O historiador José Mattoso morreu neste sábado, 8 de Julho, depois de um tempo em que a doença de Parkinson foi tomando conta dele e debilitando-lhe as forças físicas – que não a vontade de continuar a ser “tão curioso, tão humilde a pensar a novidade, tão interessado pelo acontecimento de hoje”, como escreve Jorge Wemans no editorial do 7MARGENS. Não haverá cerimónias fúnebres, uma vez que o próprio decidiu doar o seu corpo à ciência.
Como forma de evocar parte da sua reflexão, publica-se a seguir uma entrevista publicada no Público de 29 de Abril de 2012 por ocasião da publicação do seu livro Levantar o Céu e reproduzida depois, no livro Diálogos com Deus em Fundo, com a introdução aqui repetida a seguir. Já depois destas datas, Mattoso publicou ainda A Escrita da História, Narrativas dos Livros de Linhagens e A História Contemplativa (todos na Temas e Debates/Círculo de Leitores).

José Mattoso: “A posição céptica é resultado de um certo realismo e lucidez..” Foto: Direitos reservados
O historiador José Mattoso manifesta esperança na bondade humana e diz que a vocação monástica continua a ser o seu apelo interior. Depois de o Círculo de Leitores ter reunido e publicado a sua obra historiográfica, José Mattoso publicou, em Abril de 2012, uma colectânea de ensaios “cívicos, espirituais, históricos e de senso comum”. O livro Levantar o Céu – Os Labirintos da Sabedoria (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores), pretexto desta entrevista, surge assim como um manifesto do saber de vida do historiador que, nascido em 1933, não desiste de um olhar lúcido sobre a contemporaneidade, criticando mesmo muitas das opções políticas e o actual poder do sector financeiro.
Prémio Pessoa em 1987, José Mattoso consagrou-se desde há muito à historiografia medieval e, dentro desta, à história das ordens religiosas e da aristocracia. Entre as suas obras, destacam-se Identificação de Um País, a biografia D. Afonso Henriques, e ainda A Nobreza Medieval Portuguesa, Poderes Invisíveis ou Naquele Tempo, todos incluídos nas Obras Completas. Foi ainda director de três colecções decisivas no panorama editorial português: História de Portugal, História da Vida Privada em Portugal e Património de Origem Portuguesa no Mundo.
O seu percurso de intervenção cívica e pública levou-o também a assumir o cargo de director da Torre do Tombo e a recuperar, em colaboração com a Fundação Mário Soares, os arquivos de Timor-Leste – daí resultando também o livro Dignidade – Konis Santana e a Resistência Timorense.
Tendo sido monge beneditino, José Mattoso continua a afirmar a sua convicção cristã profunda e a fazer dela o ponto de partida para este olhar sobre o passado e o presente e sobre os riscos e as perspectivas do futuro.
JOSÉ MATTOSO – Não, de todo. A posição céptica é resultado de um certo realismo e lucidez. Quando se vêem as estatísticas, o aumento do lixo nuclear, das consequências dos aditivos na indústria alimentar, tudo o que preocupa um cidadão normal, não se vê como se possa sair daí. As coisas têm repercussões tais que só a reunião de poderes universais pode alterar a direcção em que se vai. As estatísticas são implacáveis e seria cegueira não ver isso, embora as estatísticas não mostrem tudo.
Seria cegueira não encarar essa realidade…
Sim, mas esse é um ponto de vista racional. Do ponto de vista da fé, nada disso é fatal. Podemos ter uma atitude política, tentar intervir na realidade. Mas, se não formos conduzidos pela fé, o realismo leva-nos a desistir. O cristão tem possibilidade de se livrar dessa fatalidade na sua relação com o céu. Na metáfora que utilizo, levantar o céu, é trazer a terra ao encontro do céu.
Aí, não estamos sós. Temos a intervenção de Deus, temos a fé na redenção, no perdão dos pecados, no valor do sofrimento, na abnegação, na bondade… Temos também a fé na cultura, na inspiração extraordinária dos grandes artistas, que alcançam níveis fantásticos de captação da bondade, da beleza do mundo. E temos a renovação constante da vida: se há um incêndio numa mata, vemos daí a pouco aparecerem as flores, as ervas. A vida não desiste de se reproduzir, de envolver a realidade.
Fala da atitude política, mas hoje ela está subjugada ao financeiro. Estamos perante uma usurpação da democracia?
Não domino suficientemente a terminologia política para poder dizer se se trata de uma usurpação. Sei que o Estado tem mostrado a sua impotência perante os abusos do poder financeiro e que o sistema democrático não resolve os problemas actuais. Ninguém acredita no discurso político, nem mesmo quem o pronuncia. Os interesses corporativos viciam a democracia. O “governo do povo”, a democracia, não defende os direitos dos pobres e excluídos. Favorece quem já tem poder.
Impressiona a evocação que faz da tragédia ambiental. Está ameaçada a relação da humanidade com a natureza?
Creio que sim. A escassez de petróleo e de água, de todas as fontes de energia, mostra que é preciso um investimento enorme. A grande ameaça é a confiança que o homem põe na técnica. A ciência dá um poder enorme sobre a realidade. Uma parte dos cientistas atribui uma grande capacidade de resolução dos problemas à técnica. Mas esta, muitas vezes, adopta soluções que depois se revelam extremamente dispendiosas.
Somos incapazes de imaginar o mundo sem energia, sem movimento, sem Internet. As comunicações tornaram-se indispensáveis. Mas quais são os subprodutos?… A técnica não dá o poder de resolver os efeitos secundários.

Há anos, Lourdes Pintasilgo presidiu a uma comissão que elaborou o relatório Cuidar o Futuro. Estamos a pôr em causa as futuras gerações?
Sim, é de tal modo uma evidência que espanta que não se veja isso. Todavia, o imediatismo na resolução dos problemas não deixa adoptar soluções de longo prazo. Não há nenhum político que se atreva a propor que se deixe de ter electricidade uma hora ou duas por dia, porque perderia as eleições…
É preciso recuperar as ideologias e os ideais, perdidos nas últimas décadas?
Tenho pouca confiança nas ideologias, nos ideais sim. Os ideais propõem-nos um horizonte que nunca conseguiremos alcançar: o ideal da pureza, da beleza, da abnegação – nunca lá chegaremos suficientemente.
Jesus Cristo utiliza expressões extremas, porque são ideais: se te baterem numa face, dá a outra; devemos fazer o bem aos nossos inimigos. Isso é um ideal, ninguém chegará lá, porque é um horizonte sem fim, de tal modo exigente, que há sempre uma aproximação e a esperança de fazer mais.
E as ideologias?
Os ideais são indispensáveis para o homem melhorar a sociedade em que vive. As ideologias, não sei de nenhuma que tivesse resolvido os problemas da humanidade a uma escala suficiente: marxista, socialista, conservadora… Até as próprias religiões, como sistemas de organização da vida. Elas traçam uma série de regras e, se as regras são absolutas, tornam-se como o homem que se submete [à lei e não a lei] para o homem; e se são instituições permissivas, não atingem os objectivos.
Apareceu um abaixo-assinado de 400 padres na Áustria. Há ali uma série de problemas concretos que a instituição-Igreja não aceita e, todavia, do ponto de vista evangélico, seria natural haver uma certa maleabilidade.
Na Idade Média havia um subentendimento de outra forma de organizar a vida humana do ponto de vista moral e espiritual: as regras fundamentais eram apresentadas em toda a sua exigência, mas a prática era muito mais maleável e não considerava que houvesse casos sem solução.
É nesse sentido que diz que é preciso preservar as realidades espirituais? E a metáfora “levantar o céu” tem a ver com a sua pergunta sobre se deve prevalecer a bondade ou o egoísmo, a beleza ou a força, a sabedoria ou a ignorância?
Não tanto. Quando falo em levantar o céu, é todo o universo, são realidades espirituais, a arte, mesmo a que não tem nada que ver com a religião, porque representa uma forma de melhorar o ser. O ser é sempre parcialmente realizado.
Quando falamos no homem, falamos no adulto mas também na criança, no moribundo, no doente ou no saudável. É todo o homem. A realização do ser humano é alcançada pela conjugação de toda a história humana em que ele se realiza, atinge a plenitude da realização do ser homem. Ao falar na beleza, não se pressupõe que ela não possa conter também alguma coisa de fealdade. A fealdade formal pode esconder uma grande beleza comportamental. Os antagonismos, fundamento do pensamento ocidental, em que se baseia a visão da realidade, são muitas vezes parciais.

