No passado dia 10, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa organizou uma conferência sobre o tema dos abusos, conforme o 7MARGENS noticiou. Pela importância do tema, da iniciativa e das intervenções nela realizadas, publicámos já as duas intervenções do coordenador e da socióloga Ana Nunes de Almeida, que integra também a comissão.
A seguir reproduzimos a intervenção de Álvaro Laborinho Lúcio, outro dos membros da Comissão Independente.

Álvaro Laborinho Lúcio, membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, no colóquio organizado pela comissão na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, 10 de Maio 2022. Foto © Ecclesia/HM
Com o advento dos chamados direitos humanos de terceira geração e, sobretudo, com a força reivindicativa que veio impulsionando a sua concretização, assistiu-se à chegada, ao direito e aos direitos, com autonomia própria, de novos «sujeitos» e, por via disso, a uma interessante inversão metodológica que não pôde deixar de reflectir-se na investigação, tanto a dogmática, como a empírica.
Desde logo, reabriu-se a discussão, aliás nunca definitivamente encerrada, em torno da questão, essencialmente jurídica, do Sujeito em Direito[1], disso sendo um bom exemplo, cruzado com a sua colocação em relação com evidentes manifestações de «justiça dramática», o que pode extrair-se do domínio dos chamados «Direitos da Criança», tomando desta a dimensão que resulta da previsão consagrada na respectiva Convenção das Nações Unidas[2].
Matéria que a muitos títulos interpela hoje a comunidade, estamos perante um tema de capital importância não só tendo em conta a sua dimensão social e humana, mas também em termos de verdadeiro conhecimento a produzir. É, aliás, este vazio, ainda apenas escassamente preenchido, que, em grande parte, explica muito da impreparação cultural e técnico-jurídica com que, amiúde, e a vários níveis, nos deparamos.
Desta feita, o objecto de estudo impôs a sua própria «complexidade» como condição da sua compreensão e, ao fazê-lo, veio convocar as mais diversas áreas do saber, indispensáveis, todas elas, para a formulação de princípios e para a formatação de regras positivas, tanto conceptuais, como de acção prática.
Até aí, tudo se desenrolara como se resultasse da própria natureza das coisas a desjurisdicização do objecto a estudar, remetido, assim, para os domínios científicos tidos por axiologicamente neutros, ou pouco relevantes. Entretanto, a tradicional e velha cisão entre cultura e natureza encarregara-se de fazer o resto, deixando o Direito, enquanto dever-ser, com a cultura, e adjudicando a Criança, enquanto ser objecto, ao domínio próprio da natureza.
Hoje, porém, com a declaração de que «a criança é um sujeito de direito», tudo tende a modificar-se, sendo certo que a expressão assim construída, vem colocar logo, na sua decomposição, questões tão fundamentais e tão difíceis como as de saber o que é a «criança» – porventura a mais complexa de todas –; como se define e densifica, para o direito e fora de uma concepção tradicional de cunho essencialmente patrimonialista, a ideia de «criança sujeito»; e, finalmente, qual o conteúdo material do reconhecimento da «criança como sujeito de direitos» e, no limite, quais os direitos da criança.
Num traço grosso, valerá lembrar aqui o particular significado que assume, por exemplo, a conclusão de que a criança é um «sujeito de direitos autónomos»[3], e verificarmos, de imediato, como estamos ainda longe de a ter como pacífica, mesmo entre aqueles que partilham iguais referências éticas e semelhantes perspectivas ideológicas. Era – recordemo-lo – Hannah Arendt, quem reconhecia efeitos perversos à autonomia dos direitos da criança, entre os quais o da «constituição de um mundo autónomo da infância que supostamente tem os seus gostos, as suas necessidades e as suas lógicas próprias» o que bem poderia conduzir a que se engendrasse, assim, «artificialmente, um novo espaço de consumo cujo horizonte não é certamente, à partida, o da emancipação da criança»[4].
