
Depressões, queda do número de padres, fadiga são alguns dos sintomas analisados nos inquéritos isolados. Foto © Banks Photos.
Porque se esvaziam os seminários católicos tracionais e se enchem as casas de formação ligadas a grupos tradicionalistas? A pergunta surgiu de um participante do congresso internacional Erguendo os Olhos e Vendo, sobre a problemática dos seminários católicos. E o historiador italiano Alberto Melloni falou de “um clero vestido de toureiro” e não poupou no diagnóstico: “Recolher desadaptados à escala global é fácil.” Há um “conforto febril” em seguir modelos esgotados mas, se temos “coleccionadores de caixas de bolacha dos anos 50, porque não poderia haver coleccionadores de modelos formativos” esgotados?
Apelando à importância de os padres serem capazes de dialogar com mundos diversos, Melloni viajou entre o século XVI e a actualidade, ou seja, entre o Concílio de Trento e o do Vaticano II. “Trento imaginou uma figura de padre que só uma pessoa concretizará: o Papa João XXIII [1958-63], precisamente aquele que enterra a etapa tridentina” do modelo de padre. Isto aconteceu porque o concílio que idealizou a reforma católica do século XVI não propôs um modelo, mas um “compromisso”.
Trento tentou fazer algo que não conseguiu, no que ao clero católico diz respeito, afirmou Melloni, responsável da Cátedra Unesco sobre o Pluralismo Religioso e a Paz, da Universidade de Bolonha: foi uma espécie de invenção do “surrealismo antes de Magritte”: os bispos do concílio “quiseram fazer seminários sem seminaristas”. No decreto sobre o assunto, “o seminário não nasce para formar ninguém, mas para proteger os adolescentes do mal”.
“Tal como uma igreja barroca é diferente de uma igreja luterana, o padre tridentino deveria ser diferente do pastor luterano”, explicou Melloni. Por isso, quatro séculos depois, entre 1962-65, o II Concílio do Vaticano foi “o início do início”. E também desse modo o tema do clero tem sido um dos mais fortemente usados “contra o Vaticano II e contra a sua timidez em afrontar a clericogamia”, acrescentou o académico, na intervenção inicial do terceiro dia do congresso.
O que sairia da reforma católica do século XVI acabaria por desembocar num padre multi-tarefeiro: pastor da palavra, dos sacramentos, da gestão, das almas e de muitas outras mais dimensões. E ainda no “modelo do padre sacrificial, do alter Christus” (o outro Cristo, em que o padre é entendido como a encarnação da pessoa de Cristo), com uma posição de poder que, no fim da linha, levará “ao escândalo dos abusos sexuais”.
Por outro lado, Trento sublinhou a atenção às igrejas locais e ao papel dos bispos, ideia que seria abandonada nos séculos seguintes. E o pós-Vaticano II não conseguiu ainda recuperar essa afirmação da dimensão local do cristianismo católico, refere Melloni.
“Separado e sagrado, sagrado porque separado”
Falando sobre a modernidade e a recomposição do ideal de padre, a francesa Céline Béraud referiu alguns dados estatísticos conhecidos: cerca de 75% dos assistentes espirituais nos hospitais são mulheres; em cada ano, há uns 15 ou 20 padres que abandonam por cada 100 ordenações; havia, em toda a França, 41 mil padres em 1960; em 2015 eles eram seis mil. Dos que vêm de foram (um em cada cinco), metade chega de África.
A directora de estudos da École des Hautes Études em Sciences Sociales referiu-se ao padre das últimas décadas como “um homem separado e sagrado, e sagrado porque separado”. O Papa João Paulo II liderou a “re-sacralização do clero”, numa perspectiva da reafirmação da identidade dos padres. A função clerical “recentrou-se na liturgia, na missa e na administração dos sacramentos”.
Apesar desse processo, a “queda abrupta” do número de padres não foi travada pelas instituições mais tradicionalistas. E os padres começaram também a ser atingidos por problemas de solidão ou depressão, sentindo um peso elevado de responsabilidades. “O ideal sacerdotal pesou sobre os padres que se sentiam chamados a ser exemplares”, referiu, citando dois testemunhos: “Estamos ‘estrelizados’, feitos estrelas”, confessava um padre a Céline Béraud. “Sinto-me mal com os paroquianos que me colocam num pedestal”, dizia outro, num inquérito dirigido pela socióloga.
Num tal contexto, que sentido faz ensinar teologia na Universidade Católica? O patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, referiu-se, em mesa-redonda, ao cristianismo como uma “memória viva”, para defender a ideia de que a dimensão histórica deve estar presenta na formação dos seminaristas. O papel da teologia é fazer as perguntas essenciais, mesmo quando mais ninguém as faz, defendeu entretanto o bispo de Lamego, António Couto. E o pró-reitor da Faculdade de Teologia, João Manuel Duque, defendeu a ideia de que essa área de estudos deveria fazer o mesmo percurso académico que fazem a maior parte das profissões.