O solidéu branco e o turbante negro: uma aliança visionária (análise)

| 12 Mar 2021

O Papa Francisco e o líder xiita do Iraque, Ali Al-Sistani, em Najaf, durante a viagem do Papa ao Iraque. Foto: Direitos reservados/Religión Digital

Foi uma viagem audaciosa, histórica, memorável ao berço da civilização – provavelmente a mais importante em oito anos de pontificado de Francisco. E um dos marcos da visita do Papa ao Iraque foi, sem dúvida, o seu encontro com o Ayatollah Sistani.

De saúde frágil, no meio de uma pandemia e de uma grave crise de segurança, com um número crescente de mortes por covid-19 e um ressurgimento de atentados suicidas no Iraque, o Papa Francisco, 84 anos, foi não apenas ao encontro do seu perseguido rebanho cristão, mas também de um interlocutor estratégico para a coexistência inter-religiosa.

Todas as paragens do chefe da Igreja Católica, em quatro dias de peregrinação, foram simbólicas. Das cerimónias de boas-vindas, no aeroporto e palácio presidencial de Bagdad, à monumental missa de despedida, num estádio em Erbil. Das ruínas de Mossul, antiga “capital” dos genocidas do Daesh, a Qaraqosh, duas cidades de onde dezenas de milhares de cristãos fugiram para evitar escolher entre a sua fé e a sua vida, numa terra que habitam há quase 2000 anos.

Por todos estes lugares da antiga Mesopotâmia, onde havia 1,5 milhões de cristãos em 2003 e hoje serão menos de 150 mil, ressoaram os apelos do Papa à fraternidade, ao perdão e à paz. Mas também à construção de uma “sociedade democrática”, com “direitos para todos”, para que ninguém seja tratado como “cidadão de segunda classe” – árabes ou curdos, assírios ou arménios, mandeus ou sabeus, yazidis ou kakai, circassianos ou zoroastras.

Foi pena que Francisco, justamente solidário com os yazidis, “vítimas inocentes duma barbárie insensata e desumana” e com a sua identidade e sobrevivência ainda em risco, não tivesse evocado também, no seu encontro com líderes religiosos em Ur, a pátria de Abraão, o êxodo forçado da outrora florescente comunidade judaica. De 2700 membros, restarão apenas seis adultos em Bagdad, e 70 a 80 famílias no Curdistão. O Vaticano garantiu que convidou responsáveis da diáspora hebraica. Os governantes iraquianos recusaram a ideia, supostamente por “temerem ligações a Israel”.

Das várias reuniões de alto nível que o Papa teve durante esta visita, a mais extraordinária, porque sem precedentes na história religiosa moderna, foi o encontro de 40 minutos com o nonagenário Grande Ayatollah Ali Sistani, considerado “a mais influente autoridade xiita”.

A audiência foi privada, na casa espartana do recluso Sistani, em Najaf, uma “cidade santa” por aqui estar sepultado ‘Alī ibn Abī Tālib, que os discípulos veneram como legítimo herdeiro de Maomé. Foi uma disputa pela sucessão do profeta do Islão, entre os partidários de Ali (genro e primo) e os de Abu Bakr (sogro e primeiro companheiro), que dividiu os muçulmanos em sunitas e xiitas.

A um Papa de casula e solidéu brancos, que se descalçou para o ver, Sistani, no seu turbante e túnica negros, ofereceu mais do que a honra rara de se levantar para o receber: abriu-lhe as portas de uma parceria estratégica entre católicos e xiitas numa das regiões mais convulsivas do mundo.

“Os cristãos, como todos os iraquianos, devem viver em paz e segurança, com plenos direitos constitucionais”, declarou o anfitrião. “É dever dos dirigentes religiosos proteger todos os que nos últimos anos foram vítimas de injustiças.”

Às palavras de Sistani seguiu-se a decisão do primeiro-ministro de declarar o 6 de Março “Dia Nacional de Tolerância e Coexistência”. Os cristãos e outras minorias agradecem a solidariedade, mas do que gostariam mesmo era que cessassem as campanhas de intimidação contra as suas comunidades (e as comunidades sunitas), por parte de milícias xiitas, sobretudo as que o Irão financia para confrontar tropas americanas no Iraque.

 

Uma voz poderosa

Sistani é uma voz poderosa e decisiva na política iraquiana. Em 2004, depois de obrigar os EUA a alterarem os seus planos de transição pós-invasão, foi ele quem uniu as fações xiitas desavindas, para aceitarem eleições e uma Constituição. Quando a Al-Qaeda começou a massacrar xiitas e a destruir à bomba os seus santuários, ele aconselhou os fiéis a não procurar vingança. Mas, em 2014, perante o avanço do autoproclamado Estado Islâmico, apoiou “tacitamente” a criação de Unidades de Mobilização Popular (milícias extrajudiciais que se tornaram num pesadelo), para evitar o colapso das forças de segurança iraquianas.

Em 2019, na sequência de gigantescas manifestações de protesto – que uniram jovens xiitas e cristãos – contra um sistema “sectário e corrupto”, um sermão de Ali Sistani, de apoio aos manifestantes, conduziu à demissão do então chefe de Governo, Adil Abdul-Mahdi. Todos precisam da sua bênção.

Perseguidos, tal como os curdos, durante o regime secular de Saddam Hussein – um ditador que “tolerava” os cristãos (nomeou um deles, Tarek Aziz, ministro dos Negócios Estrangeiros), embora os sujeitasse a “programas de repovoamento”, para os afastar das regiões mais ricas – os xiitas, a maioria da população, tornaram-se no poder dominante após a invasão americana.

Líder da Hawza, a mais importante instituição xiita, Sistani é responsável por um seminário criado em Najaf no século XI. A Hawza oferece apoio espiritual e forma teólogos em jurisprudência ou exegese do Corão. Não depende de nenhum governo, em termos financeiros, políticos ou intelectuais. É financiada por 250 milhões de xiitas espalhados pelo mundo.

Depois de meses de negociações, a escolha de Sistani como interlocutor, um ayatollah nascido no Irão que insiste na separação entre Estado e religião, parece indicar que o Papa confia mais na milenar “escola de Najaf”, do que na de Qom, um púlpito que existe há menos de um século, mas que beneficia dos milhões nele investidos desde que outro ayatollah, Khomeini, lançou as bases para derrubar a monarquia persa e instaurar uma república islâmica, em 1979.

Sistani nunca reconheceu o conceito de velayat e-faqhi (governo do jurista) imposto aos xiitas iranianos por Khomeini, e não mantém contactos diretos com o radical Ayatollah Ali Khamenei, atual Guia Supremo em Teerão.

Tendo o Papa como aliado, Najaf poderá recuperar a projeção internacional que Qom lhe retirou. E Sistani (ou o seu sucessor) poderão oferecer aos cristãos a garantia de proteção que Francisco pediu para a sua Igreja.

 

Guardião da sociedade

No seu livro The Shia Revival: How Conflicts Within Islam Will Shape The Future, o académico iraniano Vali Nasr refere vários paralelismos entre o xiismo e o catolicismo. Por exemplo, “a hierarquia xiita é semelhante à católica, a única diferença está no facto de o xiismo não ter um papa para impor a doutrina e ser a congregação quem decide a proeminência de um ayatollah”.

Também as procissões da Ashura, que comemoram o martírio de Hussein, filho de Ali, são muito parecidas com as cerimónias da Via Sacra, e até as práticas mais extremas de flagelação se comparam aos rituais de alguns penitentes na Semana Santa. No xiismo, tal como no catolicismo, há ainda a devoção a santos, a crença no livre arbítrio (em oposição à doutrina sunita da predestinação) e orações de intercessão.

A Hawza de Najaf é “a guardiã da sociedade e uma válvula de segurança em tempo de crises”, diz Marsin Alshamary, investigadora no think-tank Brookings Institution, em Washington, que prepara um livro sobre o “clero” xiita.

Ao unir-se ao xiita Sistani, depois de, em 2019, ter assinado com o sunita Ahmad Al-Tayyeb, Grão-Imã da Mesquita de Al-Azhar no Cairo, a Declaração sobre a Fraternidade Humana, Francisco reforça as fundações do diálogo inter-religioso, na esperança de realizar o sonho de uma irmandade universal, inscrito na sua encíclica Fratelli Tutti (“Todos Irmãos”).

 

Margarida Santos Lopes é jornalista

 

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