
O padre Rupnik tem uma relação longa com a Comunidade Loyola, onde várias religiosas o acusam de abuso espiritual e sexual. Foto © samstudij, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons.
O processo aberto no Vaticano sobre o comportamento do padre jesuíta, teólogo e artista Marko Ivan Rupnik foi encerrado, por ter prescrito a matéria de facto. Os abusos físicos, psicológicos e sexuais de várias religiosas da Comunidade Loyola, alegadamente praticados na primeira parte dos anos 90, estendem-se à Eslovénia e à Itália e o seu sofrimento certamente não prescreveu, como salientaram várias fontes conhecedoras do processo esta segunda-feira ao 7MARGENS.
Também o ex-provincial da Província Euro-Mediterrânea da Companhia de Jesus, padre Gianfranco Matarazzo, criticou a falta de referência às vítimas: “Nós, jesuítas, identificamo-nos, com mérito e sem mérito, com as fronteiras da fé, da justiça, da caridade, do diálogo, da atenção aos pobres, da investigação”, escreveu na sua conta do Twitter, o padre Matarazzo, que já foi também o diretor do Instituto Pedro Arrupe de Formação Política de Palermo, e é delegado para o apostolado social e delegado para os abusos.
As vítimas – as que sofreram violências e abusos e as que as acompanharam – parece serem as únicas que têm de continuar a sofrer. Até ao momento, nem da parte do Vaticano, nem da Companhia de Jesus, nem do próprio padre houve um gesto público para com as vítimas.
“Agarramo-nos à prescrição e esperamos que tudo pare aqui. O Senhor está a chamar-nos para esta abordagem?”, criticou o padre Matarazzo na sua mensagem no Twitter. Considerando o caso um “tsunami de injustiça, falta de transparência” de uma “comunidade apostólica sacrificada ao líder”, acrescenta que a declaração dos jesuítas sobre o assunto “relança este tsunami” e revela “um caso paradigmático de justiça negada: nem mesmo o suposto agressor foi ajudado”.
O caso provoca “um dano moral” aos jesuítas e mais ainda à Igreja e por isso o responsável dá cinco sugestões do que considera que deve ser feito: aceitação total das responsabilidades e consequências; reconstruir de forma detalhada tudo o que aconteceu; convocar uma conferência de imprensa e responder a todas as questões de forma transparente; abertura dos arquivos. Na última dirige-se diretamente ao padre Zollner, também jesuíta, do Instituto de Psicologia da Universidade Gregoriana e membro da Comissão de Proteção de Menores do Vaticano, “uma voz autorizada sobre os abusos e que é sempre exigente com os bispos no que diz respeito ao tratamento desta tragédia: tome posição sobre a sua ordem”, pede.
O que está em jogo neste caso, que merece ser analisado, obriga a perceber aspetos do percurso do padre Marko Rupnik e o que o levou a cruzar-se com a comunidade de consagradas, numa altura em que ele iniciava também a sua ascensão no campo artístico e teológico.
Conhecimento e amizade com a Comunidade Loyola
Rupnik nasceu em 1954 na Eslovénia, onde entrou, aos 19 anos, na Companhia de Jesus. No seminário são-lhe reconhecidos os dotes artísticos, o que leva os superiores a enviá-lo para a Academia de Belas Artes de Roma. Depois dos estudos teológicos, fez, em 1991, na Universidade Gregoriana, um doutoramento orientado por aquele que viria a ser o seu mestre, o futuro cardeal Tomáš Špidlík. Nesse mesmo ano, abriu, numa zona nobre de Roma, o Centro Aletti, num histórico palacete doado aos jesuítas e no qual ele instalou o seu estaleiro e centro criativo, com perto de duas dezenas de colaboradores de várias partes do mundo. Foi diretor desse Centro até 2020.
