
“A musicalidade dos risos esquisitos, para lá da beleza e da riqueza da pluralidade humana, mostra-nos que só não riem as bestas, ou os armados em besta.” Foto © Kaspars Grinvalds.
Estudar o riso enquanto gratificação televisiva despertou em mim uma atenção muito particular para com esse fenómeno no quotidiano. O que partilharei de seguida é apenas uma das muitas coisas de que me apercebi, achei interessante e registei numa espécie de “diário de bordo”, que fui completando nestes últimos anos.
Por meio de um amigo foi-me pedido que “mostrasse” o Porto a algumas pessoas; naturalmente, fi-lo. Mas nesse grupo estava alguém que despertou a minha atenção. Ela tinha um rosto e uma aparência cuidada. E tinha também uma voz bastante afável. Mas não foi isso que mexeu comigo. Foi outra coisa. Quando, no meio daquela tarde, por algum motivo, não me lembro qual, ouvi o seu riso, rapidamente dei por mim a pensar: “Como pode uma rapariga tão elegante ter um riso tão desconchavado?” Nunca tinha ouvido (e visto) nada assim. Fiquei estupefacto!
Mais tarde, conheci Eider, a sua irmã mais nova, com uma aparência igualmente cuidada e um ar delicado. E o seu riso? Pois, esse era assustadoramente parecido. Mas desenganem-se todos os que pensam que estou a exagerar quando digo que se trata de um riso distinto. Quando se ouve pela primeira vez, creio que não há quem não pense: estará engasgada, a sofrer, com falta de ar, a precisar de ajuda? É automático.
Anos mais tarde, acabei por conhecer Mari, a mãe dessas duas irmãs. E, sim, para minha surpresa, ela ria exatamente com a mesma “melodia” das suas filhas. Mas este registo não fica por aqui. Tenho uma última nota. Já conhecia Luma. Mas, com o tempo, ela tornou-se amiga íntima de Eider. E, sim, com o tempo, o seu riso “normal” passou a ser cada vez mais parecido com o dela. Porquê? Não sei. Mas pagava para saber…
Apenas sei que esse riso, se fosse delicado e harmonioso, tal como os rostos que lhe dão guarida, não teria despertado a minha atenção. O que seria uma pena. Pois não teria hoje um riso favorito. Nem tampouco um objetivo a cumprir: alimentá-lo, sempre que possível.
Tal como indicado por Aristóteles, rimos pelo simples facto de sermos humanos. Assim, a musicalidade dos risos esquisitos, para lá da beleza e da riqueza da pluralidade humana, mostra-nos ainda outra coisa: que só não riem as bestas, ou os armados em besta.
Abílio Almeida é doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho e investigador integrado do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da mesma instituição. É autor do livro História do Riso (2022), resultante da sua investigação doutoral.