arsénio Puim, numa passagem por Lisboa, 52 anos depois do seu regresso forçado e antecipado a Santa Maria. O antigo capelão continua à espera de ouvir o segundo sapato no andar de cima.