A ligação do artista teólogo à Comunidade Loyola tem origem ainda em Liubliana (capital da Eslovénia) e, mais tarde, com pessoas que foram, como ele, estudar para Roma. Outras se juntaram, entretanto. O surgimento informal da Comunidade dá-se na primeira metade dos anos 1980, ainda que a constituição formal tenha ocorrido apenas em outubro de 1994, na diocese de Liubliana, como “instituto de direito diocesano”. Ali ficou a casa-mãe, criando-se uma outra casa em Roma como sede generalícia. Hoje, a Comunidade tem casas em meia dezena de países, na Europa, África e América Latina.
Rupnik tinha, de há muito, relações de conhecimento e amizade com a instituição, nomeadamente com aquela que viria a ser a superiora geral, e ali começou a ser presença regular, assumindo-se como confessor e conselheiro espiritual. Não se conhece em pormenor o que se terá passado, mas, em 1993, no decorrer de uma peregrinação ao Santuário da Virgem Negra de Częstochowa, na Polónia, terá ocorrido a rutura entre o padre e a superiora geral.
Dois anos depois, uma consagrada que terá saído, entretanto, da Comunidade, faz a primeira denúncia de abusos, tendo como alegado perpetrador o padre Marko Rupnik.
A vítima em questão terá sido ouvida no quadro de um processo aberto para analisar o caso, mas os resultados dessa inquirição não são conhecidos. Surge, no entanto, a queixar-se de que os sucessivos encontros que teve com o inquiridor e a alegada gravidade da matéria denunciada não terão produzido qualquer efeito. Terá sido uma das que voltou a colocar o assunto junto do Dicastério para a Doutrina da Fé, como o 7MARGENS relatou esta segunda-feira.
Uma comunidade em risco de desagregação

Pormenor de mosaico de Rupnik: por causa do padre, a Comunidade Loyola está em desagregação. Foto © Sandro Rossi, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.
A rutura entre o padre e a superiora geral, a que se aludiu atrás, acabaria por ser traumática para a própria comunidade, uma vez que um grupo de consagradas se colocou ao lado do jesuíta (várias delas continuam hoje a integrar, com ele, a equipa do Centro Aletti), ao passo que outras aceitaram ou, pelo menos, não contestaram a versão da responsável pela Comunidade, que tinha levado ao afastamento do presbítero e das suas apoiantes.
O que é certo é que, a partir daí, a vida da comunidade nunca mais foi a mesma, vindo à superfície práticas autoritárias, queixas de abusos espirituais e psicológicos e uma crescente crise em torno do carisma da própria Comunidade. Pelo meio, foi-se tornando claro que os alegados abusos do padre Rupnik tinham ocorrido com várias outras consagradas. Este assunto tornou-se internamente tabu, mas os efeitos e seus desenvolvimentos perduraram.
A situação interna de decomposição chegou a um ponto que levou a Congregação do Vaticano para os Religiosos e a Vida Consagrada a decidir, em outubro de 2020, realizar uma “visita canónica” preliminar àquele instituto. Dela resultou a identificação de situações de “insegurança, medo e descontentamento”, problemas na liderança da Comunidade, decorrentes de dificuldades entre esta e a superiora geral e, finalmente, dificuldades das consagradas de interpretar a própria Constituição da Comunidade.
Com estes sinais a agravarem-se, o bispo de Liubliana entendeu solicitar a nomeação de um comissário extraordinário, que recaiu na pessoa do bispo auxiliar de Roma, Daniele Libanori. Este bispo, também oriundo da Companhia de Jesus, assumiu funções em finais de 2020, assumindo igualmente, com esse encargo e durante a sua vigência, todas as responsabilidades administrativas de condução do instituto Comunidade Loyola.
Uma carta dirigida diretamente ao Papa
Ao que o 7MARGENS apurou junto de fontes eclesiásticas conhecedoras do processo, o relatório deste comissário foi entregue no verão passado, depois de o seu autor, o bispo Daniele Libanori, ter auscultado cada uma das consagradas do instituto. Não se conhecem nem o conteúdo da informação reunida nem as conclusões, aguardando-se, neste momento, o veredicto das autoridades eclesiásticas.
