
No meu país, ou se é menina ou se é menino e nada de menina que se assume rapaz ou rapaz que se assume menina, explica a autora. Foto © Ricardo Perna
A mulher é muito mais do que uma mãe.
A mulher é muito mais do que uma cuidadora.
A mulher é uma preciosidade, mas ainda nos falta sair do esquema patriarcal para que possamos ter uma sociedade mais justa e com a certeza de um futuro de maior esperança. Relembrar o passado continua a ser a melhor forma de preparar o futuro.
As mulheres nos Açores e as mulheres que emigraram destas ilhas têm histórias que não queremos que se percam…
(Associação dos Emigrantes Açorianos)

“Mulher africana numa plantação de algodão” História 11ª Classe (p. 56), de J. Nhapulo e G. Cumbe,2015, Plural Editores. Reproduzido com autorização.
Dois assuntos me preocupam de momento e trago-os para partilhar com os leitores deste jornal: a diversidade de género, que é mais do que a binaridade mulher/homem, já instituídas, e a invisibilidade da mulher na construção de mentalidades.
Escrevo o presente texto na semana em que, em diferentes países, se celebra o dia da diversidade, mais especificamente o dia internacional LGBTQIA+ (28 de Junho). A efeméride surge inspirada da designada “Rebelião de Stonewall”, marcada pela invasão da polícia ao bar Stonewall Inn, em 1969, frequentado por homossexuais.
Se para alguns, o assunto LGBTQIA+ já está amadurecido, a ponto de, por exemplo, as pessoas poderem seleccionar/mencionar, quando questionadas, que têm um “outro sexo” (outra identidade de género), o mesmo não se coloca em Moçambique. Quando me refiro a outro sexo, quero dizer que esse mundo tem vivido muito além da binaridade dos géneros masculino e feminino. Está-se aquém disso. As pessoas escolhem a identidade de género mais apropriada para si. Fazem o seu registo, a partir do nome que adoptam para o novo género e assumem-no como tal. Há países nos quais as pessoas já colocam “outro” ou “neutro”, quando instados a referirem a sua identidade de género. Mas sobre a identidade “neutra”, há quem até diga que isso não existe, há sempre que mencionar uma definição específica.
No meu país, ou se é menina ou se é menino e nada de menina que se assume rapaz ou rapaz que se assume menina (em fórum privado, isso pode acontecer, mas em público, essa liberdade é coartada). E, ao dizer isso, apresento como evidência o facto de, por exemplo, a Associação LAMBA (organização moçambicana que advoga pelo reconhecimento dos direitos humanos das pessoas LGBT) ainda não ter sido aceite para registo oficial, desde o seu pedido no ano 2000. Nos outros lugares do globo já até se está a utilizar a designação mais actualizada LGBTQI+. No meu país, para além da discriminação àqueles cujo sexo não corresponde à binaridade “normatizada”, pessoas há que são levadas ao curandeiro para serem tratadas, pela simples razão de não corresponderem ao padrão estabelecido. As relações humanas definidas nos trâmites que acabei de referir no parágrafo anterior são ainda uma miragem. Este é o primeiro assunto.
O outro assunto está integrado na epígrafe do presente texto, que a retirei em painéis numa exposição colocada à entrada do Edifício Científico da Universidade dos Açores. Houve, nesse lugar, um encontro denominado “Mulher, Género e Interseccionalidade no mundo lusófono”, que teve lugar entre 29 de junho e 2 de Julho de 2022, no qual participei. Apresentei com uma colega, Rosa Cabecinhas, investigadora integrada no CECS [Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade], Universidade do Minho, Portugal, um artigo intitulado “Imagens de mulheres nos manuais de história no ensino secundário em Moçambique e em Portugal”. É ético e justo que a ela faça referência, foi um trabalho a quatro mãos. Eu estou associada ao Cham [Centro de Humanidades], Universidade Nova de Lisboa, Portugal, e sou docente na Universidade Católica de Moçambique.
Os assuntos LGBTQIA+, identidade de género e feminismos fazem parte do grande tema da diversidade. Sobre a diversidade, tenho andado a discutir, deste 2010, a partir de uma pesquisa sobre a importância de se diversificar o cânone literário no ensino, em Moçambique. Entretanto, espantou-me o convite de Rosa Cabecinhas, para ambas trabalharmos o tema “Imagens de mulheres nos manuais de história no ensino secundário em Moçambique” que mais tarde derivou para o que apresentámos durante a conferência acima referida. Disse-lhe eu: “Não tenho trabalhado a temática do feminismo. Ao que ela me respondeu: “Podes não ter utilizado o termo em si, mas a tua escrita é feminista. Partilhei um texto teu com os meus alunos e eles têm a mesma opinião.” (O texto a que a Rosa se referia foi publicado aqui no 7MARGENS.)
Mulheres anónimas nos manuais

Apesar de haver alguns dossiês especiais em que se procura enquadrar a acção das mulheres em contextos económicos ou políticos mais amplos, estas continuam a ser apagadas enquanto pessoas e enquanto agentes históricos. Foto © Ricardo Perna
No que tange às imagens de mulheres nos manuais de ensino moçambicanos e portugueses, importa esclarecer que, ao fazer esse estudo comparativo, pretendíamos dar destaque à necessidade que existe de os modelos de construção de mentalidades – a Escola, por exemplo, através dos seus manuais de ensino – contribuam para mais cidadania, tendo em conta a diversidade de género, à visibilidade da mulher, integrando “outras histórias”, rompendo com a ideia patriarcal de construção do mundo e de contar a sua História. O mundo tem sido feito por homens e por mulheres.