Por isso vai ao Oriente buscar a ideia da harmonização dos contrários?
Exactamente. O Ocidente precisava de mais maleabilidade e da consciência de que a realização do ser é tão pluriforme que ninguém pode abarcar essa totalidade. Não é por processos de oposição que caminharemos para o pleno do ser humano.
Essa harmonia não estava presente já na Idade Média? É uma certa surpresa ver o nosso grande medievalista dizer que há coisas importantes na espiritualidade oriental. Porque a moda do Oriente traz-nos muitas coisas que estavam presentes na espiritualidade da Idade Média.
É verdade no plano pragmático. Mas do ponto de vista conceptual o pensamento ocidental construiu-se sempre mais a partir da oposição dos contrários do que da sua complementaridade.
Foi por isso que foi buscar ao Oriente esta metáfora para falar da necessidade de harmonia?
Há toda uma tradição da cultura ocidental, em que predomina a racionalização, os opostos: preto e branco, bem e mal… Na Idade Média, aparentemente, também prevalece esse tom radical nos grandes pregadores. A mulher, para São Pedro Damião, é a encarnação do demónio. O leitor deixa-se enganar por essa aparência de intolerância mas, se estudar o que aconteceu na realidade, verifica que há uma concepção pragmática da realidade, muito diferente da doutrina.
Havia uma prática mais flexível?
Uma das coisas em que isso é mais evidente é no processo de evangelização da Europa, por exemplo, com São Martinho de Dume. Ele aparece na Galécia já no fim do reino dos Suevos, numa altura em que havia ainda grandes vestígios do priscilianismo [doutrina que advogava um grande rigor na vivência da austeridade e pobreza].
Quando se tenta compreender este fenómeno, verifica-se que é muito ecléctico, com um sincretismo de práticas mágicas de devoções e doutrinas, muito misturadas com o cristianismo.
O priscilianismo instalou-se na Galécia mas depois parece que se esvazia sem grande dificuldade. Dá a impressão que, do ponto de vista da evangelização, foi como que uma fase intermediária e que essa prática religiosa depois vai sendo progressivamente abandonada. Há um clero que, tolerante na prática, mantém a pregação de uma doutrina que vai assimilando a pouco e pouco essas práticas até as tornar suficientemente ortodoxas.
A evangelização da Índia, e depois da China e do Japão, com os missionários portugueses [nos séculos XVI-XVII] preocupa-se muito mais com o dogma do que se preocupava o clero na época medieval. Isso manifesta-se de forma muito clara na questão dos ritos chineses, quando se perde tudo aquilo que os jesuítas tinham alcançado.
Se tivesse havido uma atitude mais tolerante, poderia depois ir-se purificando a crença e a prática e encontrar também uma forma que utilizasse os padrões culturais chineses, conciliando-os com o cristianismo. Em vez disso, a rigidez só leva a diminuir, a humanizar excessivamente a prática de contacto com outras culturas.
Constrói o seu livro à base do triângulo sabedoria, razão e fé. É possível a coexistência destes três vértices?
Creio que sim, contanto que a razão não prevaleça sobre a sabedoria e a fé. Mas a razão é fundamental. A formulação teológica do século XII, de São Tomás de Aquino e da teologia escolástica, é a demonstração mais categórica da capacidade de conciliar a fé com a razão. Isso representa um progresso enorme na compreensão da mensagem evangélica. Portanto, não há uma oposição inconciliável. O pietismo, uma devoção sentimental que é por vezes a expressão de um culto popular, precisa da reflexão racional para se tornar aceitável.
Em Portugal, não se cultivou suficientemente a teologia, na sua expressão plena. Não há uma tradição de estudos teológicos suficientemente válidos do ponto de vista racional, para poder responder a um anticlericalismo primário e cego que existiu em Portugal no século XIX e grande parte do século XX.

A dado passo, escreve que enquanto houver vida no planeta e o sol reaparecer cada dia, enquanto os homens e as mulheres se amarem e as crianças nascerem e brincarem, ainda há um resto de esperança. Fala da bondade também a propósito da fraternidade e do cristianismo. A sua esperança radica na bondade humana?