Ora, se é certo que estas valem, sobretudo, como reservas preventivas perante os desvios previsíveis a que não deixarão de estar sujeitos, na sua compreensão e no seu aproveitamento por terceiros, os direitos próprios da criança – não parecendo, todavia, que possam constituir obstáculo bastante à consagração destes e à imposição do seu respeito pela comunidade em geral – o que importa, na parte que agora nos interessa, é reter a existência do problema, e transformá-lo em objecto de estudo com vista à produção de mais e de melhor conhecimento.
A criança, sujeito de direitos

Foto Lisa Runnels/Pixabay
Desde logo, na esteira de Alain Renaut, começando por assumir a existência de uma «cultura da criança», que nos leva a «identificar bem no outro eu que é a criança uma dimensão de alteridade ou de dissemelhança que conduz a conferir-lhe direitos específicos», enquanto direitos próprios e autónomos, pelo simples facto de ser criança[5].
Serão, assim, tanto o conhecimento como o reconhecimento dessa «cultura da criança» que permitirão, eventualmente, evitar a possível e perigosa perversão de que falava Hannah Arendt. Uma Cultura, então, que, desse modo, haverá-de impor-se ao Direito, obrigando, quer na fase da sua criação, quer nas da sua interpretação e da sua aplicação, a um esforço de observação crítica, que permita reter, dos Direitos da Criança, não apenas uma visão cognitiva, estática, formal, de narrativas meramente enunciativas, mas sobretudo uma perspectiva criativa e dinâmica, envolvida por narrativas também portadoras de dimensão prospectiva a dirigir tanto para dentro como para fora do campo epistemológico próprio do jurídico. Cultura da criança, essa, por outro lado, essencial ainda para uma mais rigorosa compreensão de conceitos, hoje fartamente repetidos, mas – convenhamos – muito exiguamente trabalhados e assimilados e raramente integrados numa efectiva prática de vida. É o que sucede tanto, como vimos, com a proclamação de que a criança é sujeito de direitos, como com o voto, constantemente jurado, de respeito pelo superior interesse da criança, na linha, aliás, da imposição expressa no artigo 3.º da Convenção das Nações Unidas.
Ora, tudo parece apontar para que seja justamente a partir da consideração da criança como ser autónomo e completo, embora diferente do adulto, e procurando conhecê-la nessa diferença culturalmente identificadora, que se chegará à criança enquanto sujeito. Importa, pois, nas palavras de Manuel Jacinto Sarmento, ter a consciência de que «conhecer as ‘nossas’ crianças é decisivo para a revelação da sociedade, como um todo, nas suas contradições e complexidade. Mas é também a condição necessária para a construção de políticas integradas para a infância, capazes de reforçar e garantir os direitos das crianças e a sua inserção plena na cidadania activa».
Só a partir daí, será possível a densificação do conceito de interesse superior da criança. Para, apenas depois, se lograr, finalmente, a formatação da figura da criança sujeito de direitos. O que, a ser assim, desde logo, permitiria concluir ser o superior interesse da criança a determinar, na fase da sua criação, os direitos próprios da criança, de que ela será sujeito e titular, e não estes a pré-definirem aquilo que venha a ser o superior interesse da criança. Eis aqui uma questão a interpelar a Doutrina e a fazer prever nela bem diferentes tomadas de posição, desde logo em pura sede hermenêutica, com profundas consequências na criação e no desenvolvimento de uma ainda ausente, mas desejável Teoria Geral dos Direitos da Criança.
Seja, porém, qual for a orientação adoptada, parece pacífico poder afirmar-se que só aí se inscreverá, então, a passagem da clássica figura da criança objecto de direitos, para a moderna concepção da criança sujeito de direitos.
Como assim facilmente se entenderá, é a ideia de criança sujeito, conjugada com a dimensão cultural que há-de enformar, em cada caso, o conteúdo do superior interesse da criança, que determina o sentido e os limites do próprio direito da criança, ou, dizendo de outro modo, do direito que tem a criança como sujeito.