Entretanto, a revista italiana Left [Esquerda], que tem aberto em permanência um endereço para denúncias de abusos sexuais, recebeu, em resultado de uma primeira notícia sobre este caso, cópia de uma carta dirigida, em 2021, ao Papa Francisco por parte de alguém que diz ter sido por mais de 30 anos membro da Comunidade e é agora apoiante da intervenção determinada superiormente. Nessa missiva, a subscritora lamenta o facto de “um número considerável de irmãs” se oporem ao processo de modificações que deverão decorrer da intervenção, considerando “infundadas” e reveladoras de atitudes “persecutórias” da fundadora as denúncias da situação interna da comunidade e a ação empreendida pelos responsáveis eclesiásticos.
“Nos primeiros tempos, diz essa carta, a comunidade foi também marcada por abusos de consciência, mas também emocionais e presumivelmente sexuais pelo padre Marko Ivan. Como amigo da fundadora e de várias irmãs de então, Rupnik teve uma presença constante na vida pessoal de todas as irmãs e da comunidade como um todo.”
A carta, que a revista Left diz estar assinada e ter sido apenas uma de várias outras com o mesmo destinatário, lamenta também que nunca tenham sido esclarecidas as responsabilidades no processo que conduziu ao afastamento do padre Rupnik da Comunidade. “Pelo contrário, foram praticamente encobertas e não denunciadas” pelas diretamente envolvidas, incluindo a superiora geral, que tinha conhecimento da situação.
Igreja e transparência

Pormenor de mosaico de Marko Ivan Rupnik diante da igreja de Ta Pinu (Gozo, Malta). Foto © Sandro Rossi, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Nas peças dedicadas, nos últimos dias, a este caso, o site Silere Non Possum [“Não posso calar”] procura criar, em torno do padre Rupnik, o cenário de uma figura poderosa e estimada, blindada por um “anel defensivo” na Cúria, perante a qual as denúncias das vítimas só poderão deparar com o comentário: “Mas não é possível!”
Dentro deste enquadramento, esta publicação dá a entender que conhece, pelo menos em linhas gerais, as conclusões do bispo Libanori acerca da credibilidade das vítimas e avança que interesses e movimentações internas estarão a travar o processo superiormente, nomeadamente no Dicastério para a Doutrina da Fé. Resta, porém, aguardar por um pronunciamento, provavelmente do Dicastério para a Vida Religiosa.
Mas confirmou-se a garantia que o mesmo site tinha dado de que o padre Rupnik havia sido já penalizado pelos superiores da Companhia de jesus. Mais: essas penalizações mantêm-se em vigor, apesar do arquivamento da denúncia que o envolve.
Também para a Comunidade Loyola, de acordo com o que o 7MARGENS soube, é importante e até decisivo que não se deixe mais degradar a situação a que se chegou, para que seja feita uma justiça reparadora às vítimas de todo o tipo.
Marko Rupnik é, para muitos setores, um “intocável” ou, no dizer do Silere Non Possum, “demasiado grande para falhar”. Foi (e é) íntimo ou próximo dos últimos três papas; é professor da Universidade Gregoriana e do Instituto Pontifício Litúrgico; é consultor de três dicastérios da Cúria (do Culto Divino, da Evangelização e do Clero – clicar no nome de Marko Rupnik em https://www.centroaletti.com/equipe/), entre várias outras funções que exerce, sendo os seus serviços solicitados um pouco por todo o mundo.
Aparentemente não se nota que esteja sujeito a medidas cautelares que restringem significativamente a sua atividade. Uma das referências expressas no comunicado emitido sobre este caso pela Companhia de Jesus era a proibição de exercícios espirituais. Mas, ao contrário do que dizia o comunicado, o padre Rupnik tem mesmo anunciados exercícios espirituais a padres e religiosos, em fevereiro próximo, no Santuário do Loreto, promovidos pela Delegação Pontifícia para esta instituição.