A “nossa” pandemia, a peste medieval e o medo do contágio (ensaio)
A peste “é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar”, escreve Michel Foucault. Enfrentamos agora a mesma realidade? Estamos a reproduzir, afinal, as regras de combate às pestes dos séculos XIV a XVII? Uma revisitação histórica e uma leitura contemporânea dos tempos que estamos a atravessar.

Hans Holbein (1497–1543), “A Dança da Morte – O Nobre” (1523-25) [pormenor]
Colocado em perspectiva, o confronto com um surto pandémico no século XXI surge necessariamente como um entre muitos, num movimento temporal que tem tanto de cíclico como de inevitável. A primeira grande questão que se coloca às sucessivas gerações humanas não é, portanto, “o que aconteceria se fossem confrontadas com uma pandemia”, mas “o que acontecerá quando forem confrontadas com uma pandemia”. Para nós, europeus do século XXI, esse quando é agora. Para outras sociedades mundiais, muitas delas menos brancas, menos ocidentais, menos cristãs, o quando chegou muito antes ou, pior ainda, é um fenómeno quotidiano.
Nessa diacronia da convivência humana com a possibilidade de se ser contagiado ou de contagiar houve rupturas e permanências. Muitos aspectos diferiram: o conhecimento científico, as infraestruturas, o apoio social, a interpretação espiritual e religiosa, e por aí em diante. Outros permaneceram, em parte, como as medidas de contingência; algumas delas, tal como o isolamento social, tidas como eficazes desde há pelo menos seiscentos ou setecentos anos. Contudo, a principal permanência, o principal traço comum, é o medo do contágio e, por arrasto, o grande potencial da instrumentalização política desse medo.
Um dos mais importantes romances do século XX, A Peste, de Albert Camus, ganhou repentina popularidade nos últimos dias. Quem conhece a obra saberá que, nessa história, a verdadeira “peste”, a verdadeira pandemia, não é provocada por uma bactéria, mas por algo que nenhuma vacina resolve: os movimentos de extrema-direita, ávidos por restringir as liberdades civis e asfixiar a democracia. A suposta defesa da saúde pública é, nesta procura, um argumento poderoso, mobilizador de massas.
Basta lembrar, por exemplo, os esforços que o Estado Novo encetou no combate à lepra, considerada endémica nesse período. O ensejo de construir uma leprosaria nacional onde pudessem ser confinados os leprosos, sinónimos de pobreza e do retrocesso das colónias portuguesas, foi também ele fundamentado por comparações abusivas com a Idade Média.
Supostas análises históricas, escritas pelos mesmos médicos por detrás do projecto da leprosaria nacional, reconstruíram o passado medieval de combate àquela enfermidade e reinventaram-no para servir os propósitos contemporâneos. A utopia biomédica de Salazar concretizou-se em 1947, com a inauguração do Hospital-Colónia Rovisco Pais. Em Agosto desse mesmo ano saía o decreto-lei nº 36 450 que regulava, entre outros aspectos, o internamento compulsivo, contra-vontade, dos doentes de lepra.
Nascemos, morremos, mas só temos consciência da doença
Na década de 1980, o antropólogo francês Marc Augé classificou a doença como uma das três “formas elementares de acontecimento”. A par do nascimento e da morte, a doença revela-se como uma regressão, um prenúncio do fim da vida. Por esse motivo, e à semelhança do momento em que se nasce ou em que se morre, a doença gera uma socialização intensa. Os nascimentos são celebrados, as mortes são ritualizadas e a doença mobiliza a espécie humana na procura de uma explicação para a sua causa e, sobretudo, na procura de uma cura capaz de encurtar a proximidade com a morte. No entanto, ao passo que o indivíduo não tem memória de que nasceu nem consciência de que morreu, a experiência da doença é íntima, pessoal e intransmissível. É no corpo individual que se manifestam os sintomas, a dor, o desconforto. É na mente individual que vai alastrando o medo, não da moléstia em si, mas daquilo que ela pode significar. Este é o paradoxo de se “estar” ou “ser” doente: viver a doença em sociedade.
Daqui resultam duas importantes conclusões, válidas para qualquer sociedade que, ao longo da História, se viu confrontada com a doença. A primeira conclusão é que a enfermidade nunca é só um fenómeno biológico, um vírus, uma bactéria, uma mutação que afecta as engrenagens que compõem essa máquina que é o corpo humano. É também, necessariamente, um signo, uma metáfora, um símbolo que foi sendo interpretado de formas variáveis no correr dos séculos.
O que nos traz à segunda conclusão, a de que a doença é também, em maior ou menor medida consoante os casos, e de forma voluntária ou involuntária, um fenómeno social com implicações políticas e, por arrastamento, económicas. Na sua Une microphysique du pouvoir, outro pensador francês, Michel Foucault, resumiu este parágrafo numa frase, escrevendo simplesmente que “o corpo é uma realidade biopolítica”.
Assim, quem procurar conhecer melhor determinada sociedade – a sua própria ou outra deslocada no espaço ou no tempo – reconhecerá no confronto com a doença um lugar de análise privilegiado.
Estas leituras são particularmente pertinentes quando a doença em questão é, de acordo com as classificações biomédicas que vigoram no mundo ocidental contemporâneo, contagiosa. As células individuais e íntimas, quando infectadas com uma doença contagiosa, perdem a sua individualidade e intimidade e tornam-se um problema social. Um problema de saúde pública. Daí que a liberdade de um indivíduo doente esbarre, em termos sociais, com a possibilidade de contagiar o próximo.
Convém notar, todavia, que a noção de contágio, tal como nós, neste mundo ocidental, hoje a entendemos, é bastante recente. Antes do advento da biomedicina, com os seus laboratórios e aparelhos que permitiram detectar organismos invisíveis a olho nu ou vislumbrar o interior do corpo humano com técnicas não-invasivas, a causa e a cura da doença eram obras exclusivamente divinas. O pecado ou o desvio da ortodoxia religiosa podiam ser divinamente punidos com afecções no corpo, e quanto mais generalizado fosse o pecado, mais mortífera seria a afecção.
A peste, afinal, continua a matar

A lista de doenças contagiosas que assolaram e continuam a assolar o globo em surtos epidémicos, endémicos ou pandémicos é longa. No entanto, poucas rivalizam, em termos de antiguidade e impacto no imaginário colectivo, com a doença medieval por excelência, a peste. Ou, em bom rigor, as pestes, já que, antes do advento dos laboratórios, várias doenças que actualmente recebem designações distintas eram identificadas com o mesmo nome dado que causavam sintomas semelhantes. Há notícia desta enfermidade milénios antes do nascimento de Cristo. E há notícia dela no século XXI. De facto, de acordo com os dados disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde, entre 2010 e 2015 foram registados 3.248 casos de peste no mundo, com 584 mortes, isto é, com uma taxa de mortalidade de cerca de 18%.
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Significa isto que esta aflição contagiosa acompanhou a humanidade ao longo de uma parte significativa da sua existência. Nesse caminho, provocou sobre os corpos individuais reacções biológicas e íntimas que imaginamos terem sido relativamente semelhantes. Todavia, o seu impacto enquanto signo, metáfora e símbolo, enquanto fenómeno social, variou consideravelmente. E, como veremos, muitas das medidas de contingência postas em prática para o seu combate são-nos, nos dias que correm, familiares.
Fulgurante e devastadora, a peste tornou-se presente em centenas de surtos intermitentes mas recorrentes, com maior incidência entre os séculos XIV e XVII e com uma regressão gradual a partir daí, até ao ponto em que nos encontramos actualmente. O surto mais famoso, e o que deixou o primeiro núcleo mais abundante de registos na Europa, ficou conhecido como a “Peste Negra”, um acontecimento pandémico que se estendeu sensivelmente de 1347 a 1352. Estima-se que, nesses cinco anos, a doença tenha dizimado entre um terço e metade da população europeia, valores inimagináveis cujas consequências demográficas e económicas tiveram repercussões pelo menos durante os dois séculos seguintes.
Essa “pestenença”, esses “maus ares”, como era então designada aquela enfermidade, chegaram a Portugal em 1348 e o reino não estava preparado. Como não o estavam os restantes reinos europeus. Os relatos que nos chegaram deste confronto com a doença são apocalípticos. Paralisado, Portugal entrou em degradação demográfica, económica, social e moral. Poucas décadas depois, ainda no rescaldo do surto de peste, o Interregno viu o reino ficar sem rei entre 1383 e 1385 e, da crise política, nasceria a dinastia de Avis.
Os “maus ares” que vieram para ficar

Estes “maus ares” vieram para ficar e seguiram-se várias dezenas de surtos a seguir ao de 1348. De facto, o historiador português Armindo de Sousa explicou claramente a dimensão do problema ao escrever na História de Portugal dirigida por José Mattoso que “nos séculos XIV e XV qualquer pessoa que atingisse a idade madura havia escapado mais de uma vez a um surto de peste”. Embora com uma mortalidade elevada, nenhum destes eventos epidémicos reproduziu o cataclismo de 1348, em parte porque as comunidades e os próprios corpos estavam mais preparados para enfrentar a doença.
Alguns destes surtos, que ocorreram entre 1481 e 1521, isto é, entre os reinados de D. João II e D. Manuel I, estão particularmente bem documentados numa colecção intitulada Livro I do Provimento da Saúde (um dos muitos e insubstituíveis tesouros neste momento em risco de total degradação nas inadequadas e indignas instalações do Arquivo Municipal de Lisboa). Nessa colecção guardam-se cartas enviadas pelos monarcas aos representantes do concelho de Lisboa sobre a saúde da cidade em tempos de peste e sobre as medidas que deveriam ser tomadas para conter a propagação da doença.
Embora a pestilência estivesse espalhada por vários pontos do reino, Lisboa tinha uma importância particular. Para além de se assumir como capital e de se vir a tornar o local de residência fixa da corte, Lisboa era a cidade mais populosa de Portugal e pelo seu porto, um dos mais importantes no comércio global, circulavam quotidianamente pessoas e mercadorias. Pessoas, mercadorias e doenças. Nesse sentido, se Lisboa ficava doente, era quase certo que o resto do reino adoeceria também. Depois da salvaguarda da corte, a prioridade era, assim, a salvaguarda de Lisboa e, só depois, a dos restantes lugares de Portugal.
Daí que tanto D. João II como D. Manuel I tenham feito questão de ser constantemente informados sobre a situação sanitária da capital, redirecionando esforços políticos, administrativos e financeiros para a saúde da cidade sempre que necessário. Do mesmo modo, escreviam regularmente aos representantes lisboetas para relatar casos de pestes noutras cidades e vilas dentro e fora do reino, encomendando-lhes cuidado na “guarda” da capital.
O problema maior que explica, em parte, a gravidade de muitos dos surtos de peste, foi que as medidas de contingência eram habitualmente ad hoc e postas em prática demasiado tarde. Aliás, chegaram-nos várias cartas régias a condenar a inactividade e os significativos atrasos na resposta aos surtos por parte do concelho de Lisboa. De facto, como não existiam mecanismos permanentes de combate à doença, prontos a ser activados quando os primeiros casos eram detectados, as medidas de contingência nem sempre eram eficazes.
Contingência dentro e fora das cidades

Assim, para além de evacuar imediatamente a corte, foram três as principais medidas repetida e ciclicamente tomadas em tempos de pestilência.
A primeira medida passou por fechar e isolar a cidade. Os pontos de entrada e saída por terra eram vigiados com o objectivo de impedir que entrassem na capital pessoas oriundas de lugares infectados antes de passarem por um período de quarentena de “um mês inteiro”, e que saíssem dela pessoas “impedidas”, isto é, já doentes. Por seu turno, a circulação por mar era fonte de particular preocupação dada a quantidade de naus e navios que quotidianamente chegavam a Lisboa vindos de múltiplos lugares da Cristandade.