O interesse superior da criança

A ilustração do artista TVBoy, sobre os abusos sexuais. Foto: Direitos reservados
É, pois, da criança, como ser antropologicamente definido, que cumpre partir ao encontro do direito e, aí, dos seus próprios direitos, bem como do elenco dos deveres correspondentes. Não faz, pois, mais sentido caminhar, inversamente, indo dos direitos previamente previstos em termos gerais e abstractos, até à criança, para, então, os aplicar a ela, com as necessárias adaptações. Seja isso conseguido através de uma aquisição progressiva dos direitos por parte do sujeito, seja reconhecendo-lhe o pleno exercício dos direitos civis com as referidas adaptações, seja ainda partindo do reconhecimento, na criança, de todos os direitos exceptuando aqueles que seriam enumerados exaustiva e taxativamente. Na verdade, todas estas soluções acabam por partir dos direitos já constituídos tendo como paradigma o sujeito plenamente revestido de capacidade jurídica de exercício, ao encontro da criança, e não, da criança para os seus direitos próprios, a reconhecer e a consagrar como tal.
Ora, é para esta inversão que a Convenção abre portas, cabendo ao legislador ordinário, em cada Estado subscritor, conformar o direito positivo ao objectivo assim definido; e à Doutrina, elaborar os respectivos fundamentos, criando, para o direito da criança, uma teorética e uma dogmática também próprias, partindo, repete-se, do concreto que é a criança, e não do abstracto ficcionado no qual ancorou por demasiado tempo a figura do menor. Assim se compreende bem a distinção substantiva entre «os direitos da criança» e «a criança e o direito».
Daí que se imponha, desde logo, e a título de exemplo, prosseguir o estudo, sempre renovado, sobre a figura do interesse superior da criança, com vista a densificar o conceito e a erigir critérios que reduzam a sua indeterminação e, bem assim, a surpreender mais dados que possibilitem um seu diálogo mais rigoroso, agora com a figura da criança sujeito de direitos.
Constitui, esta, uma matéria de cuja penetração axiológica não pode duvidar-se, o que impõe necessariamente um esforço adequado nos planos das referidas dogmática e teorética que preserve, nos direitos da criança, a segurança que apenas um jurídico comprometido, entre vários outros, com o antropológico, o social, o psicológico, etc., lhe pode garantir.
Tomemos, de tudo, um exemplo, extraído da figura do abuso sexual de crianças.
Evoluções do Código Penal

Infância. Abusos. Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons
Como marco decisivo na evolução do tratamento do bem jurídico em matéria de crimes sexuais, encontra-se a significativa revisão do Código Penal Português de 1982, ocorrida em 1995. Aí, pela primeira vez, o Capítulo respectivo do Código Penal veio tratar «DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE E A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL», deixando definitivamente para trás a nomenclatura vinda do Código de 1886, onde estes crimes se tratavam como crimes «CONTRA A HONESTIDADE»; e, mais tarde, a que, de forma já pouco compreensível, o novo Código Penal de 1982 veio a adoptar para prever os mesmos crimes, então sob o Título «DOS CRIMES CONTRA VALORES E INTERESSES DA VIDA EM SOCIEDADE», integrando-os no Capítulo relativo aos «CRIMES CONTRA OS FUNDAMENTOS ÉTICO-SOCIAIS DA VIDA SOCIAL» e, aí, na Secção «DOS CRIMES SEXUAIS».
Foi, pois, apenas na reforma de 1995 que os crimes sexuais passaram a ser considerados crimes contra as pessoas «e contra um valor estritamente individual, o da liberdade de determinação sexual», abandonando-se, além de outras concepções, aquela que, fundada no respeito pela «moralidade sexual», não só influenciara o Direito Penal chamado a defender os bons costumes e a honestidade, como também o próprio Direito Canónico voltado para «a punição de princípio de toda e qualquer actividade sexual extra-matrimonial ou mesmo contra o pudor» e sempre, directa ou indirectamente, ligada à violação do Sexto Mandamento do Decálogo. É então, e só então, que o Direito Penal abandona a punição fundada em referências de ordem moral, mais próprias de um «interesse da comunidade», avançando para a «protecção da liberdade sexual das pessoas».
Por via disso, é ainda a Lei Penal que vem estabelecer a diferença entre LIBERDADE SEXUAL e AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL, tomando esta como bem jurídico a tutelar sempre que a vítima seja «menor de 14 anos» (abuso sexual de crianças) e estendendo-a, conforme os casos, a menores entre 14 e os 18 anos (abuso sexual de menores dependentes), ou entre 14 e 16 anos (actos sexuais com adolescentes; e actos homossexuais com adolescentes).
Afinal, o que estava verdadeiramente em causa era o relevo a conceder à pessoa da vítima e, por isso mesmo, à relação desta com o bem jurídico a tutelar pelo direito.
Enquanto isto, entre o Código Penal de 1982 e a sua Revisão, em 1995, foi aprovada, em 1989, e ratificada por Portugal, em 1990, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Aí, operou-se, em definitivo, a passagem do menor – figura abstracta, criada pelo direito – para a criança – realidade antropológica, anterior ao próprio direito –, agora acolhida como sujeito de direito, tida como pessoa revestida de dignidade humana, titular de direitos, nomeadamente o da sua própria protecção. Por isso que a lei fale em «abuso sexual de crianças», mantendo, embora, aqui e ali, o qualificativo de menor.
Mais importante, porém, são os passos que parte da doutrina jurídica veio a dar na ampliação do bem jurídico protegido pelas normas que punem tal tipo de criminalidade. É assim que, à liberdade de determinação sexual, veio juntar-se, a par da autodeterminação sexual, o «livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual», desse modo cumprindo, o Direito, aquela «função de protecção penal das crianças e dos jovens até certos limites de idade», assegurando-lhes, dessa forma, um normal «desenvolvimento da vida sexual».
Pode, assim, afirmar-se que, a partir de 1995, a par da consideração da criança como sujeito, vinda, ainda que timidamente, já de antes, se desenvolve, no âmbito do Direito Penal e em torno dos crimes sexuais, um modelo de previsão, repressão e reparação centrado na pessoa da criança/vítima, e não, como vimos, no interesse da comunidade e na projecção nesta, dos efeitos da acção criminosa na honestidade da vítima, na moralidade sexual, enfim, nos bons costumes e na imagem pública das instituições, nomeadamente religiosas.
O Direito Canónico e o Sexto Mandamento

Ilustração Churchandstate.org
Com algumas semelhanças, mas ainda em termos bem diferentes, foi evoluindo o Direito Canónico. Quer na versão do Código de 1917, quer na de 1983, aprovada na linha dos princípios estabelecidos pelo Concílio Vaticano II, a previsão dos abusos sexuais em geral, e daqueles outros praticados sobre «menores», decorria sempre, como vimos, da violação do «Mandamento Sexto do Decálogo». A relação entre a culpa do agente (sacerdote, clérigo ou outro) e o juízo de censura correspondente esgotava-se no interior dessa outra relação entre o infractor e os valores próprios da Igreja, assim postos em causa. O sujeito sobre quem se exercia o abuso surgia, pois, como elemento externo, distante do conceito civil de vítima. Por isso é que jamais se encontra qualquer referência, nomeadamente à honestidade, mas sim, nesse ponto, apenas aos bons costumes, cuja violação se repercutia também na imagem pública da Igreja, esta, assim, também ela, eleita como vítima da acção do agente infractor. O próprio agravamento da sanção, sempre que os abusos eram exercidos sobre menores de dezasseis anos, se explica pela maior gravidade do ilícito e pela repercussão dessa gravidade no prestígio moral e nas exigências espirituais da Instituição.
Ora, esta é, ainda hoje, embora já apenas em parte, a cultura que inspira a Doutrina da Igreja nesta matéria, todavia, com significativas alterações que cumpre sublinhar e realçar.
Sem embargo do evidente esforço de actualização, persiste, é certo, a qualificação dos delitos «contra os costumes» e a acomodação dos abusos sexuais como delitos «contra o sexto mandamento do Decálogo». Porém, várias são as alterações introduzidas, valorizando, agora sim, a pessoa vítima do abuso, sendo certo que vários passos decisivos, entretanto, foram dados, designadamente pelo Papa [Francisco], ele próprio, de entre eles se destacando a sua Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio “Vos Estis Lux Mundi”, onde, em 2019, Francisco começa por afirmar que «os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis». Para que tais fenómenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja, de modo que a santidade pessoal e o empenho moral possam concorrer para fomentar a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja».
Assim se vai aproximando o Direito Canónico, do Direito Penal do Estado, vindo ambos a convergir, com as naturais diferenças resultantes da natureza própria de cada um, na definição do valor a tutelar por ambos, também centrado na pessoa da vítima que, quando criança, se analisa, no Direito Canónico, na punição das condutas que provocam «danos físicos, psicológicos e espirituais» e, no Direito Penal, como vimos, na repressão das práticas que atingem «o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual».
E a mudança não é, evidentemente, desprezível.
Ao colocar a vítima, também ela, no centro da ofensa, e nos termos em que o faz, é o próprio Direito Canónico a reconhecer a excepcional importância dos efeitos externos dos abusos sexuais cometidos no seio da Igreja, valorizando a vítima sofredora da ofensa e, assim, recusando a ocultação das suas práticas, tidas, até há pouco, como violadoras apenas, ou essencialmente, de valores e interesses próprios da Instituição.
Esse «outro» que tanto nos interpela

Foto Soupstock
Um último tema, entre tantos outros possíveis, importa deixar para reflexão.
Vai já longa a lista de exemplos de maus-tratos, abusos sexuais, abandono, falta de afeição, ou negligência que colocam a criança em situação de perigo. A sua afirmação como ser autónomo e completo, obviamente diferente do adulto, não nega, antes a confirma, a sua condição de ser-em-desenvolvimento e, também por isso, de pessoa a proteger. E, todavia, é a relação da criança com o direito, nele se «intrometendo» como sujeito, que vem dar, à protecção assim referida, a natureza de objecto do respectivo direito, ou seja, do direito à protecção. Dizendo de outro modo, é a criança, enquanto sujeito, que é titular do direito à protecção, nomeadamente, com vista a ver assegurado outro seu direito, agora, a um desenvolvimento harmonioso e saudável. Direito à protecção que, por radicar na pessoa do sujeito-criança, pressupõe, no Estado e na comunidade em geral, o correspondente dever de o garantir e respeitar, como verdadeira obrigação erga omnes.
É, portanto, e sempre como sujeito que a criança é vítima, pelo que jamais pode ser tida como objecto de maus-tratos, abusos sexuais, abandono, falta de afeição ou negligência, mas sim, sempre, como sujeito de direitos, dessas formas violados.
É essa, pois, em última análise, a imagem da criança-sujeito. Da criança recebida no interior do direito e capaz de condicionar a própria formação e a interpretação deste.
É, afinal, isso que significa a expressão «A Criança e o Direito». Ou, mais impressivamente ainda, a que afirma «A Criança no Direito». A criança! Esse «outro» que tanto nos interpela.
Lisboa, Maio de 2022
Álvaro Laborinho Lúcio é juiz conselheiro e escritor, tendo desempenhado as funções de Ministro da Justiça (1990-1995). Este texto incorpora passagens de outros escritos do autor, já publicados; os subtítulos são da responsabilidade do 7MARGENS.
Notas
[1] Cfr. Por todos, aqui, Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, Lisboa, 1995, pp. 29 e ss. Noutro plano, entretanto, Alain Touraine não deixa de referir que é a «passagem dos direitos mais abstractos aos mais concretos que conduz à realidade do sujeito» – Ob. Cit., p. 128
[2] Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, de 20 de Novembro de 1989.
[3] Cfr. Relatório das audições efectuadas no âmbito da «avaliação dos sistemas de acolhimento, protecção e tutelares de crianças e jovens». Assembleia da República Portuguesa – Comissão de Assuntos Constitucionais de Direitos, Liberdades e Garantias – Subcomissão de Igualdade de Oportunidades.
[4] Apud Alain Renaut, O Fim da Autoridade, Lisboa, Instituto Piaget, 2004, pág. 105
[5] Idem.