
Ciganos num mercado. Foto: Mirna Montenegro
Está inscrito na nossa Constituição que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Só que na realidade o grupo étnico dos ciganos permanece como uma comunidade que ainda não usufrui de uma vida perfeitamente equilibrada e integrada dentro da nossa sociedade. Os ciganos apesar de viverem em Portugal há cerca de 500 anos, continuam a ser a etnia mais perseguida e marginalizada.
Diante desta realidade, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa tem mostrado empenho em relação à necessidade de maior justiça para os ciganos.
Para tal, juntou-se ao grupo de cidadãos que lançou um movimento para propor às mais altas figuras do Estado e aos diversos sectores da vida nacional uma evocação do quinto centenário das perseguições aos portugueses ciganos. [ver 7MARGENS]
Esta iniciativa, para o biénio 2025-2026, ajudará, segundo o Presidente da República, “a construir futuro” de mudança, após cinco séculos de injustiça e preconceito racial. Trata-se, pois, acrescenta o Presidente, de “uma ocasião para relembrar o sofrimento e injustiça sofridos pela portuguesas e portugueses ciganos nesses cinco séculos, mas também para celebrar mais de meio milénio da vida cigana portuguesa e o respectivo contributo para a cultura e identidade nacionais”.
Numa breve revisitação histórica, vejamos como tudo aconteceu ao longo destes séculos. Foi da Índia, empurrados pela fome, que, através de uma vaga de migrações, estes povos partiram em demanda de terras e da sua sobrevivência. O mesmo acontece ainda hoje, com povos africanos que fogem à guerra e à fome, em barcos frágeis, a caminho da Europa. A saída da Índia, por fases, deu-se entre o séc. III e XI, data incerta, por via terrestre, a caminho das regiões europeias. Depois de atravessarem o vasto Império Persa, chegaram a Constantinopla no séc. XI. No séc. XV, já se encontravam na Polónia e na Hungria e, no século seguinte, chegaram à Grã-Bretanha, depois de se terem fixado na Itália, na Grécia e em França. Por fim, espalharam-se pela Península Ibérica, entre 1425-1462.
Estruturados com base na especialização laboral, os ciganos deslocavam-se de terra em terra, trabalhando nos seus ofícios ou vendendo os seus produtos. Trabalhadores agrícolas na sua maioria, desempenhavam outras tarefas e ofícios tais como: artesãos, mercenários, artistas (músicos), domadores de ursos, cuspidores de fogo e quiromantes.

Quanto à origem da palavra “cigano”, usada em Portugal, tudo leva a crer que virá do grego bizantino “atsinganoi” que quer dizer “intocável”. No séc. XIV, a perseguição aos ciganos teve muito a ver com a peste negra. Desconhecendo a origem desta doença, os povos europeus começaram a acusar os ciganos de serem eles os seus propagadores, dado que se deslocavam continuamente de um lado para outro. Nessa altura, muitos ciganos incorporaram o exército otomano, servindo como ferreiros que produziam e consertavam armas, músicos militares e outras tropas auxiliares.
No século XIV, em países do Leste como a Moldávia e Roménia, por serem peritos em artes e ofícios e para que não se deslocassem para outras terras, as autoridades decidiram escravizá-los e fixá-los nos seus territórios. Os ciganos eram assim considerados propriedade da Coroa e pagavam um tributo anual, mas não eram obrigados a permanecer no mesmo local. No verão, viviam em tendas e no inverno em buracos ou abrigos nas florestas. Este modo de vida, em boa parte, duraria até 1856. Sem terras nem ferramentas, muitos tiveram de emigrar para outras terras do Ocidente europeu, forçados a viver uma vida nómada.
Regressemos ao século XVI, tempo da Reforma protestante: no Sacro Império Romano-Germânico, se algumas cidades havia que ainda os acolhiam, outras começaram a hostilizar os ciganos, acusando-os de espionagem. Foi o caso do imperador Carlos V, que decidiu atacar os ciganos que andassem a vadiar. Podiam até ser reduzidos à escravidão. Em Portugal, a primeira lei repressiva surgiu em 1526 com D. João III e, depois, com D. Sebastião. Este rei mandou expulsá-los mesmo do nosso território. Seguiram-se 300 anos de perseguições que obrigaram os ciganos a deslocarem-se de terra em terra, até aos dias de hoje. Porém, a história dos ciganos e a dos judeus foi-se misturando de tal modo que na Segunda Guerra Mundial, ambos os grupos foram perseguidos pelos nazis e colocados em campos de concentração e extermínio. Já é, pois, tempo de mudança, para uma etnia ainda tão marginalizada.
Florentino Beirão é professor do ensino secundário. Contacto: florentinobeirao@hotmail.com