Uma Via-Sacra com o Papa em silêncio e os presos a falarem

Via-Sacra na Praça de São Pedro deserta. Foto captada da transmissão vídeo do Vaticano, reproduzida no Religion Digital
Uma Via-Sacra em que se meditou sobre o sistema prisional, com textos escritos por presos, guardas prisionais, voluntários, magistrados, capelães e pais de vítimas assassinadas; e durante a qual o Papa apenas leu as orações rituais, permanecendo em silêncio. Em pano de fundo, esteve sempre a pandemia de covid-19, referida várias vezes nas orações rituais, numa Praça de São Pedro de novo deserta, tal como aconteceu dia 27 de Março, com a Oração pela Humanidade que o Papa Francisco presidiu no mesmo lugar.
Tal como há duas semanas, a praça encheu-se outra vez de referências à actualidade: a pandemia do novo coronavírus, os problemas das vítimas e dos que mais sofrem, o sistema prisional e as suas ambiguidades e limitações, mas também as suas possibilidades. Tudo pela voz dos que nele são encarcerados ou nele trabalham. E, do mesmo modo, milhões de pessoas acompanharam a cerimónia através dos canais de vídeo do Vaticano ou de estações de televisão.
Esta foi a primeira vez que Francisco não esteve no Coliseu para presidir à Via-Sacra, tradição católica que assinala em 14 passos o caminho de Jesus até à sua morte e sepultura. Nas últimas décadas, apenas em 2005, o Papa não esteve no Coliseu – nessa altura, foi João Paulo II, tendo em conta o seu gravíssimo estado de saúde, até porque viria a morre uma semana depois.
O percurso estava iluminado com velas que, contrastando com a luz do tempo de chuva que fazia, ocasionava impressionantes imagens. E a cruz simbólica da cerimónia foi transportada por dois grupos de cinco pessoas: um da prisão de Pádua, outro do Departamento de Saúde do Vaticano, como forma de homenagear os médicos e enfermeiros envolvidos na luta contra a doença – muitos dos quais já morreram.
O peso, o sofrimento, a culpa

“Muitas vezes, nos tribunais e nos jornais, ressoa esse grito: ‘Crucifica-o, crucifica-o!’” Foto captada da transmissão vídeo do Vaticano, reproduzida no Religion Digital.
“Muitas vezes, nos tribunais e nos jornais, ressoa esse grito: ‘Crucifica-o, crucifica-o!’ Esse é um grito que também escutei referido a mim: fui condenado, juntamente com o meu pai, à pena de prisão perpétua”, escrevia o autor do texto da primeira estação. Outros autores foram os pais de uma jovem assassinada, um padre condenado e depois absolvido, um agente da guarda prisional, um voluntário, uma filha de outro condenado a prisão perpétua e outros presos.
“O tempo não aliviou o peso da cruz que nos colocaram sobre os ombros”, escreveram os pais da jovem assassinada, numa reflexão dolorosa. “É impossível esquecer a quem hoje já cá não está. Somos velhos, cada vez mais incapazes e somos vítimas da pior dor que pode haver: sobreviver à morte de uma filha.”
“Todos os dias experimento o sofrimento de quem está recluso”, escrevera a guarda prisional, autor da última estação, que assinala a sepultura de Jesus. “Não é fácil alguém relacionar-se com quem foi vencido pelo mal e causou enormes feridas a outros, tornando difíceis tantas vidas.”
E a filha do homem condenado a prisão perpétua admitia que muitas vezes lhe perguntam como pode sentir afecto pelo seu pai. “É impossível deixar de pensar nisso”, dizia, porque ela foi a primeira vítima do acto do seu pai.
“Estive pregado à cruz durante dez anos, foi a minha via-sacra”, dizia o padre condenado e só mais tarde absolvido, vítima de “suspeitas, acusações, injúrias”. No dia em que foi absolvido de todas as acusações, descobriu que “era mais feliz” do que dez anos antes.

O Papa Francisco esteve no altar, limitando-se a ler as orações rituais. Foto captada da transmissão vídeo do Vaticano, reproduzida no Religion Digital.
Uma Via-Sacra da pandemia: “Quando terá isto fim?”
Exercício diferente foi o que fez o padre Alexandre Palma, professor na Faculdade de Teologia na Universidade Católica Portuguesa. Num ensaio a partir das 14 estações tradicionais, Palma percorre as angústias, temores, sofrimentos e, por fim, a morte de uma pessoa infectada com o novo coronavírus, como se fosse o próprio Jesus Cristo.
Texto de ficção e curto ensaio teológico, como é apresentado, o artigo foi inicialmente publicado no Expresso e reproduzido, depois, na página da Pastoral da Cultura da Igreja Católica.
O texto será, nos próximos dias, editado em formato de livro electrónico por uma editora italiana.
“A densidade espiritual é fortíssima e representa, mesmo na sua estranheza, um modo eficaz de dizer como a solidariedade redentora de Jesus acompanha o ser humano, qualquer que seja a situação em que este se encontre”, lê-se na apresentação do texto, feita pela Pastoral da Cultura.
Na conclusão, sobre a sepultura, escreve Alexandre Palma: “A ele já ninguém o vê. A urna vem selada. Ele não importa. Os que o choram também não. Ainda agora, só uma coisa importa: que o vírus não se propague. Nem na morte tem rosto. Ou toque. Ou beijo. Não há última vontade, nem mesmo depois da hora. Falta o perfume das flores. A oração é acelerada. O rito abreviado. Não se diz adeus assim! Não há vela. Nem nesta hora se lhe faz companhia. Só há luto. E a pergunta calada que rasga por dentro: Quando terá isto fim?”