
“Os desconcertos e perplexidades que sentimos mostram-nos apenas o quão limitados continuamos a ser, sempre a regatear direitos e a murmurar desgostos, como se ser cristão fosse o passaporte para uma vida fácil.” Foto © Neil Thomas | Unsplash
Por vezes Deus descontrola as nossas continuidades, provoca roturas, para que possamos crescer, destruir em nós uma ideia de Deus que é sempre redutora e substituí-la pela abertura à vida, onde Deus se encontra total e misteriosamente. É Ele, o seu espírito, que nos mostra o nosso nada e é a partir do nosso nada que podemos intuir e abrir-nos à imensidão de Deus, também nas suas criaturas, todas elas.
O primeiro olhar do crente é um olhar de espanto e o segundo de veneração – por todo o mundo criado, sem exceção. A gratidão emerge como pano de fundo em todo o tempo que assim se transforma em tempo em Deus. Nele começa e nele acaba ou nele continua, porque Deus é ato puro e a nossa vida só nele se encontra e justifica. Fora Dele, nada. Ou vacuidade.
Deixar-se envolver pela glória de Deus é apenas estar disponível para o perceber em tudo o que nos rodeia, abstendo-nos de rotular os acontecimentos de acordo com as nossas preferências. A preferência de Deus é o que vivemos, a preferência de Deus somos nós, já redimidos, a quem a única atitude razoável é a de uma profunda, intocável, alegria.
Os desconcertos e perplexidades que sentimos mostram-nos apenas o quão limitados continuamos a ser, sempre a regatear direitos e a murmurar desgostos, como se ser cristão fosse o passaporte para uma vida fácil.
Ser cristão dá-nos apenas direito a amar como Deus; ou seja, a viver a vida de braços abertos para todos caberem neles, mesmo os que não entendemos e aqueles que nos maltratam, ou antes, começando por eles. E nesse carinho imenso e não queixoso, pelo contrário, dar mais, dar tudo, cheios daquela alegria que só assiste a quem ama sem dúvidas e por inteiro.
O sinal dos cristãos, escandaloso e quase vergonhoso, remete-nos para esse momento radical em que Cristo nos ensinou a amar. E esse momento, por mais trágico, foi cheio de alegria, foi cheio de luz: alegria do malfeitor com a promessa do Céu, alegria de Cristo por tudo estar consumado, alegria de João por receber a Mãe como sua, a alegria da Mãe por sê-lo de todos nós. Alegria de Verónica, alegria das santas mulheres, alegria do Cireneu, alegria presente ou futura dos que estiveram perto de Cristo.
Na vida, se levamos a cruz ao peito, tudo o que não podemos ser é espectadores. Enterrados na lama dos caminhos se for caso disso, apenas viveremos o sonho cristão se não nos furtarmos ao encontro, à proximidade, ao amor ao outro, a todos os outros.
Num mal entendido “desprendimento cristão” tornamo-nos tantas vezes desalmados e maus amantes. Tudo o que Deus nos pede é que amemos como Ele, que é todos e totalmente, vendo-nos com os Seus olhos e sendo uns para os outros o próprio Cristo. Em total liberdade e podendo afirmar com S. Paulo “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gálatas, 2, 20).
A santidade de uma vida não é uma linearidade sem pecado, mas sim a evidência de que Deus está ali, nos abundantes sinais de fé, esperança e amor, tão abundantes e desproporcionados que só podem ser o próprio Deus.
Não desperdicemos os desertos da vida para nos rendermos diante de Deus e Lhe suplicarmos que venha viver em nós, amar em nós, perdoar em nós, ser em nós. E que a Sua alegria esteja em nós e a nossa alegria seja completa (Jo 15, 9-11).
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária