
O final da JMJ de Madrid, em 2011, em Cuatro Vientos: “Caminho é sinónimo de imperfeição, de inacabado e, por isso, registam-se aqui pontos de reflexão onde existe espaço para crescimento.Foto © Gio 2000
“É preciso rasgar com aquilo que é costume, e inovar, e arriscar o que é diferente” – propôs D. Américo Aguiar numa celebração na Sé Nova de Coimbra em Outubro de 2021.[1] É um excelente propósito para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de Lisboa e, felizmente, já se vê algum caminho nesse sentido. É de notar a extraordinária generosidade que tem surgido dos mais diversos campos, dos que, individualmente, têm contribuído para este projecto, até à esfera pública que desde cedo apoiou a iniciativa, e mesmo empresas e particulares que têm partilhado recursos para levar a cabo este importante encontro.
Naturalmente, caminho é sinónimo de imperfeição, de inacabado e, por isso, registam-se aqui pontos de reflexão onde, cremos, existe espaço para crescimento.
Processo, hierarquias e ligações
Começamos com um aspecto de organização. Que processo seria desejável promover?
Nas orientações oficiais da Santa Sé destaca-se que “Na preparação (…) é necessário encontrar tempos e modos apropriados para que a voz dos jovens seja ouvida dentro das estruturas de comunhão existentes (…) Ninguém deve ser colocado nem deixado colocar-se de lado. Desta forma, será possível reunir e coordenar todas as forças vivas da Igreja particular, bem como despertar aquelas que estão “adormecidas”.”[2]
É essencial promover a abertura à intervenção, em especial dos jovens, contrariando uma tendência de participação passiva, de execução de tarefas. Um processo hierárquico é mais simples, também mais confortável para todos, mas minimiza o potencial de novidade e a co‑responsabilidade dos jovens. Com Paulo Freire, relembramos a necessidade de uma pedagogia assente na participação, ao fazer um caminho de verdadeiro crescimento interior e formação de sentido crítico. É necessário especial empenho em criar espaços de comunicação eficazes e com suficiente tempo de reflexão.
Neste caso, a imensa complexidade de gestão torna as estruturas hierárquicas quase inevitáveis. Mas isso não impede que se promovam ligações não‑hierárquicas para ultrapassar as limitações dessa estrutura. Tomando a imagem estruturada da árvore, Christopher Alexander fala da cidade dizendo que “Quando pensamos em termos de árvores, estamos a trocar a humanidade e riqueza de uma cidade viva por uma simplicidade conceptual (…) Pois para a mente humana, a árvore é o mais simples veículo de pensamentos complexos. Mas a cidade não é, não pode e não deve ser uma árvore. A cidade é um receptáculo da vida.”[3]
Alexander propõe a malha (“semilattice”) como alternativa, pressupondo uma interligação de diversos nós ao longo do sistema, numa rede multifilar e multirelacional, na prática permitindo uma comunicação e interacção mais rica. Acreditamos que também nas organizações, forçar uma estrutura em árvore numa multidão de pessoas envolvidas é a maneira mais fácil, mas não a mais rica humanamente.
Chegar onde é preciso, também aos sítios diferentes
O propósito de que o encontro seja para todos é, também, uma excelente intenção. Mas chegar a todos não poderá ficar apenas pelos desejos e palavras, até porque muitos ficarão indiferentes à JMJ, se dito da maneira convencional. São João Bosco ia para as ruas e usava a magia e malabarismo para chegar ao mundo das crianças e jovens, partilhando a vida com eles e, depois, mostrando com a sua presença que a vida em Deus é algo especial, algo que vale a pena.
Tem de se partir de uma experiência de autenticidade para ajudar cada um a descobrir uma vida mais rica, mais completa. Levar Deus ao mundo, como diz frei Bento Domingues ao recordar o Papa Francisco: “É um Homem dos mundos todos, dos mundos todos. E a sua convicção cristã é uma convicção de abertura universal.”[4]
A pressa e os necessários espaços de silêncio e paragem

A pressa anda no ar. Mas não deixemos que a pressa de Maria seja vista em nós como impaciência! A pressa de Maria é um anseio, não uma ansiedade. A preparação da JMJ tem sido um longo caminho; é preciso fazer pausas entre etapas para reabastecer, pôr o caminho em perspectiva, pesar o que foi feito e o que pode ainda ser acrescentado. Só com tempo de paragem e um olhar mais atento se podem discernir aspectos invisíveis ao olhar quotidiano.
