Salgado e doce na criação musical e litúrgica do LabOratório
Reportagem

Mal se chega, ouve-se um canto… Foto © Guilherme Lopes/7MARGENS
Mal se chega, ouve-se um canto. Nesta manhã fresca, depois de atravessar o corredor, o som leva-nos à igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa. O canto, na sonoridade das vozes, traz-nos uma construção melódica, transporta-nos para algo novo, sem deixar de ser familiar.
Estão cerca de vinte pessoas na igreja: professores, organizadores e participantes no LabOratório rezam a oração de laudes, ou oração de manhã. Meditam, cantam fazem silêncio. Combinada com a arquitetura despojada da igreja, a música fala da relação entre a tradição e a inovação, as novas linguagens que não esquecem o passado, antes dialogam com ele. Recriar essa ligação entre passado e presente na música é uma das ideias que o LabOratório procura alcançar. A iniciativa dos padres jesuítas, que decorreu entre 1 e 8 de setembro, pretende contribuir para criar novas composições musicais de qualidade para o uso litúrgico.
Durante os momentos de oração, fé e música ligam-se e dialogam também com o sagrado. Incluindo momentos a cappella, em que a voz cria um ambiente de fundo. A forma como se dispõem os cantores no altar, face a face, permite criar um efeito de reverberação e uma harmonia pouco habitual.
Depois da oração, o padre Rui Miguel Fernandes explica as atividades e dá o mote do dia: aulas, seminários e conferências, que procuram não só alargar o conhecimento musical a quem já o tem, mas também abranger os que não têm experiência. “Vamos manter este espírito de contenção”, pede Rui Fernandes. E, com um largo sorriso: “De contenção das nossas forças, para fazermos algo fantástico.”

Novas inspirações
Esta é a segunda edição do LabOratório, depois da estreia há dois anos. A escolha desta igreja conventual não foi feita casual, mesmo se pode ser um lugar improvável para a criação musical. “A igreja é mesmo assim. Nós só estamos a usá-la da forma como ela foi desenhada”, diz Rui Fernandes, jesuíta, ordenado padre há pouco mais de um ano. “Quase não precisamos de colunas, o som como que se reverbera no espaço.”
O LabOratório divide-se em dois grandes grupos: o Labprático, para as técnicas vocal, de improvisação, para maestros, de composição e incorporação do texto na música; e o Labteórico, com uma formação mais pedagógica, que inclui o Labforma, para quem tem pouca ou nenhuma formação musical, o Labexplora, para harmonizar canto e poesia litúrgica, e o Labconjunto, para ensaiar e gravar pautas frescas.
“Todas as pessoas rezam de maneiras diferentes e, por isso, todas se adaptam de formas diferentes, na sua oração”, diz Mariana Baptista, uma das responsáveis do LabOratório. “Desta forma, além das pessoas que usam a sua voz, também há pessoas que tocam órgão, violino, flauta, a trompa, o violoncelo. Ou seja, ninguém é posto de parte. Somos uma equipa”.
O LabOratório, refere a página da iniciativa na internet, é um conjunto de oficinas sobre música e espiritualidade, abertas a todas as pessoas, para além dos participantes inscritos. Os diferentes espaços de criação têm uma dimensão prática e implicam a interação dos participantes. Fora das aulas ou mesmo perto de um professor, vários deles mostravam as melodias ou poemas acabados de compor. Nota-se espírito de comunidade: “Só ganhamos juntos”, sublinha Mariana.

O que se pode cantar na missa?
A forma como se incorpora a espiritualidade e a inspiração de cada pessoa na construção da poesia litúrgica e na composição musical salta à evidência. Nem toda a música ou letra é apropriada para uma missa, diz Mariana Baptista. Tudo depende do contexto e importância. Onde estabelecer, então, a linha que separa o que é apropriado para a missa do que tem apenas um valor poético ou espiritual? “A espiritualidade não é só cristã, não é só católica. Fala de toda a realidade humana e do que procuramos, dos nossos anseios e desejos. Isso é transversal ao ser humano, mas pode não ser apropriado para a liturgia. Na liturgia, celebramos em cada momento algo específico, é necessário distinguir o que é importante e o que não é, para esse efeito.”
Na oficina de escrita, em que se escrevem textos para a liturgia, os participantes corrigem o que se acabou de compor. Rui Aleixo, um dos membros da organização, explica que o propósito de exercícios como este é dar um conceito da “melodia e da organização do texto para auxiliar os compositores”. Não importa só o que o coro canta, mas a forma como o próprio texto se pode adaptar ao ritmo da música.
“Queremos que se aprenda como incorporar o texto na canção”, acrescenta Rui. “Ao adaptar autores como Sophia de Mello Breyner Andresen numa música de Bach, temos de perceber que ligação se pode estabelecer entre os dois, eles não são só uma fonte de inspiração. Sem dúvida é difícil, mas o cantar de um poema também é uma forma de estar próximo de Deus.”
Maria João Sousa, professora de técnica vocal, reconhece o desafio de haver pessoas com diferentes níveis de experiência. Essa foi uma experiência inesperada: “Posso ter crianças, adultos, pessoas com um vago interesse por cantar. Eu vim mesmo para o desconhecido. Percebi, quando cheguei, que era um grupo com grande vontade, com grandes vozes. Não de uma forma profissional, mas todos com muita vontade”, afirma. “O meu desafio foi tentar perceber a sonoridade do grupo para tirar o melhor partido dessa sonoridade.”

Ultrapassar expectativas
A paixão também se pode observar na mestria necessária para uma maestrina coordenar as vozes, no interesse pela experimentação, na busca de uma mistura entre o “salgado” e o “doce” na composição, como dizia um dos participantes.
João Andrade Nunes, que ensinou composição, também viu superadas as suas expectativas. “Vim receoso e expectante, sem saber o que esperar.” A maior dificuldade foi a de equilibrar os diferentes graus de experiência musical. O maior sucesso foi ver os participantes a “trabalharem juntos para um objetivo comum”, o que lhe daria vontade de voltar numa futura edição. O próprio padre Rui Fernandes, observando os resultados do dia no ensaio antes de almoço, mostrava essa satisfação: todos se divertiram e, mais importante, já não se sentiam tão tensos para o concerto público e a celebração da eucaristia final dos dois últimos dias.
A edição deste ano abriu possibilidades para um novo encontro, daqui a dois anos. Para já, ficou a memória desta edição no Livro Cinzento, com uma coleção de cânticos e letras criados para este LabOratório. Como o cântico Fazei Isto em Memória de Mim, do jesuíta Miguel Pedro, um dos cânticos escolhidos para o concerto final:
O concerto final teve uma grande variedade de estilos. Além do movimento do coro pela igreja, que trouxe para a liturgia a dimensão dramática que ela também inclui, ou dos arranjos para assobios e das composições de raiz mais contemporânea como Felizes os que Deus Escolheu, de João Madureira.
“Quem canta, reza duas vezes”, costuma dizer-se. E esta é a experiência do LabOratório 2019: mais do que a proximidade com Deus, é também, refere o padre Rui Fernandes, “procurar algo que preencha a nossa paixão e coincida com o que gostamos de fazer”.
(Este texto teve o contributo de António Marujo)
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