“As raízes da cultura estão naquelas obras chamadas clássicas, obras cuja mensagem se não esgotou e permanecem fontes vivas do progresso humano.”
(Apresentação da colecção de Textos Clássicos da Fundação Calouste Gulbenkian)

Estátua: O Desterrado, Soares dos Reis
“A Ausência tem uma filha / Que tem por nome Saudade / Eu sustento mãe e filha / Bem contra minha vontade” (quadra popular).
Há noutros países e culturas o conceito de “saudade”. Mas a filóloga Carolina Michaëlis considera que este vocábulo tem uma importância peculiar na língua portuguesa.
Saudade e morrer de amor
A saudade e o morrer de amor são expressos e repetidos desde os primórdios da literatura portuguesa, nas versões popular, oral e erudita.
Ainda segundo C. Michaëlis, a origem do latim solitates, [solidão, no plural] evoluiu foneticamente para: soedade; soïdade; suïdade; saùdade; sáudade.
A alteração do grupo /-oi / para /-au /, deve-se à interacção com os vocábulos salute e salutate (saúde, dar a salvação, isto é, cumprimentar).
A “Renascença Portuguesa” e a revista “Águia”

O saudosismo foi um movimento literário de um grupo de intelectuais, no Porto, no início do séc. XX, à volta do movimento Renascença Portuguesa, fundado por Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra, que publicavam a revista Águia (1910-1932).
Teixeira de Pascoaes (1877-1952), escreveu Maria Alzira Seixo, foi “um dos gigantes literários” do século XX, para quem “a saudade é um misto de lembrança e esperança.
Pascoaes é considerado um dos grandes poetas portugueses, ao lado de Camões, Antero de Quental e Fernando Pessoa. Este define assim a poesia de Teixeira de Pascoaes: “Espiritualização da Natureza e ao mesmo tempo a materialização do Espírito”.
Pascoaes é, sobretudo, um místico. Eis um pequeno excerto de um dos seus poemas (de O Poeta).
(…) “Não posso abrir os olhos sem abrir / Meu coração à dor e à alegria. / Cada cousa nos sabe transmitir / Uma estranha e quimérica harmonia! / (…) As cousas que me cercam, silenciosas, / São almas a chorar, que me procuram. / Quantas vagas palavras misteriosas, / Neste ar que aspiro, trémulas, murmuram!”
Influências culturais na Península

Na Ibéria houve um cadinho de diversas culturas; umas, baseadas na Realidade tangível; outras, no culto do Espírito.
O calor do fogo reuniu todos: era já (… ) a família,… o alicerce eterno de uma Pátria … a velha lareira [nas famílias rurais] é um santuário com as imagens dos Avós. A Lembrança prende-nos às suas almas e a Deus, por intermédio delas. O nosso cristianismo tradicional adapta-se a esta concepção religiosa da Família, que ele diviniza pelo culto de Maria, o tipo supremo da Mãe. (Teixeira de Pascoaes)
(…) As coisas “falam” à nossa sensibilidade, (…) aos nossos sentimentos… Já Horácio, [poeta latino] considerava as palavras como seres que nascem, transformam-se, envelhecem e morrem. (…) as Descobertas foram uma obra essencialmente portuguesa, porque o génio português, encarnado em Camões, [em Os Lusíadas] deu-lhe a forma espiritual, sublimada e eterna. (idem)
Na literatura oral e popular portuguesa

No cancioneiro popular, encontramos formulações poéticas semelhantes às da literatura culta: “Ó noite que vais crescendo, / Tão cheia de escuridão, / Tu és a flor mais bela / Dentro do meu coração!”; “Adeus, minha saudade, / Espelho do meu sentido.”
Eis a evocação misteriosa da saudade, unindo contrários. Nós, portugueses, somos mais emotivos do que intelectualizantes. Filósofos, há poucos; o mesmo para a música e a matemática.
A emoção afoga a inteligência, ultrapassando-a como força criadora. (…) A ciência vê; a Poesia visiona, transcendentaliza o objecto contemplado; eleva o real ao ideal… converte a matéria em espírito... o nosso cristianismo, misto de matéria, de humanidade e espírito, tão patente nas romarias, também aí se exprime (Pascoaes):
“Nossa Senhora da Veiga, / Ela lá vai Douro acima, / Com a cestinha no braço / fazer a sua vindima”.
“Lá vem o Baptista abaixo / Vestido de azul ferrete,/ Numa mão traz a custódia / Noutra traz um ramalhete”.
Comemora-se, assim, a alegria de viver, a abundância da vida. Também na lírica camoniana (séc. XVI), a saudade está muito presente. Vejamos a primeira quadra deste soneto, por exemplo: “Aquela triste e leda madrugada / Cheia toda de mágoa e de piedade, / Enquanto houver no mundo saudade / Quero que seja sempre celebrada.”
Nas antiquíssimas Cantigas de Amigo, oriundas da poesia popular – interpenetração de cantares árabes, moçárabes e judaicos, a saudade está presente (anteriormente já referimos esta temática).
Num excerto do poema “Cantiga Partindo-se” de Juan Roiz de Castel’ Branco (séc. XV), do Cancioneiro de Garcia de Resende (séc. XV), os fonemas ressoam harmoniosamente criando uma melancolia melódica:
“Senhora, / Partem tam tristes / Meus olhos por vós, meu bem / Que nunca tam tristes vistes / Outros nenhus por ninguém //. Tam tristes, tam saudosos / Tam doentes da partida / Tam cansados, tam chorosos, / Da morte mais desejosos / Cem mil vezes que da vida //…
Não faltam exemplos ao longo dos séculos da presença da “saudade”. No séc. XX, além de Pascoaes, podemos referir António Patrício, Raúl Brandão, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e outros.
(Nota: Foram consultadas as seguintes obras: Carolina Michaëlis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa; Teixeira de Pascoaes, A Arte de Ser Português e Poesia de Teixeira de Pascoaes, elaboração crítica de Silvina Rodrigues; Dicionário de Literatura Portuguesa dirigido por Jacinto Prado Coelho.)
Maria Eugénia Abrunhosa é licenciada em Românicas e professora aposentada do ensino secundário.