Em 1487, D. João II ordenou que se colocassem em Alcântara dois marcos de mármore, um com uma bandeira de São Sebastião, santo protector contra a peste, e outro com uma bandeira de São Vicente, padroeiro de Lisboa. As embarcações oriundas de lugares “perigosos” ou “duvidosos”, ou seja, que estivessem ou que se suspeitasse estarem infectados com peste, não podiam entrar no espaço guardado pelos dois santos, funcionando a protecção sagrada como medida profiláctica.
As naus ou navios que viessem de lugares infectados deviam voltar para trás, e aqueles provenientes de sítios potencialmente infectados eram desviados para portos secundários. Aí eram revistados e, caso a dúvida permanecesse, a tripulação, portuguesa ou estrangeira, era posta em quarentena compulsiva dentro da embarcação. No entanto, casos houve em que a quarentena não era respeitada, o que levou as autoridades concelhias a confiscar os esquifes ou botes, retirando aos tripulantes a única forma de vir a terra e deixando as embarcações completamente isoladas no mar.
Depois de se concentrarem no exterior, as atenções voltavam-se para o interior da cidade. Assim, a segunda medida passou por controlar a propagação da doença nos vários espaços que compunham a capital. A prioridade eram os edifícios onde alguém tivesse adoecido ou falecido. Estes deviam ser completamente despejados de pessoas e recheio, e umas e outros deviam ser lavados o melhor possível. Os edifícios eram depois limpos com vinagre, perfumados com fogos de alecrim, interditos durante um mês e ocasionalmente arejados para expelir os maus ares.
O mesmo protocolo era extensível aos edifícios “apegados” aos originalmente infectados, mesmo que estivessem sãos. Em tempos de peste, Lisboa cheirava a vinagre e alecrim. De facto, repetiram-se as ordens dos monarcas para a capital abastecer os armazéns daqueles dois produtos, que deviam estar disponíveis para venda em vários pontos da capital a custo de produção e transporte, sem margem de lucro.
Fechar escolas, esvaziar cidades, hospitais de campanha

O isolamento social era também promovido na medida do possível. Em 1506, D. Manuel manda fechar as escolas “dos moços que aprendem a ler e a escrever” enquanto o “mal durar”, não consentindo que estivessem juntos. Os ajuntamentos de um grande número de pessoas eram também evitados, com a excepção de procissões e celebrações religiosas, como, por exemplo, em honra de São Sebastião. Estas eram essenciais para garantir a intervenção divina na dissipação da doença e para expiar os pecados que tinham sido a causa original da epidemia.
Contudo, quando a intervenção divina tardava, tornavam-se necessários esforços suplementares. Também no contexto do surto de 1506, as medidas de isolamento social foram levadas ao extremo quando o monarca ordenou que Lisboa fosse inteiramente despejada e que os seus habitantes se dispersassem o mais que pudessem pelos arrabaldes da cidade. Os representantes lisboetas terão resistido a esta solução extraordinária, mas D. Manuel insistiu, evocando estratégias semelhantes que tinham sido levadas a cabo em Génova e também em Évora, por conselho informado dos físicos. E rematou, escrevendo que tais medidas excepcionais, “posto que em alguma maneira pareçam graves e trabalhosas aos homens, devem-se comportar”.
Por fim, a terceira medida profiláctica mais recorrente passou por construir infraestruturas para receber os doentes de peste. Estas infraestruturas, designadas como “casas” dos pestíferos ou “casas” da peste, eram montadas e desmontadas consoante os surtos e podiam servir, simultaneamente, como espaços de cura, lugares de óbito e prisões para os enfermos.
Dependendo da gravidade do surto, os enfermos podiam ser obrigados a ir para as casas, incluindo fidalgos e cavaleiros. Se, por milagre, se curassem, deviam cumprir um período de quarentena antes de serem autorizados a voltar à cidade já que, por norma, estas casas eram montadas fora dos muros. Em 1493, o concelho optou por construir estes espaços para os pestilentos junto a outra casa que também albergava doentes tidos como contagiosos, a Casa de São Lázaro, a leprosaria da capital. Delimitava-se, assim, todo o tipo de contágio numa área circunscrita.