Não só. Radica nela, na medida em que esse é um efeito de Jesus Cristo ter assumido a natureza humana e representar no mundo a bondade de Deus. Ele é o redentor, o salvador. Mas eu não queria insistir no aspecto dogmático, antes na forma prática como Jesus Cristo mostra o que deve ser o homem na sua expressão mais profunda.
A bondade pode ser praticada numa concepção laical, laicista mesmo. Não precisa de ter nenhum sobrenatural por trás. Mas o cristão tem essa propensão, se a cultivar. E tem o exemplo de Jesus Cristo que leva isso a um extremo que o homem, só por si, não alcança.
A bondade pode ser uma chave de uma ética comum entre crentes e não-crentes?
Sim. Quando falo em Jesus Cristo, falo na minha concepção de Jesus Cristo. Pode haver colaboração entre um crente e um não-crente na vivência da bondade.
Temos dificuldades com a supressão do tempo, porque ele traz o envelhecimento e a morte, e da liberdade, porque ela nos permite escolher entre o bem e a violência?
Quando falamos do ser, pensamos em qualquer coisa fora do tempo. Mas a realização do ser é no tempo, não pode ser toda de uma vez e tem que ser com todos os indivíduos que constituem a humanidade. A realização do ser homem faz-se na totalidade da vivência humana no tempo.
E implica aceitar o sofrimento e a morte?
Sim, e também a consideração da diferença entre o bem e o mal.
Que é a questão da liberdade.
Sim. A realidade do ser humano implica o bem e o mal, como se conciliam, como entram em relação um com o outro… Os livros que têm aparecido a negar a existência de Deus dizem que, se Deus existisse, teria que intervir para que a maldade humana não prevalecesse. A oposição inconciliável entre o bem e o mal leva a negar a existência de Deus.
Qualquer pessoa que considere as coisas em termos de justiça e verifique o que se passa no mundo, ou a crueldade no Holocausto, diz: como é que Deus permite isto, como é que estes homens fazem isto e quem sofre são as vítimas?
Para mim também é difícil aceitar esta realidade. Talvez seja numa visão de totalidade, em que o bem não pode existir sem o mal, que se pode aceitar e encontrar uma relação com o ser do homem. O ser implica também o ser mau.
A dificuldade maior das nossas sociedades é enfrentar o envelhecimento e a morte?
Sim, mas no envelhecimento há qualquer coisa mais própria da nossa época do que de outras. Não havia os progressos da medicina que permitem retardar o envelhecimento. Também há toda uma cultura da juventude que desvaloriza a velhice e as incapacidades que ela traz. Todavia, de um ponto de vista estatístico, a diminuição da natalidade não traz senão uma percentagem cada vez maior de velhos e doentes. Como se resolve tudo isso? O pensamento oriental se calhar é mais sábio, porque tem consciência do papel do velho…
Tal como o africano…
… talvez porque a percentagem de velhos é menor do que no Ocidente. Para o homem de fé, é preciso aprofundar esta noção da sabedoria, que se baseia numa experiência vivida e na meditação da palavra como fundadora da própria realidade, de autenticidade dos conceitos e dos valores.

Não se zanga quando ouve, na praça pública, referências à Idade Média como a idade das trevas? Mesmo quando várias das tragédias evocadas, como a Inquisição, são posteriores…
Não acho que seja precisa uma atitude apologética, explicando que esse é um conceito primário e redutor. Foi refutado já tantas vezes e de forma tão clara que não vejo nisso grande problema. Pode acontecer é que seja apenas expressão de um primarismo cultural que é lamentável.
Mas há mais qualquer coisa: o Liberalismo e, sobretudo, o Iluminismo é muito responsável pela inferiorização da Idade Média, por causa da noção de progresso. O Iluminismo procura a racionalização e o progresso e desvaloriza tudo o que seja intuitivo, tudo o que seja [do domínio do] jogo…
Dizia que a Idade Média era muito mais tolerante e diversificada, que o clero não era tão dogmático como mais tarde alguns missionários…
Não diria “muito mais” tolerante. Diria “mais” tolerante e menos dogmático. Isso resulta sobretudo da prática das instituições. A Igreja quis formatar o homem de uma certa maneira, impor-lhe um modo de comportamento demasiado rígido. Por exemplo, a confissão sacramental, que aparece no Concílio de Latrão em 1215, ou a regra de ir à missa uma vez por semana ou o matrimónio como sacramento… O clero começou a pensar que eram objectivos absolutos. Mas não são senão meios pedagógicos de disciplinar a sociedade.
É verdade que a sociedade ocidental ganhou, do ponto de vista moral, com o matrimónio monogâmico. Mas, na prática, o concubinato era extremamente difundido. A Igreja conviveu com isso. Era preferível ter sido um pouco mais tolerante. A prática das visitas canónicas na região de Coimbra no século XVI era uma autêntica espionagem da vida privada das pessoas que levava a uma hipocrisia que não trouxe vantagem nenhuma em relação a uma certa tolerância medieval.
Tem evocado a sua convicção cristã, mas também expressa reservas em relação a aspectos institucionais do catolicismo. Como vê a Igreja institucional?
Poderia dizer, de forma quase brutal, que não me importaria de assinar a carta dos 400 padres austríacos [a pedir reformas na Igreja e o fim do celibato sacerdotal obrigatório, entre outras coisas]. Mas não quero ser provocador.
Relaciono isso com a sondagem [sobre Identidades Religiosas, divulgada em Abril de 2012] que diz que há menos católicos e uma proliferação cada vez maior de grupos religiosos ou pseudo-religiosos. A evolução social é implacável. Que estratégia a Igreja deveria seguir, para não perder o lugar que chegou a alcançar? Penso que é sobretudo na vivência do Evangelho, na autenticidade da vida cristã. Não de uma forma pietista, mas de forma autêntica, vivencial e esclarecida. Há uma grande quantidade de questões que resultam da ignorância teológica pura e simples.
É uma atitude exemplar, a de frei Bento Domingues, seguro nas suas posições doutrinais e todavia extremamente maleável na sua apreciação da realidade actual.
Quando ganhou o Prémio Pessoa, estava numa aldeia em Arganil. Agora vive no interior do distrito de Aveiro. Já passou por uma aldeia no Alentejo, por Timor… A vocação de monge continua a tentá-lo?
Não diria a tentar-me, diria a manifestar-se. Diria quase: a protestar contra todas as tarefas que tenho aceitado e das quais não me arrependo porque me parecia que era isso que eu devia fazer, na ocasião em que me foram propostas. Mas o meu apelo interior vai por aí, é um apelo primeiro, que permanece.
Agora queria que me deixassem em paz. Se calhar já é tarde. Os cartuxos só admitem vocações até aos 40 anos, já tenho o dobro, não sei se tenho capacidades de viver sozinho. Mas pelo menos queria, com a liberdade pessoal suficiente e sem imposição de tempo, dedicar-me à oração. Mais do que isso: dedicar-me a descobrir o valor da palavra, o autêntico significado da palavra, no sentido de linguagem, de expressão da realidade, no sentido de logos. Encontrar-me na meditação da palavra como expressão do mundo, da existência, da história, e descobrir-lhe um sentido.
Sente esse apelo mas, no livro, fala da cidade como símbolo da humanidade solidária. Na Idade Média, a cidade era o sítio onde as pessoas se protegiam da agressão do campo e hoje a cidade é a selva urbana…
Não oporia uma coisa e outra. Há uma tradição cristã que vê a cidade com uma dupla face: a Babilónia, o orgulho, o querer afrontar Deus na realização técnica. A outra metáfora é A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, a sociedade ordenada, com uma capacidade de organização que valorize o homem e permita a sua realização, a solidariedade, a conjugação das tarefas. Essa dupla face da cidade mantém-se toda a Idade Média.
Na actualidade, poderíamos também ter as duas metáforas como modelo: Corbusier e outros arquitectos que pensaram as coisas em termos urbanísticos quereriam dar realidade à concepção de Santo Agostinho. Mas o que a realidade nos mostra é a megapolis, as cidades desenvolvidas quase sem limites, como São Paulo, Bombaim ou outras. E o homem perde o domínio, a sua capacidade de construir um lugar onde possa viver em todas suas virtualidades, na solidariedade.
(Em 2019, o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da Igreja Católica, atribuiu a José Mattoso o Prémio Árvore da Vida. Na cerimónia em que recebeu o prémio, o historiador fez o discurso que se pode ouvir neste vídeo:)