No nosso estudo, analisámos o modo como a mulher é representada nos manuais de História no ensino secundário. Em Moçambique o ensino pré-universitário é constituído pelo 11º e 12º anos e em Portugal entre o 10º e o 12º anos. Nesses acervos, o nosso trabalho era de análise iconográfica e as categorias de análise foram: “mulheres com nome” (se as fotografias nas quais elas são representadas são designadas pelos seus nomes), “mulheres com voz” (se as suas palavras são citadas nos manuais), “mulheres com rosto” (se há imagens delas sozinhas – comparativamente às imagens nas quais elas aparecem acompanhadas de homens) e agência histórica ou papel social da mulher” (que contribuições históricas ou sociais lhes são atribuídas).
Só para dar alguns exemplos, dos quatro manuais do ensino moçambicanos e três manuais portugueses, constatamos que em ambos casos, o domínio de representação iconográfica é masculino; o que veicula a ideia de que a História é feita por homens. Há, nos manuais de ambos os países, uma quase invisibilidade de mulheres. Há breves alusões à sua existência, elas são descritas através de papeis tradicionais: esposas, cuidadoras/acompanhantes dos seus maridos, reprodutoras, etc.
Nos manuais moçambicanos, maioritariamente, elas são representadas em fotografias nas quais o seu nome não é referido, são anónimas. É também raro serem citados os seus trabalhos académicos. Elas aparecem em muito poucas fotografias, retratadas sozinhas. Em retratos, vêm sempre acompanhadas de homens. Quando se faz referência a um trabalho comum realizado por mulheres e homens, só são maioritariamente referidos os seus nomes – no caso dos homens, são os seus nomes e as suas acções. Sobre elas há apenas alusões, muitas das vezes, sem o seu papel histórico ou social destacado; o caso gritante é quando se fala nas acções na luta armada de libertação nacional e sobre a escrita de ficção. Os manuais moçambicanos têm menos imagens que os manuais portugueses, mas nem por isso estes últimos são mais inclusivos.
Quanto aos portugueses, de um modo geral, não há mulheres operárias ou camponesas identificadas com nome, rosto e voz. As mulheres retratadas são sobretudo nobres ou burguesas, europeias ou norte-americanas. Os manuais não abordam a amplitude, diversidade e profundidade dos contributos das mulheres na história. Destacam apenas escassas mulheres como “pioneiras” ou “as primeiras” (tokenismo). Apesar de haver alguns dossiês especiais em que se procura enquadrar a acção das mulheres em contextos económicos ou políticos mais amplos, estas continuam a ser apagadas enquanto pessoas e enquanto agentes históricos (podem consultar-se mais detalhes sobre os manuais portugueses)
Certezas e dúvidas
Se eu ia à conferência com certezas de que, ao discutir a representação da imagem de mulheres em manuais escolares moçambicanos e portugueses, estaria a debater e propor reflexões para a melhoria de um dos maiores problemas nas relações humanas, que é secular e dos de mais lenta resolução, enganei-me; porque, num dos painéis apresentados, aprendi que a questão sobre a discussão da diversidade é imensa e ainda estamos longe de encontrar uma solução.
Acerca disso, um dos casos apontados por uma das oradoras foi o cuidado que se passa a ter com a linguagem inclusiva, a que integre diferentes identidades de género. Há que se educar e aprender a falar sem as marcas de género, para acolher as diferentes sensibilidades LGBTQI+. Segundo ela, tanto na língua portuguesa, quanto na língua inglesa existem modos para se falar de forma neutra (sem marcas de género), mas precisamos de ser todos lembrados sobre o como é que isso se processa, porque o instituído ou padronizado leva as marcas do “ele” e do “ela”, quando há outras identidades por referir. Ao que pude deduzir que, não havendo, sabe-se, a partir dos “universais linguísticos”, da possibilidades de os criar. Tais são os casos já comuns do que ouvimos no Brasil, exemplos como: “Olá a todxs” ou “Olá todes”, no lugar de “olá todas/os”.
Do que aprendi e estendendo o caso ao debate que me tenho proposto fazer sobre os feminismos, assumo que a actual linguagem também acabará por mudar. Dos dizeres moçambicanos: “eu casei aquela mulher” ou “fulana de tal foi para o lar” (lar, i.e., lar matrimonial); haverá que se transitar para eu e fulana/o de tal casamo-nos e sicrano/a ou beltrano/a “foram para o seu lar”.
A língua, as linguagens e as relações humanas estão ainda por construir, para que possamos ter uma sociedade “mais justa e com a certeza de um futuro de maior esperança”. Nenhuma pessoa merece ser apagada. Não existem identidades neutras, apenas temos que ser educados para uma linguagem e falares mais integradores. Não diria neutros, pela possibilidade que a neutralidade tem em apagar o que já existe. Há que se ser um cidadão informado, para se ser inclusivo, sob pena de manter padrões antigos e estereotipados. Mas há também necessidade de se educar a sociedade para a conciliação de modos de estar, porque acreditar que a utilização de lavabos não deva ter distinção de género é assumir que a anatomia humana não tem distinções, o que não é bem o facto…
Sara Jona Laísse é membro do Movimento Internacional de Mulheres Cristãs, participante do Graal-Moçambique. É, também, docente da Universidade Católica de Moçambique. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.