Esta prática era recorrente noutros lugares do reino, como se comprova pelos sucessivos protestos dos leprosos de Évora sempre que as autoridades tentavam enviar pestíferos para a leprosaria. Quanto aos lázaros de Lisboa, estes viram-se livres da vizinhança dos doentes de peste pouco depois de 1520, data em que D. Manuel I ordena que se construa uma casa permanente para acolher os pestilentos, depois conhecida como Casa da Saúde.
Vigiar e punir
O não cumprimento das regras estabelecidas por todas estas medidas de contingência durante os surtos de peste era severamente punido. Entre a vigilância e a punição, escreve Michel Foucault, a peste “é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar”. De facto, a vigilância dos corpos infectados era garantida em 1493 por quadrilhas de homens que patrulhavam as freguesias de Lisboa para saber quantos doentes havia em cada rua, relatando depois os resultados ao concelho.
Do mesmo modo, os físicos que tratavam os pestíferos eram também obrigados a informar as autoridades sobre a identidade dos seus pacientes. Curiosamente, no início do surto de 1493, Mestre Joseph, físico morador em Lisboa, fez isso mesmo, mas foi ele próprio punido pelo concelho, que o acusou de mentir e de fazer soar um falso alarme. Espantado, D. João II pediu explicações às autoridades concelhias, questionando o porquê de o físico ter sido castigado simplesmente “por dizer o que lhe parecia neste caso”. As penas para quem, como Mestre Joseph, se desviasse da disciplina, variavam consoante o estatuto social do prevaricador, como, aliás, sucedia na época em qualquer situação, houvesse ou não peste. Quanto mais baixo se estivesse na hierarquia social, mais severas eram as penas, que variavam entre a perda de bens, multas, açoitamentos públicos, exílio ou degredo.
A punição tornou-se mais eficaz no século XVI com a emissão dos chamados “regimentos da saúde”, que regulavam as diversas faltas em que cada indivíduo podia incorrer e as respectivas consequências disciplinares. Previam-se penas, por exemplo, para os doentes que escondessem sintomas, para os sãos que acolhessem enfermos, para os físicos que cobrassem mais do que o preço devido para curar os pestíferos, ou para os oficiais que não relatassem os casos de contágio nos prazos estabelecidos.
Enterrar os mortos, culpar os vivos

Apesar de todas as medidas de combate à doença, da vigilância e da punição, o número de mortes multiplicava-se. São comuns os relatos de pessoas que morriam nas suas casas, nos “hospitais” e até na própria rua. A convivência com a regressão da doença até à morte era banal. A altíssima taxa de mortalidade criou graves problemas no que diz respeito à capacidade dos espaços de enterramento da cidade, que, para os cristãos, se localizavam maioritariamente no interior dos muros, mais concretamente nos adros das igrejas, em solo sagrado. Não foi porque já não havia espaço nestes locais, mas também para evitar a contaminação do ar que tanto D. João II como D. Manuel I ordenaram que os enterramentos dos pestilentos se fizessem fora da cidade, durante a noite, e o mais rapidamente possível.
Quando os adros exteriores, como os de Santa Maria do Paraíso ou Santa Maria do Monte, se enchiam, os corpos dos que haviam professado o Cristianismo acabavam por ser enterrados em valas comuns escavadas em solo profano. O mesmo não se aplicava aos corpos dos escravos, que eram atirados para monturos, deixados a descoberto e comidos por cães, como relata D. Manuel I numa carta de 1515. Para solucionar a questão, aquele monarca determinou nessa mesma carta a construção de um poço, “o mais fundo que pudesse ser”, para onde deveriam ser lançados os corpos dos escravos. Periodicamente, o poço era coberto com cal para acelerar a decomposição.
