
“É como Povo que o próprio Deus gosta de nos olhar, apesar de conhecer o coração de cada um de nós melhor do que nós mesmos. Mas é como “nós” e não como “eu”, que nos apresenta a atitude correta perante Ele.” Foto © Duy Pham, Unsplash Photo Community
As religiões do Livro partilham esse vasto e riquíssimo património comum: a memória do Povo de Deus, das suas lutas, êxodos, lamentos e vitórias.
O registo da interação de Deus com o Seu povo ao longo de séculos é um legado não pequeno onde podemos reaprender a nossa relação com Deus, descentrando-nos de nós e alargando o coração, no tempo e no espaço.
De facto, muito facilmente caímos nos particularismos do Eu e esquecemos que, perante Deus, somos essencialmente Povo. É como Povo que o próprio Deus gosta de nos olhar, apesar de conhecer o coração de cada um de nós melhor do que nós mesmos. Mas é como “nós” e não como “eu”, que nos apresenta a atitude correta perante Ele.
Além disso, para os cristãos, essa é uma exigência que deriva do único modelo de oração deixado por Cristo: o Pai Nosso.
No Pai Nosso, todas as preces são elaboradas no plural e nunca no singular. Quando pedimos o Reino, pedimos para todos, também para os inimigos, também para os indiferentes. Quando pedimos pão, pedimos para todos, também para o esfomeado a quem eventualmente ignoramos. Quando pedimos perdão, também o pedimos para os que nos ofenderam e afirmamos que nós mesmos os perdoamos.
Se rezarmos o Pai Nosso como Cristo pediu para rezarmos, o nosso coração é um coração totalmente aberto, onde cabem todos os rostos, também aqueles que evitamos olhar ou não queremos ver.
Talvez até venha a acontecer serem esses os rostos que primeiro afloram, teimosamente, à nossa mente, pois é aí que somos chamados a amar como Deus.
Da mesma forma, para os cristãos católicos, nas primeiras orações que se mantêm até hoje (como a Avé-Maria ou a Salvé Rainha), repete-se a lógica de Povo.
Dirigimo-nos à nossa Mãe como Povo e não como pessoas singulares: “A vós bradamos”, “a vós suspiramos, gemendo e chorando”. Chamamo-la “advogada nossa”; dizemos, “esses vossos admiráveis olhos a nós volvei”; e terminamos pedindo: “rogai por nós”.
Somos benignamente convidados a repetir com os lábios o que talvez tenhamos bem longe do coração: o imperativo de nos vermos um só com a humanidade inteira, por quem a nossa prece se estende sem exceção, como se essa fosse a premissa para sermos escutados.
Ao darmo-nos conta da magnitude da empreitada, saímos do nosso pequeno canto desfocado e tomado de teias de aranha, e acabamos por perceber o sentido da alma sacerdotal que levamos dentro.
Essa alma onde ressoam também as belíssimas negociações dos Profetas com Deus, como a de Abraão, ao suplicar a Deus para não destruir Sodoma em atenção a algum justo que por lá houvesse, e Deus a deixar-se facilmente vencer pela candura do argumento (Génesis 18).
Em todos os papéis nos vemos nós, percorrendo o caminho do povo de Deus: ansiosos, casmurros, murmuradores, idólatras, avaros, penitentes, profetas – a humanidade que carregamos com todas as suas pulsões, sem exceção. Isso mais facilmente nos tornará complacentes (e não implacáveis) com as fraquezas dos homens, e mais capazes de os amar – não apesar delas, mas por causa delas.
Num tempo em que todos fomos conduzidos ao deserto, restaurar a nossa atitude como Povo de Deus coloca-nos na justa posição orante, que encontra eco em milénios de fé vivida e que nos assiste, pois Deus não é um Deus de mortos, mas sim de vivos.
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária