
José Sousa e Brito no colóquio sobre “A Democracia e a Liberdade Religiosa”. Na mesa, o xeque David Munir, a provedora Maria Lúcia Amaral, Fernando Negrão (deputado e moderador do colóquio) e Esther Mucznik (Comunidade Israelita de Lisboa). De costas, José Vera Jardim e Augusto Santos Silva. Imagem captada da transmissão da AR-TV.
Portugal é o país da Europa com uma tradição “mais liberal em matéria de liberdade religiosa”, considera o juiz-conselheiro José Sousa e Brito que, ao final da tarde desta quarta-feira, 28 de Junho, interveio no colóquio Democracia e Liberdade Religiosa, promovido pela Assembleia da República. “A Lei da Liberdade Religiosa [portuguesa] é a mais liberal das leis existentes”, afirmou.
Outras leis de liberdade religiosa de países com tradição concordatária no Direito Internacional Público resolveram o problema do estatuto das minorias com acordos do Estado com cada uma das confissões. Mas isso fez com que “pequenas confissões ficaram de fora sistematicamente dos acordos”, fosse em Espanha, Itália ou Alemanha, por contraste com a lei portuguesa, que admite o reconhecimento de qualquer confissão e comunidade.
Sousa e Brito, que foi o principal redactor material da actual Lei da Liberdade Religiosa (LLR), votada no Parlamento em Junho de 2001, defendeu que foi a aprovação desta que demonstrou a necessidade de mexer na Concordata que estava em vigor entre Portugal e a Santa Sé. Este tratado datava de 1940 e tinha sido assinado por Salazar e pelo seu Governo ditatorial.
“Havia uma espécie de acordo” entre os políticos portugueses do pós-25 de Abril de 1974 para não se tocar na Concordata, disse José Sousa Brito no colóquio que pretendia assinalar precisamente as duas décadas da nova lei. “A LLR incluiu a questão da igualdade” mas pretendia apenas resolver o problema de cerca de 3% dos cidadãos portugueses, as minorias religiosas, o que não levantaria problemas de maior. Só se se mexesse na Concordata é que se atingiria a maioria dos portugueses. Mas, precisamente quando a LLR foi aprovada, tornou-se inevitável alterar a Concordata, acrescentou o antigo juiz do Tribunal Constitucional, que recordou o papel decisivo de José Vera Jardim, na altura ministro da Justiça e actual presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, para lançar o processo.
Neste sentido, disse ainda, a actual Concordata, assinada em 2004, “é um belo caso de triunfo da razão na história”. Explicando que “o Direito não é mais que a razão reconhecida pelas pessoas”, Sousa e Brito afirmou que, “quando a razão resplandeceu na LLR, a Concordata, como estava, estava condenada”.
Isto apesar de, como também recordou o antigo presidente do Consórcio Europeu para as Relações Igreja-Estado, ter havido movimentações de alguns sectores católicos – nomeadamente de especialistas de Direito Canónico – no sentido de manter em vigor a Concordata de 1940.
No entanto, o episcopado – então liderado pelo bispo de Coimbra e presidente da Conferência Episcopal, João Alves – declarou inequivocamente que estava de acordo com a revisão da Concordata – que, lamentou Sousa e Brito, manteve esse título que remete mais para a ideia da tolerância, quando devia ter assumido o carácter de Acordo racional, mais consentâneo com o Direito Internacional Público.
A revisão da Concordata, concluiu Sousa e Brito, não levantou problemas de maior, e dotou o país de um quadro legal de liberdade religiosa consentâneo com o que tinha sido proposto na LLR.
Estado cooperante, não beligerante nem tolerante

Este processo resultou no quadro de um Estado cooperante como é o português, apontou Maria Lúcia Amaral, provedora de Justiça. Referindo que a simples caracterização do Estado como neutro “não responde à questão de saber como se comporta no quotidiano”, a provedora apontou três tipos de Estado: o beligerante, como foi a França jacobina, que olha para a experiência comunitária da fé “com desconfiança”; o tolerante, que não toma essa dimensão pública com desconfiança mas não lhe dá relevância, confinando a experiência da fé à esfera privada; e o cooperante, que prevê os princípios da cooperação com as religiões, por “mútuo acordo”, dirigido aos fins da “construção da paz, da tolerância e, no plano individual, da garantia do integral desenvolvimento das pessoas”.
Esther Mucznik, da Comunidade Israelita de Lisboa e que integra a Comissão da Liberdade Religiosa, referiu a palavra “reconhecimento” como aquela que pode resumir o sentido da LLR: “A liberdade religiosa não se restringe a tolerar a existência de um culto outro. O reconhecimento implica reconhecer como igual o que é diferente”, afirmou.
Insistindo na distinção entre liberdade religiosa e liberdade de culto, Esther Mucznik recordou que, depois da instauração da República e da Lei da Separação, a comunidade judaica passou a ser reconhecida – mas apenas como associação de direito civil. Só com a lei de 2001, as comunidades religiosas passaram a ter não só o direito a escolher nomes próprios consoante a tradição religiosa, ou a ver reconhecido pelo Estado o casamento religioso dos seus membros ou a guardar festas especiais de cada religião, como sobretudo a ser reconhecidas como pessoas colectivas religiosas.
A responsável do Museu Judaico que está em instalação em Lisboa alertou também contra os estereótipos que continuam a existir. E acrescentou que “o freio à liberdade religiosa não vem, hoje, da negação do pluralismo religioso nem do laicismo radical”, mas antes da “indiferença, que continua a relegar o fenómeno religioso para as margens da esfera pública, cultural, social e, sobretudo, mediática”.
“Não criar guetos”

Por coincidência, o auditório do colóquio, que decorreu na Biblioteca Passos Manuel, do Parlamento, compunha-se de um punhado de deputados apenas do PS e do PSD, alguns responsáveis religiosos de diferentes confissões, membros da Comissão da Liberdade Religiosa e mais algumas pessoas – por coincidência, um cenário semelhante ao da semana passada, quando no Parlamento foi apresentado o relatório da Liberdade Religiosa no Mundo, da Ajuda à Igreja que Sofre. O presidente da Assembleia da República e principal impulsionador da iniciativa, Augusto Santos Silva, estava também presente, tendo o colóquio sido moderado pelo deputado Fernando Negrão, presidente da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
O imã da Mesquita Central de Lisboa, David Munir, iniciou a sua intervenção com duas frases em árabe: Bism Allah alrahman alrahim (“Em nome de Deus, o clemente e o misericordioso”) e Alsalam ealaykum (“A paz esteja convosco”). Recordando a fundação da Comunidade Islâmica de Lisboa em 1968, por um grupo de jovens que tinha vindo das então colónias portuguesas em África para acabar os estudos, questionou porque teriam vindo tantos muçulmanos viver para Portugal, após as independências africanas, e não para um qualquer país árabe. A língua, a cultura, mas sobretudo a integração que sentiam foram as razões decisivas.
Admitindo que é difícil contabilizar lugares de culto e saber quantos muçulmanos há em Portugal, David Munir sublinhou que continua a haver preconceitos. Mas, recordou, os muçulmanos organizam, no dia de Natal, um almoço para os seus “irmãos cristãos mais desfavorecidos”, além da iniciativa “Mesquita solidária” duas vezes por mês.
Aos muçulmanos que chegam, os responsáveis islâmicos pedem que conheçam a língua e a cultura. “O que pedimos constantemente é que façam o possível” por se integrarem, mas há um desafio para toda a sociedade portuguesa: “Não criar guetos em nenhuma cidade do país.”
(O vídeo com a gravação integral no colóquio pode ser visto na página da Assembleia da República)