O elevado número de mortes em tempos de peste, no entanto, podia não ser só obra da natureza. No surto de 1506, foram assassinadas em três dias cerca de duas mil pessoas, na sua maioria cristãos-novos, isto é, judeus voluntária ou forçadamente convertidos ao Cristianismo, a quem tinha sido atribuída a culpa pelo evento pestífero. As suas casas foram saqueadas e os seus haveres roubados. Esta foi porventura a reacção mais violenta perante uma crise sanitária, mas não era a primeira vez que as minorias, neste caso religiosas, se tornavam alvos.
Em 1492, D. João II alerta o concelho de Lisboa para a chegada iminente de muitos judeus que haviam sido expulsos de Castela e urge as autoridades a verificar se vinham doentes de peste. Seis anos antes, o mesmo rei determina que se ponha termo aos tumultos que na cidade vinham aumentando contra os “confessos” – judeus e muçulmanos convertidos –, encomendando aos representantes lisboetas que não tolerassem qualquer afronta ou agressão contra esse grupo.
Nas palavras do Príncipe Perfeito, a vinda da peste explicava-se “por Nosso Senhor assim querer por ventura por desmerecimentos e pecados de muitos e não somente dos confessos”. A opinião do rei não parecia, contudo, ter eco em alguns sectores da população, que se aproveitaram do medo do contágio para inflamar comportamentos com narrativas em nome da saúde pública.
Março de 2020: regressámos à Idade Média?

Deixemos o passado e avancemos de novo até Março de 2020, em pleno evento pandémico. Os especialistas em estudos medievais estão já habituados a que a Idade Média e o adjectivo “medieval” sejam, de forma errada e recorrente, utilizados para expressar retrocesso civilizacional, caos e desastre. Nesta linha, há quem afirme, hiperbolicamente, que, perante a crise em vigor, regressámos à Idade Média. Não, não regressámos. Comparações desta categoria, que manipulam propositadamente a carga histórica e simbólica das pandemias medievais, são catastrofistas, alarmistas e francamente inúteis.
É certo que os historiadores são pouco úteis em tempos de crise. Não tratam doentes, não dispensam medicamentos nas farmácias, não garantem que a economia continue a funcionar, não mantêm a segurança, não fornecem água nem electricidade, não produzem alimentos nem bens essenciais. Mas podem oferecer um outro tipo de bem essencial que facilmente se perde quando nos deixamos consumir pelo medo, alimentado, como se não bastasse, por comparações catastrofistas, alarmistas e inúteis. Podem oferecer perspectiva. É essa perpectiva, a que se aludia no início que, enfim, garante que os erros do passado não se voltem a repetir. Porque a doença é inevitável, mas certos erros não são.
O confronto com a doença revela invariavelmente, enfim, as fissuras pré-existentes na sociedade e os potenciais aproveitamentos dessas fissuras. Revela também as mais-valias, que heroicamente aliviam o peso das aflições. E revela ainda os impulsos instintivos da natureza humana quando o medo se sobrepõe à razão. Daí que o sucesso da contenção de qualquer pandemia dependa não só das infraestruturas, vacinas, recursos humanos ou medidas de protecção económica, mas também do grau de compreensão, por parte dos poderes instituídos, do comportamento humano face à possibilidade de contágio.
Este comportamento, individual e colectivo, diante da hipótese de contágio, será o nosso legado para as sociedades futuras. O que é que ele diz sobre nós, enquanto indivíduos e comunidades?
Nestes saltos entre o presente, o passado e o futuro devemos ter cautela quando procuramos lições na História. A História, tal como o medo, é facilmente manipulável para servir agendas que nada têm que ver com a saúde pública. Mas, enfim, se se insistir em procurar lições, então que se retenha esta: uma lição de resiliência e de superação, que nos une colectivamente no espaço e no tempo, num esforço comum de resistência a todos os tipos de pandemias.
Rita Sampaio da Nóvoa é historiadora, mestre em História Medieval com uma dissertação sobre a Casa de São Lázaro de Lisboa e doutorada em História pela Nova FCSH e pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. É membro integrado do CEPESE e membro associado do IEM – Nova FCSH
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