O Papa Francisco lembra que “Inúmeros jovens choram, sem que ninguém ouça o grito da sua alma (…) lembrai-vos de que aquele jovem do Evangelho – estava realmente morto – voltou à vida, porque foi visto por Alguém que queria que ele vivesse. Isto pode acontecer ainda hoje e todos os dias.”[5] Não corramos o risco de a JMJ ser uma experiência de festa que passa adiante de tantos que não têm a capacidade de redescobrir a alegria por si próprios.
A cidade temporária
Na era das cidades, universos e realidades virtuais, vamos ter a oportunidade da experiência de uma Lisboa que durante alguns dias irá ganhar uma segunda camada, bem real, uma segunda cidade em cima da cidade. Não estaremos talvez assim tão longe do imaginário da arquitectura e urbanismo do Metabolismo (Japão pós-Segunda Guerra Mundial) onde encontramos propostas utópicas de novas megaestruturas construídas sobre as cidades existentes, com um crescimento orgânico: estruturado, mas imenso, multiplicado num crescimento fractal.
Não falamos neste caso, evidentemente, de uma verdadeira megaconstrução sobre toda a cidade, mas existirão, ainda assim, novas estruturas que darão uma dimensão muito corpórea a essa cidade temporária. E, sobretudo, existirá uma cidade humana que se imiscui no espaço público e privado, criando novas dinâmicas, novas situações urbanas.
Uma multidão é a partir de certo ponto um fluido, que terá capacidade de preencher os interstícios da cidade e criar fluxos que transfiguram a cidade que conhecemos. De que maneira podem ser esses fluxos um verdadeiro ponto positivo para a cidade, e não apenas um incómodo para quem não se revê neste grande encontro?
Será ainda uma metamorfose temporária de usos – ginásios, escolas, jardins, salões paroquiais, que se transformam em algo diferente, uma inversão de lógicas. Xavier Monteys, arquitecto e professor na Universitat Politècnica de Catalunya, reflecte sobre a ideia de “utilizar mal” a casa, de a virar do avesso para lhe descobrir um lado novo. Encontrar uma nova casa na casa de sempre. Muitos terão a oportunidade de fazer esse exercício ao acolher jovens vindos de todo o mundo; também muitos locais virão a acolher um uso substancialmente diferente daquele para que foram concebidos, pelo que será necessário reflectir sobre o que isso representa em termos de cidade.
Liturgia e sustentabilidades em territórios transitórios

Que bom é ver o tema da sustentabilidade tratado nesta JMJ; no âmbito, aponta caminhos interessantes, parecendo querer voar para lá da mera sustentabilidade ambiental; no tempo, não é totalmente explícita, mas idealmente seria algo a considerar nos inúmeros passos que durante meses vão anteceder a semana principal e, ainda, nos caminhos de futuro que pode abrir ou reforçar a diversos níveis. O “legado positivo duradouro no território” assinalado na inspiradora e felizmente ambiciosa Carta-Compromisso terá que reflexos nesse território, e em que âmbito?
O palco-altar continua revestido até ao momento de um véu incógnito, do qual pouco se sabe além da localização. Será mais palco, ou mais altar? Da já grande colecção de altares de outras jornadas, encontramos perspectivas bastante distintas sobre um mesmo tema. Por vezes um lugar mais envolvido pela multidão, mais próximo da terra e dos jovens, outras vezes um pódio tão elevado que quase custa a crer ser possível alguma relação a tal distância vertical. Ainda a propósito do altar, foi pena a oportunidade perdida de um concurso de ideias, tal como chegou a ser feito no hino e logotipo. Muitos jovens teriam uma palavra a dizer e o resultado poderia sair mais enriquecido.
Já sobre os restantes elementos temporários, o que lhes irá acontecer? Como pensar o destino da desmontagem de todo o local, evitando que seja um recurso com fim a curto prazo? Por exemplo os confessionários – podem ter um formato que responda ao sacramento e que seja, simultaneamente, reflexo da Igreja viva e jovem, num evento que se quer explorador de caminhos? Se os confessionários são, antes de tudo, um lugar de diálogo, de reconciliação em Deus através de um sacerdote que nos acolhe, facilmente mesas e cadeiras poderiam formar, sem impacto significativo de recursos materiais, um conjunto de espaços de confissão. Se é uma Jornada diferente, e se procuramos uma Igreja renovada, será que a imagem da fila de confessionários que encontramos noutras Jornadas, como uma interminável colecção de paragens de autocarro, transmite essa mesma Igreja? Ou, querendo-se garantir que há lugar para diferentes sensibilidades sobre o assunto, nomeadamente com formatos de confessionários mais “tradicionais”, poderiam ser pensadas soluções compostas na sua essência por elementos têxteis que pudessem depois ser convertidos em algo de útil e necessário nas dioceses por Portugal fora?
Aquilo que fica
O parque verde é importante, mas não será, esperamos, o legado principal da JMJ. O essencial será a vivência dos jovens – com que imagem de Igreja se sairá desta JMJ, quer para os que regressam a suas casas fora de Portugal, quer para a Igreja portuguesa? Que processos, que ideias, que sistemas de trabalho, que ritmos da Igreja poderão ser trabalhados antes e mantidos depois?
O Papa Francisco desafia-nos a pensar e tomar iniciativa: “Queridos jovens, quais são as vossas paixões e os vossos sonhos? Fazei-os sobressair e, através deles, proponde ao mundo, à Igreja, a outros jovens, algo de belo no campo espiritual, artístico e social.”[6]
A caminho, enquanto ainda é tempo

Ainda temos alguns meses até à concretização da semana da JMJ. Cada um terá possibilidades de participação e colaboração diferentes nesse caminho, conseguindo dar um conjunto limitado de contributos. Será necessário o discernimento da vocação para encontrar os campos mais adequados para se envolver, contribuindo com o melhor de si. Como sugere o padre Vasco Pinto de Magalhães[7], fazer a pergunta certa: não “o que posso fazer mais” (numa lógica de acumulação e dispersão), mas sim “o que sou chamado a fazer” (no sentido de filtrar e dar profundidade).
É importante ter profissionais (e, mais do que apenas profissionais, pessoas cujo profissionalismo queira dizer experiência acumulada e amadurecida) que garantam que tudo se desenrola com qualidade, com conteúdo, com atenção aos pormenores que apenas conhece quem está habituado. É um evento que não permite deixar nada ao acaso, desde questões logísticas até à maneira como se propõem as diversas actividades e encontros. Mas também é importante não deixar que essa profissionalização tome conta da JMJ, que não a torne num monólito burocrático, pesado, que acabe por ficar longe da Igreja desejada pelo Papa Francisco e por muitos. Porque os meios são essenciais mas, no meio de tanta confusão, “pressa” e agitação há que garantir que não se esquece o ainda mais essencial: o foco não é a concretização prática da JMJ nem os meios que permitem erguê-la; o foco é o fim (ou melhor, a finalidade, que já está em curso e continuará mesmo depois da semana da JMJ) – levar Deus aos jovens e, ainda, levar Deus de maneira renovada ao nosso país e ao mundo. “As Jornadas Mundiais da Juventude não são “fogos de artifício”, momentos de entusiasmo com a finalidade em si mesmos”[8] diz-nos o Papa Francisco, a recordar isto mesmo. Trabalhemos o que ainda pode ser melhorado, para que seja uma JMJ verdadeiramente grande e preenchida. E, nas dificuldades, o mais importante: não desistir!
Notas
[1] Declarações citadas a partir de notícia da agência Ecclesia.
[2] Orientações pastorais para a celebração da Jornada Mundial da Juventude nas Igrejas particulares, ponto 4b (Dicastério para os leigos, a família e a vida)
[3] Christopher Alexander, A City Is Not a Tree (1965)
[4] Frei Bento Domingues, entrevista Primeira Pessoa, RTP1
[5] Mensagem do Papa Francisco para a XXXV Jornada Mundial da Juventude (Domingo de Ramos, 5 de abril de 2020)
[6] Mensagem do Papa Francisco para a XXXV Jornada Mundial da Juventude (Domingo de Ramos, 5 de abril de 2020)
[7] Vasco Pinto de Magalhães, Só Avança Quem Descansa (Apostolado da Oração, 2012)
[8] Orientações pastorais para a celebração da Jornada Mundial da Juventude nas Igrejas particulares, ponto 1